domingo, 15 de setembro de 2019

Festa da Senhora da Ajuda

A maior riqueza de Portugal são os  emigrantes. Todos os que saíram e voltaram mais conhecedores, do contacto com diferentes povos e culturas, fazem o país mais cosmopolita e aberto. Facilmente se encontra um português que fala pelo menos uma língua estrangeira - o castelhano não conta - que aprendeu no país onde viveu. Esse cosmopolitismo reflete-se na pátria, torna o povo mais receptivo aos outros, influencia a percepção que a família e os  amigos têm de países, sem nunca terem lá estado. 
O Português é bom em geografia. Não é qualquer povo que sabe onde fica Timor, ou Luanda. Milhares regressaram de África, após a independência das ex-colónias. Uma percentagem significativa da população nasceu noutro continente. Os filmes e séries televisivas  não são dobrados em Português, ouvem-se na língua original. O som e o sotaque de outras línguas é familiar. Quando o turista aborda o Português, logo ele começa a falar, ou a tentar falar, arranhando o melhor possível, a língua estrangeira. E se for desconhecida, gesticula bastante para melhor ser entendido. Procura uma língua comum. Tenta   qualquer idioma, menos o seu.
É elogiado por isso. Os turistas surpreendem-se com a fluência linguística e a facilidade de comunicar dos portugueses.

…… 

As festas de Verão estão a acabar. A Senhora da Ajuda celebra-se em vários sítios: Espinho, Eira, Santa Maria.
Não é tão sumptuosa como em Espinho. Não se fazem tapetes de flores de sal na rua, nem há milhares de pessoas a assistir à procissão. Apenas humildes centenas. De qualquer forma, foi muito interessante ver: a abrir, o grupo de tambores e percussão de lever, com as marjoretes adolescentes na frente do cortejo; depois, a Nossa Senhora da Graça, o Santo António, a Santa Rita e a Senhora da Ajuda, levados no altar aos ombros dos escuteiros e dos estudantes com traje académico do Minho. Aprumados e formais. Toaletes femininas domingueiras a assistir. Mães comovidas com os seus filhotes vestidos de anjinho a desfilar na procissão. 
O pálio trazido pelos confrades, de batina branca e debruns dourados. O senhor Pároco, debaixo dele, solenemente trajado, leva a cruz. Nas  alas, vão as candeias e os círios. A banda filarmónica do Loureiro, de São João de Ruivo, a marcar o compasso da procissão. Um magote de gente segue atrás, até à capelinha. A polícia desvia o trânsito. 
Os foguetes rebentam no céu, nas barbas da autoridade. Legalmente é proibido lançar foguetes devido ao risco de incêndio, mas ninguém cumpre a lei. Por precaução, o carro dos bombeiros está em prontidão no largo do coreto, não vá o diabo tecê-las. 
Em redor  dos dois coretos, quatro barraquinhas de comes-e-bebes, bijuterias e o palco onde vão atuar os "Irmãos Leais" - uma banda local, histórica e mítica, mais antiga do que os Xutos e Pontapés. Famosa por atuar de fato de casamento branco e  camisas pretas a contrastar, impecavelmente engomadas. Apareciam nas capas dos vinis dos anos oitenta e das cassetes vendidas nas feiras, jovens, elegantes, gel no cabelo, em pose de artistas. Não fiquei para ver. 
A verdadeira ermida da Senhora da Ajuda fica mais escondida, numa rua estreita com muros de granito e uma grande quinta abandonada.

O interior denota a influência do rococó brasileiro. O pequeno altar em talha dourada, a Santa reluzente numa expressividade barroca: Século XVIII, não há dúvida. 

Que bem que tocam!






domingo, 1 de setembro de 2019

Monsanto

Capela de Santa Maria do Castelo, Monsanto 

Jantamos no restaurante "Ó Serrano, magia da serra". O anfitrião, o senhor José Pinho, pede a atenção: aproxima-se da mesa de um casal espanhol de Bilbau e dedica-lhes, em castelhano, um poema de Pablo Neruda. Os clientes interrompem o jantar para ouvir. Aplaudem. Depois, "um pequeno poema  de um autor local", diz. Declama em Português, com ênfase. Apanho algumas partes:

 mulher
 corpo nu
 cabelo cintilante
 braço despido
 perna sedosa
 deusa
  amor
 cama

Aplausos. 
Pergunto quem é o autor. Responde com um sorriso e disfarçada humildade, "Sou eu".  
O menu tem um texto sobre a infância na freguesia de Melo, onde nasceu, do outro lado da serra, retirado do livro infantil, que escreveu:" Na Serra da Estrela - Uma história de pasmar". A mesma de Vergílio Ferreira. "Nunca na sua obra referiu a aldeia. Eu, pelo contrário, gosto muito de falar nela." 
Mais tarde, entra na sala com um cálice de licor de cereja, olha para mim, faz referência à minha calvície: "Aquele senhor calvo como eu."  Ri. Eu rio. Os outros clientes riem. Acha que tem piada. Faz um brinde e declama emocionado, "mais um poema meu".

