sábado, 12 de abril de 2025

Via Sacra (Braga)

 


O libertino, o ateu e o crente passeavam por Braga na noite da Via Sacra.

O libertino considerou, por ser noite de sexta-feira, oportuno mostrar o  seu esplendor às mulheres nas esplanadas, deambulando entre elas o seu charme irresistível e sedutor. O ateu quis observar numa perspetiva científica e racional as manifestações de fé a percorrer as principais artérias do centro histórico e as dezenas de pessoas nos restaurantes, bares e esplanadas, assistindo  curiosas à passagem da procissão, retirando suas conclusões sobre comportamentos humanos tão contrastantes. O crente participaria na via sacra, mais um evento dos muitos em que costuma entrar relacionados com a vida de Jesus Cristo. As comemorações da Semana Santa de Braga serviriam para demonstrar a sua fé em Deus, encher a alma de significados e simbolismos. Rezaria  pais-nossos e ave-marias em cada uma das estações, que retratam os últimos momentos da vida de Cristo, ouviria atentamente os relatos  dramáticos lidos pelo padre, como num filme.

O ateu já havia estado na sé de Braga. Descobriu que São Martinho de Dume, São Frutuoso e Frei Bartolomeu dos Mártires, nomes que conhecia da toponímia e da literatura, foram arcebispos de Braga. Viu os paramentos religiosos e as relíquias no Museu do Tesouro da Sé com  o distanciamento  que sempre teve perante  os  fenómenos religiosos, como  estudioso, acreditando apenas no valor das demonstrações e dos factos concretos observados, testados  e mensurados. Observou os turíbulos, báculos, custódias, salvas de prata, crucifixos, bacias lava-pés e relíquias dos arcebispos, comparou-os com ironia e desdém a brinquedos de crianças.

“Peças trazidas pelos peregrinos das viagens à Terra Santa. Restos de tecidos, ossadas de santos - falanges, pedaços do fémur e da tíbia - encontrados algures para os conventos e catedrais por fieis devotos. Gente crédula que acredita em milagres, no poder das relíquias sagradas colocadas em caixinhas, organizadas como nas casinhas de bonecas por meninas sonhadoras. Objetos e roupas usados em momentos especiais.

Não interessa a idade. O fetiche por objetos, a atribuição de significados, o pensamento mágico é comum a todas as fases da vida.”

O libertino ficou encantado com a beleza das mulheres  na noite amena, mostrando o decote dos seios, os contornos do corpo, as pernas até à coxa. Fez-lhe impressão a procissão, a penitência que muitos cumprem. A vida é para ser vivida ao máximo, usufruir os prazeres da carne.

Viu na esplanada, num grupo de desconhecidas atraentes, uma mulher que conhecia das redes sociais, influencer que seguia há algum tempo. O que lhe diria? O libertino também é filósofo.

Sentou-se ao seu lado sem pedir autorização, lançou de imediato todo o seu charme e argumentos para a engatar. Estava com pressa, a noite era uma criança, queria aproveitar ao máximo as oportunidades que a vida lhe dava. Pressentia que teria sorte, se fosse ousado. Não lhe deu sequer oportunidade, a ela e às amigas,  de se indignarem com o estranho sedutor que se sentou na cadeira vazia. Olhou para a influencer,  desbobinou:

“A marca pessoal que criaste afincadamente nas redes sociais pode ser melhor.  Talvez tenhas talento, sejas dotada de  beleza física, das medidas e idade certa, mas precisas das redes sociais. As marcas que promoves fazem o resto, milhões de visualizações, de likes, a avidez e os instintos exacerbados pelo culto do consumo e do corpo ao extremo ajudarão no teu sucesso. Tirando isso, somos todos invisíveis não interessa o que dizes, só se convier a alguém influente.

Posso-te ajudar, tenho conhecimentos na comunicação social, no mundo da moda. Precisas de alguém que consiga destacar a tua beleza. Não é fácil  no excesso de mensagens, de marcas, de influencers,  na esquizofrenia das redes.”

As mulheres ficaram boquiabertas sem saber o que dizer. Perante a hesitação da influencer o libertino aumentou a parada, confiante no seu charme e poder de sedução. Levá-la-ia para o hotel Ibis em três tempos:

“Um dia as memórias do corpo  desaparecerão. Estarão mortas, esquecidas, matéria inerme transformada em poeira.  

Na melhor das hipóteses, chegaremos a velhos antes de morrer. Estaremos mortos sem o saber, fechados em prisões a que chamam lares. A vida será uma ténue sombra esvaecida, irreal, respirando os últimos sopros.

