sábado, 9 de agosto de 2025

Praia do Almoxarife



Depois de um dia passado no Pico,  a reviver memórias, a mergulhar em pequenos portos de águas tépidas e a rever aldeolas de adegas garridas entre vinhas negras - contrastes de paisagens cristalinas que parecem ter sido desenhadas propositadamente por um arquiteto paisagista para deslumbrar os visitantes - regressamos à Horta.

Vamos às compras e à praia, o carro fica com os vidros abertos para arejar o calor húmido e sufocante dos dias. Esquecemos as chaves na ignição, os documentos e o cartão de crédito. Regressamos: o carro continua intacto, no mesmo sítio, vidros abertos, documentos no porta-luvas. Segurança, tranquilidade e liberdade, assim são estas pequenas ilhas, onde as pessoas se conhecem umas às outras. Roubar um carro para quê? fugir para onde com ele?
O frigorífico está cheio de peixes congelados: enxaréu, bicuda, bodião, peixe-porco, bocanegra, veja, robalo, lírio, atum. Peixes dos Açores, grelhados nestes dias, escalados na chapa, na esplanada com vista para o Pico.
- O problema das ilhas são os mexericos, toda a gente fala dos outros. Um vez, não apareci no café onde costumo ir. Quando me viram, perguntaram logo onde estive a essa hora. Não há privacidade social, somos controlados e vigiados inconscientemente por todos. Nas ilhas pequenas é pior.
Conversa ao jantar entre amigos. Mesa farta: vinho, lombos de atum, doces dos Açores - espécies de São Jorge, tarte de café da Fajã dos Vimes, massa sovada - a melhor das ilhas! - da Praia do Norte, do Faial. Cigarrilhas da Fábrica de Tabaco Micaelense e cálices de Jameson. Continentais que vivem nas ilhas, descobrem conhecimentos comuns e lugares frequentados por ambos. O mundo é pequeno. Estou num lugar distante, no meio do Atlântico, sinto-me no centro do mundo, em casa. Jogamos o jogo tradicional da Ramalhinha, num tabuleiro sólido de madeira, à venda em fabricantes exclusivos dos Açores. Sem televisão nem telemóveis, como antigamente. A luz das velas substituída pelo luar da lua cheia sobre a varanda.
O mundo seria perfeito se não ligasse os dados móveis, não consultasse o FB, nem o Instagram, se não estivesse atento ao mundo alucinante lá fora: aniquila-se Gaza, mata-se um povo à fome. Em Inglaterra, um grupo de ativistas lança tinta em aviões militares que matam crianças em Gaza, é ilegalizado, considerado terrorista. O governo que destrói e mata palestinianos inocentes não sofre uma única sanção! Arranjam-se as explicações mais estapafúrdias para justificar o injustificável. 
Pico

Pico

Pico

Pico


Faial

Faial

Faial 

Faial 

Faial

Faial


terça-feira, 5 de agosto de 2025

Fajã da Caldeira do Santo Cristo

Descemos devagarinho por uma estrada íngreme, em segunda, os travões a cheirar a queimado. Estradas medonhas, repletas de perigos - alguns evitáveis,  conduzindo com muita precaução - e outros, inevitáveis, provocados por deslizamentos de rochas que causam acidentes graves e aleatórios. Lá em baixo, a Fajã dos Vimes, o único ponto do território português - talvez da Europa - onde se produz café. O senhor Nunes produz, torra, mói e vende o seu proprio café. Uma das várias produções familiares da fajã. Bebemos chávenas, reconfortantes e leves. Compramos um pacote de 5O g - acabado de moer e de ser empacotado - como recordação. 10€!! Excessivamente caro, só o compramos porque não voltaremos tão cedo à Fajã dos Vimes. 

A Fajã da Caldeira de Santo Cristo é a rainha das fajãs. A caminhada desde os Cubres, ida e volta, demora três horas, nas calmas. O velho e estreito trilho na encosta da montanha foi repisado e alargado para permitir a passagem de moto4. Cruzámo-nos com algumas motos4 que transportavam turistas idosos - o ar tóxico do cano de escape entra-nos pelas narinas - e com outros, a pé. Após estes breves encontros,  ficamos novamente a sós, usufruindo o esplendor paisagístico do cenário grandioso que nos envolve. O recorte da pequena ilha Graciosa distingue-se rodeado de nuvens brancas e reflexos espelhados do céu e do mar, duas colinas suspensas pairando etéreas no horizonte azul.
















segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Ribeira do Nabo

Os blogues de viagem são autênticos compêndios turísticos do mundo, apresentam informações completas, muitas páginas, links, designs atraentes. Repletos de dicas para viajantes, escritos por gente bonita, que largou tudo ou passa uma parte da vida em viagem, a solo ou em casal. Vivem de patrocínios, publicidade e donativos. Geram um mercado de blogues e de viagens. Promovem estilos de vida viajeiros, para todos os continentes e países, dos mais próximos aos mais remotos. Dão sitios a conhecer, a visitar, onde comer, ficar, a melhor altura do ano para ir. Uniformizam gostos, procedimentos, modos de viajar. O que, ao início, era exclusivo e inédito, passou a ser acessível a várias carteiras. Sitios a salvo da massificação turística, vivendo de atividades económicas tradicionais, modos de vida comunitários e ancestrais, desaparecem lentamente.

Os Açores que eu conheci não existem. Estão lá as paisagens, as cores, a história, a arquitetura tradicional, o silêncio. As pessoas não são as mesmas, foram envelhecendo e, sem darem por isso, mudararam com o tempo, o advento do turismo, alterando hábitos e rotinas. As ilhas tornam-se iguais a outros destinos: restaurantes caros servem pratos internacionais; turistas vestem as mesmas marcas de roupa, independentemente da nacionalidade - roupa pratica, cómoda, versátil. Os preços da habitação disparam: é difícil encontrar alojamento acessível - os locais preferem alugar um apartamento a turistas sazonais do que alugá-lo todo o ano a trabalhadores do continente. Grupos organizados da Alemanha, Itália e França realizam trekkings nas fajãs de São Jorge, sobem a montanha do Pico, exploram trilhos maravilhosos. Um paraíso para os amantes das caminhadas, devido ao clima ameno, à diversidade de cores e às paisagens fulgurantes em curtos espaços.


O adolescentes regressam ao Pico, das festas do mar, no barco das 07h00m da manhã. Dormem ressacados, deitados nos bancos, estendidos no chão do convés. O som das notícias transmitidas pelas televisões das cabines espalha-se pelos altifalantes do navio Mestre Jaime Feijó: incêndios no continente, engarrafamentos na segunda circular, fome e destruição em Gaza. É anacrónico ouvir as notícias do país e do mundo nesta pequena viagem de barco entre o Faial e São Jorge. Aqui, o tempo parou, o mundo está em paz. Contudo, a intoxicação permanente das notícias e da realidade cruel também chega a este remoto lugar. Preferia que o mau gosto das televisões, de transmitir permanentemente a desgraça, estivesse desligado. 

Vou sentado na popa, de costas para a ilha. O vento aprazível bate na cara, previne o enjoo da viagem. Os contornos das ilhas do triângulo vislumbram-se no alto mar: três ilhas, três mundos sedutores, misteriosos e inefáveis.  

O cone do Pico desponta acima da nuvem, imponente e majestoso. O barco atraca nas Velas," São Jorge tem um cheiro único", diz Dinis. 

Alojámo-nos numa casa rural na Ribeira do Nabo: simpatia e generosidade de uma amiga da nossa amiga. Reduzidos ao simples e essencial fruiremos o convívio, a amizade e a beleza da ilha. Uma vaca muge no serrado com vista para o Pico. Cedo, nas manhãs seguintes, voltarei a ouvi-la. Passaremos os dias a descobrir paisagens e a explorar portinhos.

- É uma falácia conhecer São Jorge pelas fajãs, a ilha tem muito mais portinhos para descobrir do que fajãs.

Piscinas naturais de água deliciosa e translúcida, entre rochas e pequenos cais de pesca, polvilham a longa costa. Um mundo de possibilidades para explorar locais de mergulho e de lazer. 

Americanos de sotaque serrado chegam ao pequeno areal de rocha negra, falam alto. Afinal, são portugueses, açorianos, nascidos na Urzelina, a viver em Toronto. Nunca foram ao Continente, vivem no Canadá desde miúdos. 

No portinho da Calheta, um americano queixa- se da temperatura da água. Também é português. Viveu na Califórnia trinta e seis anos e, apesar de estar habituado às águas frias do Pacífico, está-lhe a custar entrar.

O Dinis empresta-me os óculos e o tubo de mergulho. Vejo pequenos peixes de cores garridas, nadam encostados às rochas cobertas de algas verdes e castanhas, escondem-se fugidios nas cavidades. 

Fazemos um intervalo na hora de maior calor. Vamos à Calheta à procura de um casal conhecido de longa data, que não vemos há muitos anos. Batemos à porta:

- a sua cara não me é estranha.

