domingo, 26 de novembro de 2023

São Miguel

A Lagoa das Sete Cidades, da Vista do Rei

A Caldeira Velha fica perto da Ribeira Grande, na estrada regional que liga à Lagoa, na costa Sul da ilha. Cascata de água quente natural, envolta em vegetação luxuriante, formando uma pequena piscina de água sulforosa. Eu colocava-me debaixo da queda de água, sentindo o chuveiro sobre as  costas, tomando um duche prazeroso  ao ar livre,   massajando o corpo intensamente. Gatinhava com as mãos no fundo rochoso, calcando a folhagem que caia das árvores e se depositava no chão da piscina. Apanhava as folhas e com elas fazia uma cabeleira espessa e desgrenhada, qual sátiro atlântico. Não  repugnava, tudo era limpo. A grande quantidade de enxofre não permitia o desenvolvimento de matéria orgânica. Por vezes, ficávamos até cair a noite, sem mais ninguém. Eu levava calções velhos que ficavam pesados e inutilizados com o enxofre. Sentia-me um bebé, chegava a casa tranquilo, totalmente relaxado.
Regressei  anos mais tarde, o acesso estava melhorado, o estradão de terra alargado e haviam balneários de apoio. Mais tarde ainda, começaram a cobrar bilhete, devido ao crescimento exponencial de visitantes. A Caldeira Velha não era mais o sítio recôndito e de difícil acesso que conheci.

Depois do desvio para a Caldeira Velha, seguindo a estrada regional, chega-se à lagoa do Fogo. A paisagem é austera e despida. Àquela altitude, as névoas e o céu cerrado são comuns no interior da ilha. O nome “Fogo” talvez se deva à ilusão criada pela neblina permanente, como se fosse fumo tapando a visão da lagoa; ou, o mais provável, ao vulcanismo ativo que um dia a cratera expeliu.

No ano em que vivi na ilha, noticiou-se o desaparecimento de uma turista que percorria o trilho da lagoa. Deve ter sido por isso: a névoa intensa acompanhada de uma forte chuvada abateu-se sobre a cratera deixando-a desorientada, tendo depois caído num precipício qualquer.

Outro ponto com vistas soberbas sobre uma outra lagoa é a Vista do Rei, nas Sete Cidades. A primeira autêntica e genuína caminhada que fiz nos Açores, mais intensa e difícil, ligou a freguesia dos Ginetes, junto à costa, ao interior da cratera. Fiz a subida solitária debaixo de chuva, cruzando-me com manadas de vacas, pastores e cães de guarda, pela estrada alcatroada. O nome deve-se ao rei D. Carlos. Visitou o arquipélago nos finais do século XIX  na companhia da esposa,  a rainha D. Amélia, deixando marcas que perduram no nome dos  doces  “Dona Amélia”, e neste local, a  “Vista do Rei”.

Antes de conhecer os Açores, já eu tinha visto em postais e livros este enquadramento famoso. Um dos livros foi  o volumoso: “As Maravilhas Naturais do Mundo”, das Seleções do Reader`s Digest. Folheava-o frequentemente, entretido,  imaginando visitar locais deslumbrantes do planeta um dia mais tarde. Nada como observar as lagoas ao  natural, ficar suspenso, vendo a vegetação exuberante  no interior da cratera,  rodeado de silêncio, sob um céu plúmbeo. A descida foi demorada e difícil, em estrada de alcatrão, piso duro para  pés e músculos.
Lá em baixo, cansado e transpirado, desfrutei o silêncio regenerador, sentado no muro da estrada que divide a lagoa azul da verde.  Senti uma enorme tranquilidade, ouvindo apenas o ruído da água e o som ocasional de um peixe a mergulhar. As lagoas ondulavam suavemente com a brisa leve que soprava.  As paredes do maciço vulcânico  refletiam-se na água. Tinha os músculos atordoados de uma caminhada de  seis horas.  Passeei pelo lugarejo de casas brancas adormecidas, quase sem ninguém.  Entrei no café e depois  apanhei a camioneta de regresso a Ponta Delgada. Na cidade, era-me indiferente o trânsito, a lufa-lufa apressada das pessoas. Eu estava sujo, cansado, inebriado com as paisagens que tinha visto, de alma cheia, sereno e despreocupado.

