O libertino, o ateu e o crente passeavam
por Braga na noite da Via Sacra.
O libertino considerou, por ser
noite de sexta-feira, oportuno mostrar o seu esplendor às mulheres nas esplanadas, deambulando
entre elas o seu charme irresistível e sedutor. O ateu quis observar numa
perspetiva científica e racional as manifestações de fé a percorrer as
principais artérias do centro histórico e as dezenas de pessoas nos
restaurantes, bares e esplanadas, assistindo curiosas à passagem da procissão, retirando suas conclusões sobre comportamentos
humanos tão contrastantes. O crente participaria na via sacra, mais um evento
dos muitos em que costuma entrar relacionados com a vida de Jesus Cristo. As
comemorações da Semana Santa de Braga serviriam para demonstrar a sua fé em
Deus, encher a alma de significados e simbolismos. Rezaria pais-nossos e ave-marias em cada uma das
estações, que retratam os últimos momentos da vida de Cristo, ouviria atentamente
os relatos dramáticos lidos pelo padre,
como num filme.
O ateu já havia estado na sé de
Braga. Descobriu que São Martinho de Dume, São Frutuoso e Frei Bartolomeu dos
Mártires, nomes que conhecia da toponímia e da literatura, foram arcebispos de
Braga. Viu os paramentos religiosos e as relíquias no Museu do Tesouro da Sé
com o distanciamento que sempre teve perante os fenómenos religiosos, como estudioso, acreditando apenas no valor das
demonstrações e dos factos concretos observados, testados e mensurados. Observou os turíbulos, báculos,
custódias, salvas de prata, crucifixos, bacias lava-pés e relíquias dos arcebispos, comparou-os com ironia
e desdém a brinquedos de crianças.
“Peças trazidas pelos peregrinos
das viagens à Terra Santa. Restos de tecidos, ossadas de santos - falanges,
pedaços do fémur e da tíbia - encontrados algures para os conventos e catedrais
por fieis devotos. Gente crédula que acredita em milagres, no poder das
relíquias sagradas colocadas em caixinhas, organizadas como nas casinhas de
bonecas por meninas sonhadoras. Objetos e roupas usados em momentos especiais.
Não interessa a idade. O fetiche
por objetos, a atribuição de significados, o pensamento mágico é comum a todas
as fases da vida.”
O libertino ficou encantado com a
beleza das mulheres na noite amena,
mostrando o decote dos seios, os contornos do corpo, as pernas até à coxa. Fez-lhe
impressão a procissão, a penitência que muitos cumprem. A vida é para ser
vivida ao máximo, usufruir os prazeres da carne.
Viu na esplanada, num grupo de
desconhecidas atraentes, uma mulher que conhecia das redes sociais, influencer
que seguia há algum tempo. O que lhe
diria? O libertino também é filósofo.
Sentou-se ao seu lado sem pedir
autorização, lançou de imediato todo o seu charme e argumentos para a engatar.
Estava com pressa, a noite era uma criança, queria aproveitar ao máximo as
oportunidades que a vida lhe dava. Pressentia que teria sorte, se fosse ousado.
Não lhe deu sequer oportunidade, a ela e às amigas, de se indignarem com o estranho sedutor que se
sentou na cadeira vazia. Olhou para a influencer, desbobinou:
“A marca pessoal que criaste
afincadamente nas redes sociais pode ser melhor. Talvez tenhas talento, sejas dotada de beleza física, das medidas e idade certa, mas
precisas das redes sociais. As marcas que promoves fazem o resto, milhões de
visualizações, de likes, a avidez e os instintos exacerbados pelo culto do
consumo e do corpo ao extremo ajudarão no teu sucesso. Tirando isso, somos
todos invisíveis não interessa o que dizes, só se convier a alguém influente.
Posso-te ajudar, tenho
conhecimentos na comunicação social, no mundo da moda. Precisas de alguém que
consiga destacar a tua beleza. Não é fácil no excesso de mensagens, de marcas, de
influencers, na esquizofrenia das redes.”
As mulheres ficaram boquiabertas sem
saber o que dizer. Perante a hesitação da influencer o libertino aumentou a
parada, confiante no seu charme e poder de sedução. Levá-la-ia para o hotel
Ibis em três tempos:
“Um dia as memórias do corpo desaparecerão. Estarão mortas, esquecidas,
matéria inerme transformada em poeira.
Na melhor das hipóteses,
chegaremos a velhos antes de morrer. Estaremos mortos sem o saber, fechados em
prisões a que chamam lares. A vida será uma ténue sombra esvaecida, irreal,
respirando os últimos sopros.
