terça-feira, 30 de abril de 2019

Caro Vasco Pulido Valente


há alguns anos que conheço uma parte do seu trabalho, nomeadamente o que se refere à história de Portugal do século XIX. Li os “Devoristas”. 

Desde que comecei a ler as suas crónicas durante a  guerra do golfo e as críticas ferozes dirigidas a George Bush e companhia, que o considero um pensador livre, imparcial e independente. Aprecio o seu estilo contundente, assertivo e irónico.  Muitos  dos seus artigos sobre a realidade e política Portuguesa lembraram-me  Eça de Queirós, divertindo-me bastante com as suas frases e tiradas certeiras. 

Por esse motivo, e com todo o respeito que tenho pelo seu trabalho como historiador, permita-me discordar de si relativamente ao teor do “Diário”  de 23 de Abril, publicado no jornal Público de 27 do mesmo,  a propósito da interrupção de que foi alvo o nosso Primeiro-ministro por um elemento do grupo Extinction Rebellion.
O movimento Extinction Rebellion surgiu em Londres no final de 2018, da iniciativa de ativistas ambientais, muitos  dos quais cientistas e que, como o senhor referiu, paralisou o centro da cidade.  O movimento estendeu-se a vários países, onde ocorreram diversas ações de desobediência civil não violenta, incluindo Portugal.  
É um movimento radical, porque pretende mudar um sistema económico que destrói o planeta.  
 O senhor relaciona, sem qualquer lógica, a origem de um dos elementos do grupo e o apóstolo São Paulo, só para fazer uma extrapolação, demasiado forçada, com o apocalipse, em que supostamente os primeiros cristãos, apóstolos e discípulos acreditavam.  Insinuando, desta forma, que os elementos do grupo Extinction Rebellion são   proselitistas de um “dogma”, no qual o senhor manifestamente não acredita, sendo descartados por si como uma seita de fanáticos apocalípticos, tal como os primeiros cristãos.  
Sugiro-lhe a leitura dos seguintes Links:


Existem muitos outros.
Longe de mim a presunção  de querer mudar as suas “crenças”. Contudo, informo-o de que o grupo é composto por pessoas cientificamente esclarecidas que, com base nesses conhecimentos, estão conscientes dos  novos desafios colocados ao planeta e à Humanidade,  urgindo uma rápida transformação política,  social e  económica.

Permita-me comparar este novo movimento ao liberal, que o senhor bem conhece, que no  final do século XVIII começou  a transformar o pensamento e a política europeia. 
Trata-se de mudar de paradigma como aconteceu outras vezes na história,  além de uma ideologia de “esquerda” ou de “direita”, de "conservadores" ou "liberais". 
É um movimento pacífico, não violento e anticapitalista,    que considera  o atual modelo energético  absurdo face aos problemas por  si gerados. 
Daí a necessidade e os alertas insistentes de cientistas, cidadãos e movimentos sociais para uma mudança de hábitos e o apelo a uma redução drástica na extração de combustíveis fósseis, se queremos continuar a ter um planeta previsível e habitável no futuro próximo. 
Consulte o aqui o relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change das Nações Unidas.

Com base no conhecimento que existe é legítimo pensar em mudar a sociedade, tal como pensaram os liberais nos séculos passados com o conhecimento que tinham da história no seu tempo.
Hoje, para além da história e da política, temos a ciência e dados novos sobre as consequências da interferência humana nos ecossistemas. Algo sem precedentes na história anterior.
O planeta não vai acabar, mas as gerações futuras herdarão um totalmente diferente. As condições ambientais dos últimos 10000 anos mantiveram-se idênticas e durante esse período surgiu a escrita, muitas civilizações e culturas, a evolução da arte, da política e da ciência.  Não sabemos que tipo de civilização teremos com alterações tão abruptas, mas as pistas que temos não são nada animadoras. 

