![]() |
Miradouro do Alto da Pegadinha |
Cheguei a Quintandona com o livro
de Sebastião Salgado na bolsa, não sei porquê. Ia preparada para a caminhada circular
de 10 km que começa na aldeia. No entanto, chovia e o tempo estava sombrio. Decidi
deambular por ali, onde estava pela
primeira vez.
Entrei sem ver ninguém. As ruas
estreitas sossegadas, ladeadas por casas de xisto, de muros altos, recentemente
restauradas. Algumas com letreiros nas lajes, de restaurantes e tascas fechadas.
A aldeia parecia viver a ressaca do fim de semana anterior, em que milhares de pessoas a visitaram para o
festival do Caldo de Quintandona. Os
únicos locais abertos, e com pessoas, eram o posto de turismo e a tasca do
Aguieiro.
No posto de turismo, deram-me
informações sobre o trilho e o baloiço no alto da Pegadinha. Comprei às senhoras
que lá estavam maracujás e uma fatia de bolo caseiro. Desci à tasca, comi
rissóis e pataniscas, bebi um vinho
branco maduro que a dona retirou do garrafão de 5 litros para o copo de barro
vermelho – tudo produtos locais, confecionados pelas senhoras da aldeia: exceto o vinho, obviamente; mas que também devia ser da região.
Sentei-me no baloiço da tasca e
abri o livro do Sebastião Salgado. Vi algumas imagens, li algumas das suas reflexões. Não fazia
sentido estar ali sentada, sem conhecer as pessoas e a aldeia, com um livro biográfico
de um fotógrafo brasileiro. Enfastiei-me com a leitura, fechei o livro. Talvez
fosse mais apropriado ler Camilo Castelo Branco: o casario e o ambiente local
estariam mais próximos da realidade descrita pelo autor português.
Dois homens encostaram-se ao
balcão, a beber vinho e a comer bifanas – achei aquilo mais português, mais
Camiliano. Observei discretamente, fiz de conta que continuava a ler. Um deles
foi ao carro buscar qualquer coisa, ligou o autorrádio no volume máximo. Ouvi marteladas
de música pimba a sair estridentes do interior. Desligou e regressou ao balcão para continuar a beber
com o parceiro. Deu-me a impressão de que conheciam a mulher que os servia e que
deviam ser clientes habituais.
Julgo que estariam intrigados
comigo: o que faria ali uma mulher sozinha a ler um livro, sentada no baloiço? Talvez
a ida ao carro, que estava próximo, fosse
apenas uma desculpa para me observar melhor.
Afastei-me. Fui a pé ao Alto da
Pegadinha. No posto de turismo disseram-me que demoraria 50 minutos, passando no centro
da freguesia de Lagares, pela estrada nacional. Um carro abrandou ao meu lado,
o vidro abriu – vinham lá dentro os dois homens da tasca – o passageiro perguntou:
- A menina anda perdida?
Fiz de conta que não ouvi. Olhei discretamente
para os lados em autodefesa, havia casas, pessoas, carros a passar. Gritaria e
enfiar-me-ia pelo quintal ao lado, se necessário.
- A menina não se preocupe,
vimo-la na tasca do Aguieiro sentada no baloiço, lembra-se? Eramos nós que lá
estávamos. Somos gente hospitaleira e como anda por aqui sozinha só queremos
ajudar – disse ele.
Talvez fossem sinceras as
palavras. Dei uma resposta diplomática que, ao mesmo tempo, os despacharia e mostraria
que não estava tão vulnerável como aparentava.
- Muito obrigado, meus senhores.
O meu marido vem ao meu encontro desde Lagares, deve estar a chegar no carro
para me apanhar.
- Esteja à vontade, vá com
cuidado pela estrada - aceleraram, afastaram-se pela encosta acima.
O que havia de dizer? quando uma
mulher anda sozinha desculpa-se sempre com o marido que está a chegar. Não é
original, mas foi o que me lembrei no momento.
No caminho de terra e alcatrão esburacado para o Alto da Pegadinha, motards faziam piruetas com as motos,
levantavam uma poeira enorme no ar. Subi ao
miradouro. O tempo estava sombrio, a ameaçar chuva. Nuvens carregadas pairavam cada
vez mais próximas, trazidas pelo vento: resquícios do furacão Gabrielle a fazerem-se
sentir no continente.
Estava completamente sozinha, os
motards lá em baixo, distantes, a afinar as motos. Abri os braços ao vento e
gritei:
- My name is Joana. I am the
queen of the world – as minhas
palavras ecoaram nas encostas das colinas circundantes.
Abriguei-me na rocha, voltei a
abrir o livro de Sebastião Salgado: Da Minha Terra à Terra. Reli a epígrafe na dedicatória que a minha amiga Maria Madalena escreveu quando o ofereceu:
O fascismo é a redução do
pensamento, é obrigar as pessoas a pensarem da mesma forma. Não gosta do
contraditório, de zonas cinzentas e da complexidade. Não aceita discursos
racionais e ponderados.
Sem comentários:
Enviar um comentário