Mais tarde, já na companhia de colegas, descobri novas lagoas nas encostas da cratera e a “Muralha da China”, um estreito passadiço em traves de madeira, protegido por cordas, no rebordo montanhoso do maciço.

Fui de camioneta ao Nordeste. Gostava de observar as pessoas a entrar e a sair. Mulheres idosas, de roupa e lenço preto na cabeça, revelando a intensa religiosidade da ilha. Turistas Franceses, um casal novo, mochileiros a cheirar a suor. O que os traria para estas bandas tão distantes, no meio do Atlântico, idílicas e caras? Só existiam voos diretos de Lisboa e Porto, da TAP. Admirei-lhes a coragem,  a aventura magnífica que ousaram empreender.  
Via o mar,  falésias rochosas e  povoamentos que iam surgindo depois de cada curva, novas panorâmicas, encantadoras.  A camioneta passava por cascatas e miradouros sobre o mar. Nomes  curiosos surgiam assinalados nas placas das estradas: Algarvia (onde uma colega do Algarve que conheci mais tarde posou), Achada, Porto Formoso.
Chega-se ao Nordeste por uma ponte sobre um riacho. Vila pequena de casas brancas e asseadas. Lembrei-me do poema de Eugénio de Andrade: “Eram casa brancas e gaivotas sobre o mar…”
A Lagoa das Furnas

Lagoa do Fogo

Caldeira Velha

sábado, 18 de novembro de 2023

Os Montanheiros


Na caminhada ao Pico Alto vi touros bravos à solta. Eu fazia parte de um grupo numeroso de caminhantes que se juntavam aos Domingos nas caminhadas organizadas pela associação de espeleologia de Angra do Heroísmo: “Os Montanheiros”. Depois do tremendo susto que apanhei no meio dos touros,   agora, estava tranquilo e protegido na companhia dos colegas. Os touros pareciam dóceis vistos ao longe. 

- São inofensivos no seu ambiente natural, exceto as vacas bravas com  crias. Quando vemos  uma manada de touros à frente batemos palmas e eles afastam-se – disse um dos guias.

Pode ser entediante  e mais perigoso estar  sozinho no meio dos montes. Mesmo sem riscos imediatos. Uma escorregadela ou um simples entorce tornam-se obstáculos difíceis, não havendo ninguém a quem pedir ajuda. Também os encontros com  animais, matilhas ou  touros, como aconteceu comigo. 

As caminhadas organizadas pelos Montanheiros eram excelentes oportunidades para conhecer trilhos sem correr riscos. O ponto de encontro costumava ser a sede do clube, na rua da Rocha. Distribuíamo-nos pelos carros e partíamos para o interior.
Tinham periodicidade quinzenal, de Abril a Outubro. Conheci locais onde as estradas não chegam, escondidos e difíceis, de nomes eloquentes e fantásticos: o Monte Assombrado, o Pico Alto, os Mistérios Negros, a Lagoinha, o Pico Rachado.
Uma paisagem bastante diferente da que estava habituado a ver, virada para o mar, larga e aberta. Esta era recôndita, escondida pelas paredes da gigantesca cratera vulcânica que formava o círculo  de picos do interior da ilha.  A neblina, o frio e o vento constantes não atraíram os povoadores, que se estabeleceram apenas no litoral fértil e aprazível. 

Fazíamos caminhadas fabulosas, por trilhos indefinidos, debaixo da densa vegetação de arbustos, passando por raízes descobertas, debruçando-nos para contornar caules e troncos perigosamente inclinados, desviando os fetos da nossa frente com as mãos, evitando as fendas  na terra, que ligavam aos algares. Sentíamos o cheiro morno do musgo e do esfagno, típico da floresta de laurissilva, nas redondezas dos picos Assombrado e Rachado. Duas torres rochosas impondo-se na paisagem luxuriante, batizadas pelos primeiros povoadores, de acordo com o que a sua imaginação lhes sugeriu.

Havia trilhos mais abertos e pedregosos, como o dos Mistérios Negros, outros bucólicos e verdejantes, como o da Lagoinha e o do Pico Alto. Todos diversos, de diferentes tonalidades e relevos, de nuances que variavam com os humores do clima imprevisível dos Açores. A tela de um pintor de imaginação prodigiosa,  inventando  sempre paisagens idílicas: minúsculas lagoas de água eutrofizada, escondidas atrás  dos muros densos de criptomérias que subitamente surgiam à frente dos olhos;  espécies endémicas, exuberantes, que só ali existiam;  brumas fantasmagóricas pairando sobre os picos; vegetação de contornos retorcidos e infindáveis tons de verde. 