Depois de algumas hesitações e suspense propositado para os obrigar a puxar pela memória: sorrisos, beijinhos, abraços. 

O tempo passa rápido, as pessoas, as recordações ficam. Subitamente, o que estava esquecido, arrastado para o fundo da memória, surge vívido como se tivesse sido ontem: basta mudar de lugar e reencontrar gente que, por alguma razão, se cruzou connosco num momento da vida.









sábado, 2 de agosto de 2025

Faial


Um dos poucos autocarros que passa na rua, no Sábado, chega atrasado. Temos de fazer transbordo. Esperamos o segundo autocarro nos Carvalhos. Demora. Os passageiros à espera exasperam-se com os atrasos, queixam-se do incumprimento dos horários e da alteração das carreiras, sem aviso prévio. A paragem tem placas em dois sítios diferentes. Numa delas, tenho de me pôr na rua, de costas para os carros, para consultar as linhas. Que perigo! 

- Aqui estamos muito isolados - diz uma senhora que consulta o tempo de espera na aplicação moovit.

Apanhamos um autocarro que não estava previsto. Hora e meia depois de sairmos da casa dos nossos amigos, chegámos à estação de metro D. João II. Em viatura particular, levaríamos  vinte minutos, apenas.  Sem engarrafamentos.

A partir do centro de Gaia, tudo se torna mais eficiente, pontual e previsível. Na estação da Trindade, mudamos para a linha violeta em direção ao aeroporto. Carruagem tipo shuttle, moderna e confortável. Viagem tranquila.

O voo para Ponta Delgada parte com uma hora de atraso. Perdemos a ligação da SATA à ilha Terceira e, depois, o voo para o Faial. Recebo uma mensagem no telemóvel:


A SATA informa que foi reacomodado para o voo SP1438 PDL PIX de 02/08/2025 às 20:20. Para consultar os seus direitos e assistencia, clique aqui azrair.com/direitos. Boa viagem.



Passamos as horas no terminal do aeroporto de Ponta Delgada. Comemos duas pequenas refeições com os dois vouchers que a companhia aérea nos ofereceu, como indemnização. O pequeno terminal está apinhado de turistas com roupa de trekking: os Açores são do melhor que há para caminhar: mar, montanha, sítios planos, ribeiras, lagoas, diversidade de paisagens e um clima delicioso, constante. Tudo num pequeno espaço.

O Bombardier Q-400 velhinho, de 86 lugares, parte lotado para o Pico. Os motores nas asas ao nosso lado fazem um ruído pouco tranquilizador, os compartimentos da bagagem de cabine e a fuselagem rangem por todos os lados, parece que o avião se vai desconjuntar durante o voo. Abaixo de nós, o imenso algodão de nuvens brancas paira sereno sobre o mar.

A montanha do Pico mostra-se no lusco fusco fulvo quando aterramos na pista. Temperatura amena, o sentimento de chegada a um sítio distante, de clima diferente. Respira-se o ar livre e desimpedido do Atlântico, o cheiro da terra frágil e porosa da ilha. 

Receamos não ter táxi para chegar à vila da Madalena e apanhar o barco para a Horta. São nove e meia e outros como nós esperam que surja alguém no meio da noite com transporte para algum lado. Partilhamos táxi carrinha com dois casais estrangeiros. O condutor passa o recibo para pedirmos retorno à SATA.

Estamos com sorte. Graças às Festas do Mar, a decorrerem na Horta, há barcos até tarde. Explicamos na bilheteira a nossa situação e o direito a viagem gratuita.

- Não se preocupe, senhor. Já estamos habituados aos atrasos da SATA. Não precisa de apresentar comprovativo, nem de pagar. 

Recebemos os bilhetes. Dei uma volta pela Madalena. Vi pouca gente e muita pacatez num sábado à noite.

Chegam ao cais grupos de adolescentes que vão passar a noite nas festas.

Entramos no "Gilberto Mariano". Finalmente, chegamos ao nosso destino, na ilha do Faial: às 23h30m. Um dia inteiro,  com atrasos, voos perdidos, poucos taxistas, e a incerteza permanente de saber se chegaríamos hoje. Os pequenos imprevistos fazem parte da aventura de viajar aos sítios mais distantes e isolados. E nem sequer é inverno nos Açores, quando acontecem cancelamentos mais frequentes!

- Imaginem se vocês estivessem com o tempo contado,o incómodo que isso vos causava. Realmente, ainda estamos muito isolados!! - diz a nossa amiga ao chegar a casa.

Igreja da Madalena, ilha do Pico

A bordo do "Gilberto Mariano"