Transcrevo  a ideia:

Andamos juntos amor
sempre nos conhecendo
vivendo e amando
com paciência 
ao fim de muitos anos
 com amor

O casal Espanhol, que já tinha acabado de jantar, sai rapidamente, antes de começar a ouvir o poema. 
Os outros clientes interrompem a refeição. Mais aplausos. 

A sua segunda esposa, bastante mais nova, a D. Idalina, trabalha no restaurante. Serve-nos uma sobremesa tradicional, feita por si: papas de carolo,  com farinha de milho. Deliciosas e fresquinhas. 

No pagamento, coloco algumas moedas na lata das gorjetas. "O senhor merece uma canção". Sai de trás do balcão, eleva o braço e a voz:

Obrigaaado
Obrigaaado
Muito Obrigaaado

As mulheres da cozinha - o senhor José Pinho é o único homem que trabalha no restaurante - observam  divertidas o patrão, bem mais velho do que elas. 




Monsanto

Estou nesta região de Portugal, Beira Baixa, distrito de Castelo Branco, pela primeira vez. Há muito que desejava visitar algumas  das suas aldeias históricas. 
Da região, conhecia apenas o folclore, presente em  canções de Zeca Afonso, nas recolhas de Michel Giacometti e nas adufeiras de Monsanto. 

Senhora do Almortão 
Virai olhos a castela
Não queirais ser Castelhana

A música tem um sentido épico e trágico.  Com a percussão do adufe, tocado por um grupo de senhoras de roupas escuras e lenço  na cabeça, fica grandiosa. 
Guerras de fronteira e violência entre os reinos de Portugal e Castela. Magias, sortilégios, medos.

Contudo, a única música que ouvi foi das gaitas de foles de um CD, no bar  celta "Lusitanicum". 
Em Monsanto, impera o silêncio. Exceptuando os ocasionais turistas que deambulam pelas ruelas - maioritariamente Castelhanos ! - há pouca gente na aldeia.
Nas ruínas do castelo, na hora de maior calor, até as cigarras estão caladas. 
Neste sítio, contempla-se o silêncio e o fluir do tempo.  
Torre do Relógio 




Capela de São Miguel





Idanha-a-Velha 

Quase ninguém, apenas dois velhos sentados no exterior da porta e uma senhora a quem compro piri - piri caseiro: "O Piri - piri do Zé".
 De resto, é o silêncio absoluto e um calor opressivo. Andar é cansativo. Talvez  as outras pessoas estejam a dormir a sesta. Caminho sem ver mais ninguém. 
As igrejas e as velhas ruínas  são relíquias de um passado importante, em que Idanha-a-Velha foi cidade Romana e Visigótica e  se chamou Egitânia. Hoje, são fantasmas a assombrar o presente, que me deixam perplexo e com muitas interrogações:
Como é possível ter todo este património e tão pouca gente aqui? 
Que reviravoltas históricas e sociais se deram para que hoje, Idanha-a-Velha, esteja assim, praticamente abandonada? 
Que país é este, que desconheço, e me ultrapassa completamente? 


Há uma praça de oliveiras, em  chão de xisto, e um chafariz com  relógio de sol, vazia na hora do calor. Experimento caminhar descalço sobre as Lajes quentes. 



Azinheira Velha






Penha Garcia

Surpresa. Por trás do Castelo, a paisagem muda radicalmente. O rio Pônsul corre no fundo de um vale abrupto, entre muros de xisto. Do alto, avisto a barragem e uma praia fluvial, a que não resisto. Desço pelo outro lado da vila e dou um mergulho. Um percurso pedestre, cruza  fósseis e moinhos. 
Vejo na estrada a saída para a aldeia de São Miguel da Acha. Recordo outro Beirão famoso, Eugénio Andrade e alguns versos seus: o canto das cigarras, o sol a pique sobre o branco da cal e as   cabras, "Essas grandes putas". 
Gruta da Lapa





Praia Fluvial do Pego, Penha Garcia