sábado, 13 de abril de 2019

Lisboa Almada




Na igreja de São Domingos foi autorizada a primeira irmandade negra de Lisboa.  É um local onde a comunidade africana continua numerosa, feirando no largo. A igreja sofreu um incêndio no dia 13 de agosto de 1959, no interior da nave um painel com capas de jornais da época relembra ao público o sinistro. Por esse motivo, a nave continua despida, ardeu tudo. Sente-se uma imponência austera.
Dali até ao intendente, pela rua do Benformoso, é um mundo totalmente diferente e cosmopolita do resto do país: Africanos, chineses, Indianos, Árabes, Portugueses, turistas. Numa loja indiana compramos especiarias, parece um cliché. A canela tem um cheiro muito mais intenso do que a comprada habitualmente noutros locais. Enchemos um saco com açafrão, caril, cardamomo, gengibre moído e canela. As ruas estão repletas de talhos halal, pequenos restaurantes com os menus variados expostos em fotografias nas tabuletas à entrada, mercearias a vender artigos do Bangladesh. Jantamos num restaurante local, entre Muçulmanos Paquistaneses e turistas de vários países ocidentais: mais brancos do que eu. Cristãos.  Reina  uma alegre tolerância e espírito de comunhão na pequena sala, à volta dos pratos.  Comida saborosa, variada, despretensiosa e acessível no preço. Perguntamos primeiro se podiamos beber álcool, afinal estávamos entre Muçulmanos. "No problem!". O empregado foi à mercearia do outro lado da rua pedir uma garrafa de vinho,  não havia álcool no restaurante. Poucos minutos depois entra um senhor com uma garrafa de Monte Velho e abre-a na nossa frente. Memorável!
Interior da Igreja de São Domingos




No largo do intendente, ouvimos blues de um pequeno bar e entramos para um copo. Um fulano, num gesto muito simpático e generoso, cede-nos o lugar.  Descemos ao Martim Moniz pela Almirante Reis e subimos ao Campo Mártires da Pátria para admirar a estátua do Dr. Sousa Martins, já de noite. Ex - votos colocados em redor atestam o misticismo e o culto que se formou à volta deste médico do século XIX. 
Velas e lápides de cemitério com agradecimentos pelos “milagres” e curas realizadas rodeiam o pedestal. Muito exoterismo e misticismo também, nesta bela Lisboa.
 
Painel de azulejos da  Viúva Lamego, Intendente

Estátua do Dr. Sousa Martins

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Na manhã seguinte entramos na igreja de São Roque,  a “igreja mais bonita de Lisboa”. Os frescos das capelas estão brilhantes e reluzentes, pintados de novo.  Foi  construída em 1505, no reinado de D. Manuel, quando um surto de peste atingiu a cidade.  A relíquia do santo foi encomendada a Veneza, para a auxiliar contra a doença.  Ficou guardada na ermida construída no local, que mais tarde foi ampliada e entregue aos Jesuítas. No museu há muitas peças religiosas. Destaco o cofre relicário Japonês, do séc. XVI,   provavelmente usado pelos missionários Jesuítas no Japão. Depois de ler o livro “Silêncio”, de Shuzaku Endo,  ter visto o filme homónimo de Martin  Scorsese e de conhecer as condições muito difíceis em que os missionários Portugueses pregaram no Japão, impressiona-me  este pequeno objeto, testemunha dessa época.

Cofre-relicário Japonês, séc. XVI


Da parte da tarde entramos na  igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha, de fachada Manuelina,  na rua Nova da Alfândega. Local onde os escravos africanos eram batizados quando chegavam a Lisboa. O seguimento com a rua do Arsenal era a “8ª avenida do século XVI”, a rua mais importante do planeta, onde havia produtos de todo o mundo que depois seguiam para outros destinos da Europa.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição Velha


Apanhamos o cacilheiro no Cais do Sodré até ao Cais do Gingal em Almada, a velha.

Do cais à rua Elias Garcia é um saltinho. Continua-se a subir  pela calçada do castelo até ao miradouro com o coreto e depois é o Tejo à nossa frente, imenso. Da ponte 25 de abril, à Vasco da Gama,  o largo mar da Palha. Tiro muitas fotografias desta panorâmica incrível.
Alguns restaurantes e  armazéns decadentes espalham-se pelas encostas e margem do rio. Descemos até ao “Ponto Final” e seguimos sentindo a aragem fresca e a ondulação suave nos areais,  até ao ponto de partida.
Busto de Elias Garcia, Rua Elias Garcia













segunda-feira, 1 de abril de 2019

O Chamado Desenvolvimento Sustentável (DS)