Numa ilha pequena e razoavelmente  habitada causava estranheza que  muitos locais tenham  sido descobertos apenas no século XX, como o algar do Carvão e a gruta do Natal Não se imaginava a  quantidade de galerias subterrâneas e de túneis que ligavam grutas e algares. A sala de visitas do algar do Carvão tem uma exposição permanente da sua história e da ilha. 

Era bom contar com um grupo que gratuitamente organizava visitas ao interior por trilhos inacessíveis à maioria das pessoas.




domingo, 12 de novembro de 2023

Terra do Bravo

Fiz uma parte do trilho em Junho, quatro meses antes, com um amigo que levava o gravador para recolher os  sons  das aves da ilha. Vinham connosco dois alunos da escola profissional e a bióloga que colaborava com o projeto.
Dirigimo-nos à rocha do Chambre, seguimos para o interior da enorme cratera vulcânica adormecida há centenas de anos, passamos por locais selvagens, desconhecidos da maioria das pessoas da própria ilha, inacessíveis e remotos,   onde habitualmente ninguém se atreve a ir, devido às neblinas constantes que cobrem o interior e às chuvadas súbitas e torrenciais que do nada rompem das nuvens negras. Ao fim de poucos quilómetros regressamos atrás, ao carro estacionado no caminho de terra.  O meu amigo já tinha recolhido os elementos que precisava e adquirido informação importante para o seu trabalho com a colaboração da bióloga.  Fiquei com vontade de explorar a parte restante do trilho, o que fizemos era demasiado bonito e exótico para deixar o resto por ver.  

Regressei sozinho em Outubro, determinado a percorrê-lo na totalidade. Tinha uma ideia da orientação a seguir, consultei previamente um mapa e a descrição do trajeto num guia turístico da ilha Terceira.  Não havia referências a situações imprevisíveis ou a perigos especiais, além das normas de conduta e dos cuidados que se devem ter em qualquer caminhada. 

Uma cancela robusta alta e larga em madeira vedava o trilho. Estranhei. Em Junho não estava ali. Talvez o proprietário do terreno não gostasse de caminheiros, a tenha colocado para os dissuadir de seguir em frente, como acontece em muitos locais. Não me intimidei, eu não ia causar estragos, apanhar plantas raras ou colocar lixo, ia apenas usufruir da natureza no seu estado selvagem e esplendoroso, intocável e virgem, antecipando a fruição que teria  no meio de caminhos de esfagno, musgos e basalto, recolhido num sítio único, metido comigo mesmo nos meus pensamentos, absolutamente distante dos ruídos do mundo. Apoiei-me nas ripas e saltei para o outro lado, segui pelo caminho que me era familiar até ao morro onde chegáramos antes.   A partir dali era uma zona de arbustos baixos sem trilho definido, onde teria de passar antes de chegar à estrada rural que me levaria ao local de partida.  Já tinha reparado nos pedaços de esterco de vaca dispersos no chão, achei normal, os Açores estão cheios de vacas em todo o lado. Não me incomodei, segui tranquilo por um caminho inédito, imaginando as paisagens maravilhosas que encontraria mais à frente, reproduzidas nas fotografias dos guias turísticos.  Contornei a colina, não sabia o que viria depois dela, talvez o pequeno lago rodeado de criptomérias densas, as paredes  enegrecidas de obsidiana despontando no meio do verde luxuriante da floresta de laurissilva, os tufos cerrados de faias  suspensos sobre os penhascos.     O que surgiu poucos metros à minha frente deixou-me petrificado, gelou-me o sangue, uma manada de touros castanhos de seiscentos quilos cada, de cornos ameaçadores, olhando-me tão surpreendidos quanto eu pelo encontro improvável no meio do mato. Sem pensar em mais nada, imediatamente virei as costas e voltei para trás a correr, escondendo-me deles nos rebordos da colina, olhando sempre em frente, distanciando-me o mais que podia da manada, almejando chegar o quanto antes à cancela salvadora. Imaginava-os atrás de mim, a perseguir-me – sugestionado pelos filmes e pela minha imaginação fértil de feras selvagens e ferozes atacando os humanos.  Percebi por que motivo ela ali estava. No verão retiram-nas e guardam os touros nos tentaderos, levados dali para as festas populares da ilha, nas quais se organizam touradas à corda em todas as freguesias. Voltam a ser colocadas  no inverno quando já não há festas e os touros regressam ao seu habitat natural. Que estúpido fui, que descuidado!! Agora estava numa alhada séria, em perigo de vida, de ser atacado e atingido por umas valentes cornadas. Estava sem rede, pensava na minha família, na má notícia que teriam. Resumindo: eu estava em pânico, incapaz de raciocinar devidamente, o meu instinto era sair dali rapidamente, fugindo em frente enquanto tivesse força nas pernas. A minha cabeça latejava, o coração batia acelerado, o sangue era bombeado com toda a força para todo o meu corpo, comecei a escorrer água da testa, devia ter a cara vermelha e os olhos inchados pelo medo.

