O João anda revoltado com a crise em Gaza, colocou uma bandeira do país e publicou um texto no seu mural
do FB. Recebeu likes e frases a apoiá-lo, de pessoas igualmente transtornadas
a assistir a uma tragédia sem fim à vista, perante a passividade da comunidade
internacional. Também recebeu comentários irados, ameaças veladas e insultos de
desconhecidos que ele julga serem, na maior parte dos casos, perfis falsos que intoxicam
as redes de desinformação e discursos justificativos da agressão. Farto de
tanta exposição e do assédio permanente de haters anónimos, retirou o post. Pensou passá-lo
para o meu blogue. Hoje em dia, quase ninguém lê blogues, anda toda a gente
entretida em plataformas mais imediatas e rápidas. No meu, ficaria resguardado,
continuando a ter o texto disponível na net. Aceitei postá-lo sem qualquer
problema. Sou tolerante, compreendo os dilemas interiores. O João é uma pessoa
sensível, inconformado e atento às questões sociais, e ao que se passa no
mundo. “Claro que sim”, entusiasmei-o, “não ficarás sem voz e Gaza não será
esquecida.”
Tenho amigos israelitas, alguns
participam regularmente, em Telavive, nas manifestações a favor da libertação
dos reféns, a maior parte deles detesta o seu primeiro-ministro, não
obrigatoriamente pelas mesmas razões de quem está fora de Israel. Não sei se
estão chocados com os milhares de mortos em Gaza, com a utilização da
distribuição alimentar como instrumento de guerra e de chantagem, se a
informação que lhes chega é fidedigna. Contacto pouco com eles e não quero ter
a indelicadeza de abordar com alguém tão próximo do conflito um assunto
sensível e socialmente fraturante. Os nossos contactos são cada vez mais escassos.
Se algum dia lerem o texto que se
segue com certeza compreenderão as razões pelas quais decidi fazer o favor ao
João. Sem hesitar. Se não concordarem com os seus argumentos, continuarei na
mesma a ser amigo deles.
“Salta à vista a duplicidade europeia
e dos mass media convencionais. A insistência nas sanções e notícias sobre a
Rússia: “mais um pacote de restrições ao comércio com o país”, “mais um ataque
terrível de Moscovo a Kiev: um dos piores desde o início da guerra”. Notícias e
reportagens extensas nos principais canais e noticiários televisivos, direito a repórteres no local e comentadores residentes a abordar o conflito sob os mais diversos prismas. Discursos constantes em defesa do aliado ucraniano,
vítima da ignomínia do vizinho russo e do seu presidente, a encarnação do mal
na Terra: Vladimir Putin.
Decretaram-se sanções
económicas à Rússia, proibiu-se a participação de clubes e atletas russos em competições
desportivas internacionais e no Eurofestival da canção, enquanto não terminar a
agressão à Ucrânia.
Do outro lado, Gaza. A morte
diária de dezenas de pessoas, a maioria crianças, bombardeadas e
deliberadamente impedidas de receber alimentos, recebem notícias e reportagens breves, habitualmente
de correspondentes em Israel, sem direito ao mesmo tempo de antena e horário nobre da
Ucrânia.
Os dirigentes europeus
mostram-se “preocupados” com as atrocidades cometidas por Israel. Nada mais. Até hoje, não se decretou qualquer sanção económica: o país continua a participar nas principais competições desportivas
internacionais e no Eurofestival da Canção.
A European Broadcasting Union
(EBU) refere que o Eurofestival é um evento inclusivo e neutral, não mistura
política com música: Israel não pode ser expulso (mas a Rússia foi!).
Falta ética nas relações
internacionais. Os países usam as palavras “Democracia”, “Paz”, “Liberdade”,
“Direitos Humanos” em vão, consoante as conveniências do momento e os jogos de
estratégia no tabuleiro internacional. Os discursos moralistas de dirigentes
europeus e as decisões de apoio determinado á Ucrânia caem por terra ante a passividade em relação a Israel: não passam de hipocrisia e cinismo. O mundo assiste
impotente à destruição de Gaza, assobia para o lado, como sempre fez.
Israel foi empurrando os palestinianos,
cercando-os com muros e Checkpoints, dificultando o acesso à água e ao mar, aos
terrenos de oliveiras centenárias pertencentes durante gerações às mesmas
famílias, em Gaza e na Cisjordânia. Inviabilizou a existência de um estado.
