Tinha apenas dois nomes: Gonçalo Anes.
Bandarra era alcunha, significava boémio, bon vivant. Possuía dinheiro, gostava de se vestir bem, sabia ler - raro na época - e foi sapateiro. Consertava sapatos e também os fabricava, o que implicava possuir conhecimentos e ferramentas específicas, transmitidos através das gerações por laços familiares e corporativos. Todas as evidências indicam que era Cristão - novo, embora não hajam provas conclusivas desse facto. Por isso mesmo, sabe-se pouco de Bandarra: os Cristãos - novos tendiam a ocultar as práticas judaicas, por questões de sobrevivência. Artesão culto e abastado, preferia o Velho ao Novo Testamento: características que também se identificavam com a comunidade judaica. Trancoso, a vila onde nasceu, possuía a maior comunidade da Beira Interior: 700 pessoas, antes da expulsão e das conversões forçadas decretadas pelo rei D. Manuel I e do estabelecimento da inquisição por D. João III.
Foi o primeiro nome da vila a ser chamado ao tribunal do Santo Ofício, em 1541 - dos 500 nomes hoje gravados no museu Judaico, condenados pela inquisição até 1759, quando D.José I aboliu a distinção entre Cristãos-novos e Cristãos-velhos.
Não foi acusado por heresia e suspeitas de judaísmo, mas sim por escrever textos polémicos, em verso: as Trovas, supostamente continham profecias e tornaram-no conhecido como vidente e místico. Os versos podiam ser interpretados de várias formas, a igreja Católica não aceitou que a sua autoridade e ortodoxia fossem questionadas. Foi condenado e proibido de escrever - talvez o maior castigo que se podia aplicar a um poeta.
Regressou a Trancoso e terminou os seus dias na aldeia vizinha de Nogueira, a 6 km da vila. Viveu isolado numa choupana, continuou a fazer profecias e a receber visitas. A lenda das adivinhações cresceu com o tempo: diz-se que previu o fim do Santo Ofício, a própria morte e o pagamento da transferência dos seus restos mortais para a igreja de São Pedro, onde se encontra sepultado. Sabe-se que foi casado e teve duas filhas.
As profecias do fim do império inspiraram o Padre António Vieira e, mais tarde, Fernando Pessoa, que elaboraram a partir delas o misticismo messiânico presente na obra de ambos. Esse misticismo manifestava-se na crença do regresso do rei D. Sebastião, o Desejado, e no advento de um novo império, que seria o quinto e último da história da humanidade.
Bandarra foi um espírito livre numa época de fanatismo e perseguições religiosas, adaptou-se ao seu tempo, escreveu por metáforas, alusões e alegorias o que não podia dizer diretamente. Um homem demasiado avançado numa época em que só a palavra da ortodoxia católica era válida.
Trancoso possuía então uma próspera e numerosa comunidade judaica, separada da cristã pela rua da Corredoura. Os cristãos-novos, convertidos à força, gravaram cruzes nas paredes das portas para indicar que se tornaram cristãos e adoravam Cristo, mas adicionaram-lhes sinais compreendidos apenas pela sua comunidade, revelando que, secretamente, continuavam a ser judeus. Esses símbolos ainda são visíveis no interior da muralha, especialmente na rua da Alegria. As casas tinham passagens secretas para as dos vizinhos. Outra característica das habitações judaicas era a existência de duas portas para a rua: uma pequena, para entrar em casa; outra maior, destinada ao comércio.
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Túmulo do Bandarra na igreja de São Pedro |
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Rua da Alegria |
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Símbolos nas casas dos Cristãos-novos |
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Boneco que representa o padre Costa, de Trancoso: gerou 299 filhos em 53 mulheres. |
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