Vi mais esterco fresco, haviam mais touros até à cancela, senti pânico redobrado, se é que era possível redobrar algo que já estava no limite. Já havia passado por ali e não me apercebi de  nada, talvez continuassem escondidos atrás dos arbustos e das colinas e não dessem por mim. Eu arfava, as minhas forças fraquejavam, as pernas começavam a tremer, sentia que mais facilmente podia tropeçar e ceder, talvez me pudesse esconder numa reentrância qualquer, num buraco onde os touros não chegassem. Ia observando o relevo à minha volta, o que até a alguns minutos atrás me parecia tão acolhedor, era-me agora ameaçador e medonho. Estava completamente vulnerável, à mercê do destino. Pelos meus cálculos ainda demoraria trinta minutos a chegar à cancela. Será que aguentaria tanto tempo?

Parei de correr, estava derreado e ainda faltava um bom bocado. Ouvi chocalhar, era uma fêmea brava com o vitelo, interpondo-se no trilho. Com as forças que me restavam desviei-me pelo cimo da colina, subindo com a ajuda das mãos, rastejando quase. Nesta parte não haviam árvores, nem muros ou reentrâncias onde me pudesse proteger, apenas as urzes e os pastos de erva rasteira viçosa que deleitavam as manadas de touros, o seu ambiente natural, repleto de comida, onde um minúsculo ser humano se intrometera inadvertidamente, subindo a escarpa. A vaca brava olhava-me com os olhos ameaçadoramente postos em mim sem se desviar um centímetro do seu sítio, com o vitelinho abstraído ao seu lado, o seu instinto maternal em alerta observando o intruso ameaçador,  mais perigosa ainda. A situação era muito delicada para mim.  Se ela decidisse trepar o morro eu não teria hipóteses, chegaria à minha beira em três tempos e acometeria-me com os seus cornos afiados, debelando a ameaça que no seu cérebro eu devia representar para o seu filhote. Eu não sairia incólume, estava tão cansado, quase a desistir, a prostrar-me perante o destino e a inevitabilidade. Será que há um momento na vida em que as pessoas simplesmente desistem de lutar e entregam-se à sua sorte?   É quando  vem ao pensamento, com toda a força e significância, mais reais do que nunca, as velhas questões existenciais: o que faço aqui? Por que raio não pensei nos touros quando vi a cancela? Por que fui tão estupidamente descuidado e burro? Por que não fiquei em casa a ver televisão?

Agarrava-me a todas as pedras e raízes que podia, escorregando, apanhando calhaus soltos, traiçoeiros, deslizando para trás, com terra no nariz, trepando a encosta íngreme. Ainda me restavam algumas forças. A vaca não veio atrás de mim, oxalá não aparecesse mais nenhuma, desistiria de fugir, tentaria escavar uma cova com as mãos na terra mole e vulcânica,  colocar  pedras por cima a tapar-me, aguardando o destino. Sem energia física e mental para escapar, desprotegido e desabrigado no descampado do morro.  