O que fazer sabendo que um dia tudo se apagará? Textos, imagens, recordações, não passarão de uma vaga memória lentamente se desvanecendo na eternidade do universo. Vem comigo!”

Não se sabe o que se passou a seguir, se o libertino teve sucesso com a sua empreitada, nem ficou registada a reação das mulheres ao palavroso mulherengo. O que se sabe é que nesta história a personagem do libertino termina aqui.

O crente seguia na procissão e passava ao lado da esplanada no momento em que se desenrolava este inusitado encontro. Também reconheceu a bela influencer. Desviou o olhar para o andor do Senhor dos Passos, afugentou os maus pensamentos com frases sóbrias e eloquentes sobre Deus e a vida.

“Influencer maldita, pecaminosa, tentadora.  As  Palavras que dizes não fazem sentido, és mais uma a saturar o mundo de vanidade.  

As redes sociais tudo falam e nada dizem. Todos tem algo a dizer, mas muito poucos te ouvem com atenção.

Remete-te  ao silêncio, procura conforto em mundos imaginários. Deus existe à espera de ser encontrado por gente como tu, deslumbrante, magnificente, a abrir novos mundos e vastidões desconhecidas.

Um Deus só, em silêncio, no ruído tresloucado.”

O Senhor dos Passos seguia no andor a trasladação para a igreja de São Paulo,  a procissão atravessava com rezas o centro histórico de Braga. O ateu estava sentado no largo das Carvalheiras, nos degraus do cruzeiro, a olhar a lua cheia, a pensar como é bela a ciência. Viu o amigo crente e num arremesso impensado de arrogância racionalista, disse: “Como é que tu, perante tantas evidências científicas, ainda acreditas em Deus e em milagres? Nem parece que andaste comigo na escola e tiraste o curso de matemáticas aplicadas!” 

 O crente respondeu  ao amigo cético:  “Segue-me na procissão, podemos dialogar ao longo das estações. A  atmosfera da noite  ajudará  a fluir  argumentos,  a digladiar ideias."

E assim foi, seguiram a via sacra apresentando em cada estação a sua retórica,  enquanto o padre falava nas quedas de Jesus Cristo, no véu de Verónica e em José de Arimateia.

Primeira Estação (em que falou o ateu):

Um dia a vida como a conhecemos desaparecerá, não falta muito. Os avisos estão aí.

Daqui a duzentos anos não teremos Veneza, a centenária sereníssima não resistirá outros tantos.

Segunda Estação (em que  o crente replicou):

Por que falamos, por que escrevemos, quem nos criou?

A ciência descobriu a expansão do universo, a formação das estrelas e planetas, previu a sua morte daqui a milhões de anos.  Mas não encontrou explicação para o Big Bang. O que existia antes disso? Acredito que Deus.

Terceira  Estação (o ateu põe à prova a fé do crente):

Se Deus criou o universo e o Homem à sua imagem, por que motivo o mesmo Homem tem sido tão destrutivo da natureza criada por Deus?

Quarta  Estação  (réplica do crente):

Talvez tenha sido inútil a ciência. Não chegaremos a Marte, não te preocupes.

Da mesma forma que ninguém chegou até nós de outros planetas distantes.  Só a fé em Deus nos pode salvar.

Quinta  Estação  (ateu):

Tudo se transformará em poeira do universo, remetido ao silêncio.

Rochas estéreis frias, átomos, moléculas, pela ciência nomeados. Resquícios de vidas inexistentes.

Sexta Estação  (crente provocador):

Se a inteligência se medir pela duração das espécies no planeta, então o Homem Pensador é o menos inteligente dos animais. Baratas e formigas vivem no planeta há milhões de anos.

Os animais no seu silêncio, no seu olhar talvez nos ensinem algo, estando atentos.

O desaparecimento do Homem Pensador acontecerá numa fração do tempo Jurássico, até os dinossauros levaram mais tempo a se extinguir.

Sétima Estação (em que ambos concordam num tema):

Toda a criatividade, amor, emoção, lágrimas, gritos, terão sido em vão.

Os dois filósofos perderam-se da procissão de tão absorvidos que estavam nos seus diálogos profundos. Foram diretos à igreja de Santa Cruz, avançando as restantes estações da via sacra. Sentaram-se nos bancos de madeira a ouvir a musica sublime tocada pelos violinos do coro.   







O ateu estava sentado no largo das Carvalheiras, nos degraus do cruzeiro, a olhar a lua cheia, a pensar como é bela a ciência.







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