sexta-feira, 30 de maio de 2025

Gaza

 


O João anda revoltado com a crise em Gaza, colocou uma bandeira do país e publicou um texto no seu mural do FB. Recebeu likes e frases a apoiá-lo, de pessoas igualmente transtornadas a assistir a uma tragédia sem fim à vista, perante a passividade da comunidade internacional. Também recebeu comentários irados, ameaças veladas e insultos de desconhecidos que ele julga serem, na maior parte dos casos, perfis falsos que intoxicam as redes de desinformação e discursos justificativos da agressão. Farto de tanta exposição e do assédio permanente de haters  anónimos, retirou o post. Pensou passá-lo para o meu blogue. Hoje em dia, quase ninguém lê blogues, anda toda a gente entretida em plataformas mais imediatas e rápidas. No meu, ficaria resguardado, continuando a ter o texto disponível na net. Aceitei postá-lo sem qualquer problema. Sou tolerante, compreendo os dilemas interiores. O João é uma pessoa sensível, inconformado e atento às questões sociais, e ao que se passa no mundo. “Claro que sim”, entusiasmei-o, “não ficarás sem voz e Gaza não será esquecida.”

Tenho amigos israelitas, alguns participam regularmente, em Telavive, nas manifestações a favor da libertação dos reféns, a maior parte deles detesta o seu primeiro-ministro, não obrigatoriamente pelas mesmas razões de quem está fora de Israel. Não sei se estão chocados com os milhares de mortos em Gaza, com a utilização da distribuição alimentar como instrumento de guerra e de chantagem, se a informação que lhes chega é fidedigna. Contacto pouco com eles e não quero ter a indelicadeza de abordar com alguém tão próximo do conflito um assunto sensível e socialmente fraturante. Os nossos contactos são cada vez mais escassos.  

Se algum dia lerem o texto que se segue com certeza compreenderão as razões pelas quais decidi fazer o favor ao João. Sem hesitar. Se não concordarem com os seus argumentos, continuarei na mesma a ser amigo deles.

 

“Salta à vista a duplicidade europeia e dos mass media convencionais. A insistência nas sanções e notícias sobre a Rússia: “mais um pacote de restrições ao comércio com o país”, “mais um ataque terrível de Moscovo a Kiev: um dos piores desde o início da guerra”. Notícias e reportagens extensas nos principais canais e noticiários televisivos,  direito a repórteres no local e comentadores residentes a abordar o conflito sob os mais diversos prismas. Discursos constantes em defesa do aliado ucraniano, vítima da ignomínia do vizinho russo e do seu presidente, a encarnação do mal na Terra: Vladimir Putin.

Decretaram-se sanções económicas à Rússia, proibiu-se a participação de clubes e atletas russos em competições desportivas internacionais e no Eurofestival da canção, enquanto não terminar a agressão à Ucrânia. 

Do outro lado, Gaza. A morte diária de dezenas de pessoas, a maioria crianças, bombardeadas e deliberadamente impedidas de receber alimentos, recebem notícias e reportagens breves, habitualmente de correspondentes em Israel, sem direito ao mesmo tempo de antena e horário nobre da Ucrânia.

Os dirigentes europeus mostram-se “preocupados” com as atrocidades cometidas por  Israel. Nada mais. Até hoje, não se decretou qualquer sanção económica: o país continua a participar nas principais competições desportivas internacionais e no Eurofestival da Canção. 

A European Broadcasting Union (EBU) refere que o Eurofestival é um evento inclusivo e neutral, não mistura política com música: Israel não pode ser expulso (mas a Rússia foi!).

Falta ética nas relações internacionais. Os países usam as palavras “Democracia”, “Paz”, “Liberdade”, “Direitos Humanos” em vão, consoante as conveniências do momento e os jogos de estratégia no tabuleiro internacional. Os discursos moralistas de dirigentes europeus e as decisões de apoio determinado á Ucrânia caem por terra ante a passividade em relação a Israel: não passam de hipocrisia e cinismo. O mundo assiste impotente à destruição de Gaza, assobia para o lado, como sempre fez.

Israel foi empurrando os palestinianos, cercando-os com muros e Checkpoints, dificultando o acesso à água e ao mar, aos terrenos de oliveiras centenárias pertencentes durante gerações às mesmas famílias, em Gaza e na Cisjordânia. Inviabilizou a existência de um estado.