Imaginava a família e os amigos sem notícias minhas, preocupados a tentar contactar-me.
Retomei o trilho mais adiante, reconhecendo a proximidade da cancela mágica e da minha salvação.   Cheguei finalmente, trepei a cancela desorientado e a tremer, imaginei que ainda pudesse haver um touro a investir contra ela como nas arenas.  Passei para o outro lado, percorreu-me o corpo um calafrio de alivio ao aperceber-me do que me livrei. Caminhei até ao carro estacionado na berma da estrada, apercebi-me que deixei o telemóvel no porta-luvas. Sentei-me e respirei fundo. Não levava fotografias novas, apenas as que tinha da primeira caminhada que fiz, mas levava uma história e um valente susto para contar. 




quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Mau tempo na Ilha


Não gostei da minha primeira chegada à Praia da Vitória. Janeiro estava a começar, vinha de regresso das férias de Natal, o voo para a Graciosa tinha sido cancelado, devido ao mau tempo.
A estrada Vinte e Cinco de Abril pareceu-me desolada com o seu piso irregular de paralelos e casas de Americanos abandonadas. Os enormes reservatórios cilíndricos de combustível, visíveis de vários pontos, aumentavam a fealdade do local.
Almocei uma moreia no centro da vila, enjoativa e gordurosa, frita no óleo usado muitas vezes.
Os velhos barcos e barracos de pesca, ao fundo do areal enegrecido, dando  a sensação de desmazelo; o muro da praia gasto pelo salitre e o mar escuro de Inverno. Eu, sozinho, num local novo e estranho, num dia triste e cinzentão, retido pelo mau tempo, não queria estar ali.
Aluguei carro no aeroporto, passaria o resto do dia a conhecer a ilha. Talvez as paisagens e as novas panorâmicas que descobriria me dessem algum ânimo. Não estava interessado em passear pelas ruas,  passar o tempo em cafés até à noite. Não conhecia ninguém, sentia pouca vontade e confiança para ver gente. Conduzir com o auto-rádio ligado, no conforto do Nissan Micra,  ver as paisagens, parecia a melhor opção. Enganei-me redundamente!
O tempo no interior estava péssimo, o nevoeiro denso tudo cobria, o vento soprava forte, as criptomérias baloiçavam  assustadoras sobre o carro. Encontrava-me numa estrada rural cheia de folhas e ramos partidos no chão, receava que uma árvore caísse de repente em cima do tejadilho e um acidente grave acontecesse. Estava arrependido de ter alugado o carro e ido conduzir para o interior, devia ter sido mais cauteloso e prever que o mau tempo, que causou o cancelamento do voo, também deveria afetar bastante o interior da ilha. Não conhecia o clima dos Açores, censurei-me pelo descuido. Agora, não havia mais nada a fazer, apenas confiar na sorte, conduzir com a maior  precaução possível, devagarinho. Corria um risco desnecessário por ignorância e insensatez.
Tinha os faróis ligados, segui sempre em frente, chegaria a algum sítio junto da costa, onde o tempo estava mais calmo e, a partir dali, conduziria junto ao mar. Desemboquei na via rápida, virei intuitivamente à direita. Alguns quilómetros, e muita chuva depois, cheguei a Angra.
Era a primeira vez que visitava Angra. Tive alguma dificuldade em conduzir pelas ruas apertadas de sentido único do centro histórico, os carros estacionados tornavam as passagens ainda mais estreitas e difíceis. A cidade parecia mais chique do que a Praia, de fachadas históricas  preservadas, torres de igreja,  desenho geométrico de ruas perpendiculares ao mar, desde a praça Velha até ao alto das Covas. Passei na famosa Carreira dos Cavalos, que ouvia falar amiúde, por ser onde se situava a sede da Secretaria Regional da Educação e Cultura; e no Alto das Covas, cuja fama chegava à Graciosa, devido à sua conotação  homossexual.
Entendi perfeitamente por que razão Angra era o centro da Cultura e da Educação dos Açores, Património Cultural da Humanidade, Sede do Bispado e Residência Oficial do Ministro da República. A cidade fora totalmente recuperada, mantendo a traça Pombalina original, após ter sido devastada por um violento sismo na noite de Ano Novo de mil novecentos e oitenta. No período das descobertas, o porto das Pipas foi um dos mais importantes entrepostos comerciais do Atlântico, local de paragem das naus navegando em direção à Índia e às Américas. Cobiçada, atacada várias vezes e, finalmente, conquistada pelos Espanhóis, que deixaram  um legado cultural muito forte na ilha Terceira. 
Com paciência, fui contornando as ruas e lombas mais difíceis, consegui estacionar próximo da rua Direita, onde fiquei alojado.
No dia seguinte, de manhã, eu iria para o aeroporto, tentar novamente o embarque
para a ilha Graciosa.