O que fazer sabendo que um dia
tudo se apagará? Textos, imagens, recordações, não passarão de uma vaga memória
lentamente se desvanecendo na eternidade do universo. Vem comigo!”
Não se sabe o que se passou a
seguir, se o libertino teve sucesso com a sua empreitada, nem ficou registada a
reação das mulheres ao palavroso mulherengo. O que se sabe é que nesta história
a personagem do libertino termina aqui.
O crente seguia na procissão e
passava ao lado da esplanada no momento em que se desenrolava este inusitado encontro.
Também reconheceu a bela influencer. Desviou o olhar para o andor do Senhor dos
Passos, afugentou os maus pensamentos com frases sóbrias e eloquentes sobre
Deus e a vida.
“Influencer maldita, pecaminosa,
tentadora. As
Palavras que dizes não fazem sentido, és
mais uma a saturar o mundo de vanidade.
As redes sociais tudo falam e
nada dizem. Todos tem algo a dizer, mas muito poucos te ouvem com atenção.
Remete-te ao silêncio, procura conforto em mundos
imaginários. Deus existe à espera de ser encontrado por gente como tu,
deslumbrante, magnificente, a abrir novos mundos e vastidões desconhecidas.
Um Deus só, em silêncio, no ruído
tresloucado.”
O Senhor dos Passos seguia no
andor a trasladação para a igreja de São Paulo, a procissão atravessava com rezas o centro
histórico de Braga. O ateu estava sentado no largo das Carvalheiras, nos
degraus do cruzeiro, a olhar a lua cheia, a pensar como é bela a ciência. Viu o
amigo crente e num arremesso impensado de arrogância racionalista, disse: “Como
é que tu, perante tantas evidências científicas, ainda acreditas em Deus e em
milagres? Nem parece que andaste comigo na escola e tiraste o curso de
matemáticas aplicadas!”
E assim foi, seguiram a via sacra
apresentando em cada estação a sua retórica, enquanto o padre falava nas quedas de Jesus
Cristo, no véu de Verónica e em José de Arimateia.
Primeira Estação (em que
falou o ateu):
Um dia a vida como a conhecemos
desaparecerá, não falta muito. Os avisos estão aí.
Daqui a duzentos anos não teremos
Veneza, a centenária sereníssima não resistirá outros tantos.
Segunda Estação (em
que o crente replicou):
Por que falamos, por que
escrevemos, quem nos criou?
A ciência descobriu a expansão do
universo, a formação das estrelas e planetas, previu a sua morte daqui a
milhões de anos. Mas não encontrou
explicação para o Big Bang. O que existia antes disso? Acredito que Deus.
Terceira Estação (o ateu põe à prova a fé do crente):
Se Deus criou o universo e o
Homem à sua imagem, por que motivo o mesmo Homem tem sido tão destrutivo da
natureza criada por Deus?
Quarta Estação
(réplica do crente):
Talvez tenha sido inútil a
ciência. Não chegaremos a Marte, não te preocupes.
Da mesma forma que ninguém chegou
até nós de outros planetas distantes. Só
a fé em Deus nos pode salvar.
Quinta Estação
(ateu):
Tudo se transformará em poeira do
universo, remetido ao silêncio.
Rochas estéreis frias, átomos,
moléculas, pela ciência nomeados. Resquícios de vidas inexistentes.
Sexta Estação (crente provocador):
Se a inteligência se medir pela
duração das espécies no planeta, então o Homem Pensador é o menos inteligente
dos animais. Baratas e formigas vivem no planeta há milhões de anos.
Os animais no seu silêncio, no
seu olhar talvez nos ensinem algo, estando atentos.
O desaparecimento do Homem
Pensador acontecerá numa fração do tempo Jurássico, até os dinossauros levaram
mais tempo a se extinguir.
Sétima Estação (em que
ambos concordam num tema):
Toda a criatividade, amor,
emoção, lágrimas, gritos, terão sido em vão.
Os dois filósofos perderam-se da procissão de tão absorvidos que estavam nos seus diálogos profundos. Foram diretos à igreja de Santa Cruz, avançando as restantes estações da via sacra. Sentaram-se nos bancos de madeira a ouvir a musica sublime tocada pelos violinos do coro.
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O ateu estava sentado no largo das Carvalheiras, nos degraus do cruzeiro, a olhar a lua cheia, a pensar como é bela a ciência. |
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