O ataque do Hamas, de 7 de Outubro de 2023, constituiu o argumento perfeito para Israel destruir de uma vez por todas o que restava de uma sociedade e de um território minimamente organizado e habitável. Gaza está a ser terraplanada. A Cisjordânia, governada pela Fatah - rival do Hamas -, sofre a impunidade dos colonos judeus, que atacam e matam palestinianos com a cumplicidade do exército. Centenas de Cisjordanos foram presos e mortos desde 7 de Outubro.  A missão diplomática europeia foi atingida por disparos das IDF, perto de Jenin, por “sair da rota”. O exército israelita põe e dispõe à sua vontade do que se passa dentro da Cisjordânia. A Europa mostra-se “indignada” e exige “explicações”. O episódio passou e, no dia seguinte, mais ninguém falou dele: um fósforo que se apagou mal acendeu – tal como muitas outras vezes. A representante europeia da política externa, Kaja kallas, criticou Israel pelo bloqueio à entrada de ajuda humanitária em Gaza - 80% proveniente de países europeus. Concluiu, no entanto, que continua a colaborar com Israel para resolver a crise. A UE prefere colaborar com o infrator, responsável pela crise humanitária, a impor-lhe sanções, como faz à Rússia.

Ouvem-se esporádicas vozes de indignação e pouco mais. As manifestações pró-palestinianas, parcamente noticiadas e fortemente dissuadidas pelos governos europeus, são logo rotuladas de incentivos ao ódio contra Israel e antissemitas. 

A extrema-direita cresce em Portugal e na Europa, recorre a discursos agressivos contra os imigrantes, insulta as vozes dissonantes, ataca a multiculturalidade e os direitos das minorias.     Aliada de Israel, utiliza os mesmos métodos de comunicação.  Quem discorda é apelidado de “Esquerdalha”, “Comunista”, “Extrema-esquerda”, “Amigo de terroristas”. Inviabiliza-se qualquer discussão séria e complexa quanto às causas da guerra na Ucrânia e da situação na Palestina. O ruído, o esbracejar rancoroso contra qualquer tentativa de explicação racional é intencional: serve para lançar uma cortina de fumo, ridicularizar pacifistas, aumentar o investimento na indústria de guerra e desinvestir na educação, saúde e ambiente.   Criminalizam-se as revoltas sociais em nome da luta contra a ameaça russa – se não o fizermos teremos em breve os tanques de Putin à nossa porta.  Mais vale investir em armamento do que remediar! É o consenso fabricado pelos líderes políticos e pela CS conivente.

Os países árabes mantêm um silêncio cúmplice, a crise de Gaza é para eles um tema embaraçoso. Prefeririam que o assunto fosse ignorado para não terem de justificar a sua inação à opinião pública nacional. Regimes ditatoriais brutais - como é o caso do vizinho Egito -  continuam a manter relações diplomáticas com Israel, manietados,  incapazes de tomar qualquer medida dissuasora das  atrocidades sobre a palestina. São os primeiros a trair as aspirações dos seus próprios povos, a reprimir violentamente os gritos de liberdade dos cidadãos nas revoltas das Primaveras Árabes. O Irão mostra-se perante a comunidade internacional o mais fervoroso apoiante da causa palestiniana,  abafou com mão de ferro as manifestações que há alguns meses colocaram milhares de pessoas nas ruas contra a obrigatoriedade do véu islâmico, a arbitrariedade da polícia dos costumes, a falta de liberdade de expressão e a crise económica.  

Os países são instituições, superestruturas, ao serviço de interesses acima dos seus povos, dominados por oligarquias apostadas no enriquecimento constante, promovido pelo fluxo de capitais transfronteiriços. O nacionalismo é uma palavra bacoca, usada para dar a falsa ilusão de pertença a uma pátria – as liberdades, os direitos e a dignidade humana de quem ali vive retrocedem sempre que se trata de defender o capital pelas elites.   No caminho ficam os escombros de um planeta destruído, ambientes naturais desaparecidos, povos e países arrasados. O povo palestiniano, martirizado aos olhos do mundo, sofre o mesmo destino das sociedades colonizadas, violência e expropriação.

Misturam-se fait-divers e espetáculo permanente na CS. Normaliza-se a chacina. As TVs  mostram no mesmo serviço noticioso a guerra na Ucrânia (ultraje por mais um ataque russo!), a fome em Gaza (de relance), os festejos do campeão, os destinos das próximas férias de verão, o calor nos próximos dias (bom para ir à praia!). No Instagram e FB, mulheres belas mostram o esplendor dos corpos (milhares de seguidores), o mundo cheio de sorrisos e gente feliz a toda a hora, pessoas magníficas e animais domésticos a fazer acrobacias (milhares de visualizações). A exposição crescente a gadgets tecnológicos e a jogos virtuais, a informação falsa e tendenciosa, aumentam o alheamento. A Terra está doente e a humanidade a adoecer física e mentalmente: insensível e cega a olhar o seu umbigo, distante de si própria, a tentar sobreviver no dia-a-dia num mundo crescentemente hostil. Crianças morrem esfomeadas, um povo é exterminado e a vida continua.

Qualquer filme, palavra, música, expressão artística a olhar para si própria, esvazia-se perante o silenciamento e a impotência de parar o massacre. A arte perde o sentido de transformar o mundo num lugar melhor, torna-se num objeto oco ao serviço da inutilidade e do poder de quem manda – em mais um instrumento alienante e conivente com a cegueira. Nada faz sentido perante o que está a acontecer em Gaza.” 

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