O ataque do Hamas, de 7 de
Outubro de 2023, constituiu o argumento perfeito para Israel destruir de uma
vez por todas o que restava de uma sociedade e de um território minimamente
organizado e habitável. Gaza está a ser terraplanada. A Cisjordânia, governada
pela Fatah - rival do Hamas -, sofre a impunidade dos colonos judeus, que
atacam e matam palestinianos com a cumplicidade do exército. Centenas de
Cisjordanos foram presos e mortos desde 7 de Outubro. A missão diplomática europeia foi atingida
por disparos das IDF, perto de Jenin, por “sair da rota”. O exército israelita
põe e dispõe à sua vontade do que se passa dentro da Cisjordânia. A Europa mostra-se
“indignada” e exige “explicações”. O episódio passou e, no dia seguinte, mais
ninguém falou dele: um fósforo que se apagou mal acendeu – tal como muitas
outras vezes. A representante europeia da política externa, Kaja kallas,
criticou Israel pelo bloqueio à entrada de ajuda humanitária em Gaza - 80%
proveniente de países europeus. Concluiu, no entanto, que continua a colaborar
com Israel para resolver a crise. A UE prefere colaborar com o infrator,
responsável pela crise humanitária, a impor-lhe sanções, como faz à Rússia.
Ouvem-se esporádicas vozes de
indignação e pouco mais. As manifestações pró-palestinianas, parcamente
noticiadas e fortemente dissuadidas pelos governos europeus, são logo rotuladas
de incentivos ao ódio contra Israel e antissemitas.
A extrema-direita cresce em Portugal e na Europa, recorre a discursos agressivos contra os imigrantes, insulta as vozes dissonantes, ataca a multiculturalidade e os direitos das minorias. Aliada de Israel, utiliza os mesmos métodos de comunicação. Quem discorda é apelidado de “Esquerdalha”, “Comunista”, “Extrema-esquerda”, “Amigo de terroristas”. Inviabiliza-se qualquer discussão séria e complexa quanto às causas da guerra na Ucrânia e da situação na Palestina. O ruído, o esbracejar rancoroso contra qualquer tentativa de explicação racional é intencional: serve para lançar uma cortina de fumo, ridicularizar pacifistas, aumentar o investimento na indústria de guerra e desinvestir na educação, saúde e ambiente. Criminalizam-se as revoltas sociais em nome da luta contra a ameaça russa – se não o fizermos teremos em breve os tanques de Putin à nossa porta. Mais vale investir em armamento do que remediar! É o consenso fabricado pelos líderes políticos e pela CS conivente.
Os países árabes mantêm um
silêncio cúmplice, a crise de Gaza é para eles um tema embaraçoso. Prefeririam
que o assunto fosse ignorado para não terem de justificar a sua inação à opinião
pública nacional. Regimes ditatoriais brutais - como é o caso do vizinho Egito - continuam a manter relações diplomáticas com Israel, manietados, incapazes de tomar qualquer medida dissuasora das atrocidades sobre a palestina. São os primeiros a trair as aspirações dos seus próprios
povos, a reprimir violentamente os gritos de liberdade dos cidadãos nas
revoltas das Primaveras Árabes. O Irão mostra-se perante a comunidade internacional o mais fervoroso apoiante da causa palestiniana, abafou com mão de
ferro as manifestações que há alguns meses colocaram milhares de pessoas nas ruas contra a
obrigatoriedade do véu islâmico, a arbitrariedade da polícia dos costumes, a
falta de liberdade de expressão e a crise económica.
Os países são instituições, superestruturas, ao serviço de interesses acima dos seus povos, dominados por oligarquias apostadas no enriquecimento constante, promovido pelo fluxo de capitais transfronteiriços. O nacionalismo é uma palavra bacoca, usada para dar a falsa ilusão de pertença a uma pátria – as liberdades, os direitos e a dignidade humana de quem ali vive retrocedem sempre que se trata de defender o capital pelas elites. No caminho ficam os escombros de um planeta destruído, ambientes naturais desaparecidos, povos e países arrasados. O povo palestiniano, martirizado aos olhos do mundo, sofre o mesmo destino das sociedades colonizadas, violência e expropriação.
Misturam-se fait-divers e
espetáculo permanente na CS. Normaliza-se a chacina. As TVs mostram no mesmo serviço noticioso a guerra
na Ucrânia (ultraje por mais um ataque russo!), a fome em Gaza (de relance), os
festejos do campeão, os destinos das próximas férias de verão, o calor nos próximos
dias (bom para ir à praia!). No Instagram e FB, mulheres belas mostram o
esplendor dos corpos (milhares de seguidores), o mundo cheio de sorrisos e
gente feliz a toda a hora, pessoas magníficas e animais domésticos a fazer
acrobacias (milhares de visualizações). A exposição crescente a gadgets
tecnológicos e a jogos virtuais, a informação falsa e tendenciosa, aumentam o
alheamento. A Terra está doente e a humanidade a adoecer física e mentalmente:
insensível e cega a olhar o seu umbigo, distante de si própria, a tentar
sobreviver no dia-a-dia num mundo crescentemente hostil. Crianças morrem esfomeadas,
um povo é exterminado e a vida continua.
Qualquer filme, palavra,
música, expressão artística a olhar para si própria, esvazia-se perante o
silenciamento e a impotência de parar o massacre. A arte perde o sentido de
transformar o mundo num lugar melhor, torna-se num objeto oco ao serviço da
inutilidade e do poder de quem manda – em mais um instrumento alienante e
conivente com a cegueira. Nada faz sentido perante o que está a acontecer em
Gaza.”
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