O conceito surgiu em 1987, redigido pela Comissão Mundial para o Ambiente e Desenvolvimento, das Nações Unidas, o relatório  Our Common Future,  que  ficou conhecido pelo  “Relatório Brundtland”,  nome da principal relatora, a primeira-ministra Norueguesa, Gro Harlem Brundtland. Tornou-se um  documento de referência internacional por formular o conceito de Desenvolvimento Sustentável: “Humanity has the ability to make development sustainable to ensure that it meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs”, (1) que deu origem ao texto em Português:  atender às necessidades das gerações atuais sem por em causa as necessidades das gerações futuras.
O Espanhol Juan Martinez Alier crítica-o, sem o referir diretamente,   por considerar que a pobreza é a causa da degradação ambiental.  “O Ecologismo dos pobres” (2) defende que o estado de pobreza de muitas comunidades leva-as a lutar pela preservação do meio ambiente: estando excluídas do mercado e tendo este a capacidade de transformar os recursos em bens transacionáveis, a única hipótese de sobrevivência e de autonomia das comunidades é defender  os ecossistemas, antes de serem usurpados pelo mercado. O autor critica, igualmente,  a integração dos recursos naturais na esfera económica, através de práticas científicas, como o uso de pesticidas e de maquinaria; a mercantilização das sementes, impondo aos camponeses novas práticas agrícolas, substituindo-as pelas tradicionais.  
A mercantilização do ambiente vai sendo promovida pelas Nações Unidas. O documento Millennium Ecosystem Assessment formula os serviços dos ecossistemas,  geradores de valor económico: uma perspetiva muito utilitarista da natureza.
O DS pode ser enquadrado num quadro conceptual, em “escada”, no qual se inserem diferentes interpretações e imperativos políticos (3), indo do modelo mais antropocêntrico e utilitarista da natureza, que incluí medidas de regulação da poluição - tipo comando e controlo - exploração de recursos,  crescimento económico, Sustentabilidade Fraca e Forte e terminando no  Modelo Ideal, ecocêntrico, no topo da escada. O último modelo atribui valor intrínseco à natureza, corresponde a modelos de democracia participativa, descentralização política, organização de estruturas sociais da base para o topo, internalização das consequências ambientais e definição de limites à exploração dos recursos.  Promove os princípios de justiça, equidade, responsabilidade e a satisfação das necessidades em detrimento dos desejos,  estabelece ferramentas para a autossuficiência.
O DS na sua versão fraca, na base da escada,  considera que os ganhos são medidos em termos de stock de capital acumulado (CA):  o capital material (CM), que resulta  do desenvolvimento tecnológico e material, mais o capital humano (CH) - a quantidade de conhecimento existente - compensa a perda de capital natural  (CN),  os recursos do planeta:
                            CA = [CM + CH] + CN 
É possível, de acordo com a equação, deixar às gerações futuras uma reserva de capital agregado não inferior ao atual (4). Teoria muito cómoda para justificar o crescimento económico continuo,  contudo  impossível. A extração de recursos   acabará inevitavelmente por se deparar com os limites biofísicos do planeta, colocando em causa o DS, na sua versão fraca. Não haverá capital humano ou tecnológico que valha. 
Destas ambiguidades concetuais resultaram apropriações oportunistas de políticos e empresas, que fizeram uso da maior sensibilização ambiental para fazer ambientalismo de fachada “Cosmetic environmentalism” (5) e muitas desilusões, relacionadas não só com os limites biofísicos, mas também sociais do planeta, agravados pela distribuição desigual da riqueza, gerada pelo crescimento baseado no modelo económico tradicional.
As Nações Unidas talvez estejam a dar azo a este ambientalismo de fachada com os seus documentos que continuam a promover e a fazer acreditar que é possível conciliar crescimento económico com proteção do ambiente. Não há crescimento verde, como atestam relatórios científicos muito credíveis (deverão ler este documento), apesar de continuarem a insistir no contrário. 


(1)     United Nations. (1987). Our Common Future. Report of  the World Commission on Environment and Development. Disponível em https://sswm.info/sites/default/files/reference_attachments/UN%20WCED%201987%20Brundtland%20Report.pdf
(2)     Alier. J.M (1992). O Ecologismo dos Pobres. In revista WANI. Nº 125, Abril de 1992 (pp. 42 a 50)
(3)     Baker, S. (2006). Sustainable Development. Routledge.
(4)     QUEIRÓS. M (2003). Questões para uma agenda contemporânea do desenvolvimento sustentável. Revista da Faculdade de Letras. Geografia I série. XIX. 331 – 343. Porto.
(5)     ROBINSON. J. (2004). Squaring the circle? Some thoughts on the idea of sustainable development. Ecological Economics. 48. 369-384. Elsevier. doi:10.1016/j.ecolecon.2003.10.017