segunda-feira, 16 de junho de 2025

Yitzak Escreve Uma Carta a Paulo Rangel

Yitzak é português de ascendência sefardita. Conseguiu a nacionalidade sem falar a língua, apenas porque, graças a um escritório de advogados bem pagos, comprovou a sua ligação a uma comunidade portuguesa que fugiu da Inquisição no século XVI.

Vive dos rendimentos no ramo imobiliário: apartamentos que aluga a turistas no bairro de Jaffa, em Telavive. Em Portugal, continua a investir no mesmo setor — comprou e recuperou solares no Alto Minho, abandonados e desbaratados. Sítios tranquilos, pacatos, a uma hora do aeroporto de Pedras Rubras, nas rotas dos caminhos de Santiago. Transformou-os em alojamentos locais e pequenos hotéis de charme, com piscina e vistas para a serra de Arga.

Inicialmente, viajava bastante entre os dois países. Deixou de o fazer desde que o estado de emergência foi declarado. O ataque ao Irão veio piorar a situação. Os voos foram cancelados devido ao início da guerra, a 13 de junho — dia de Santo António. Estava ele em Alfama, com outros amigos israelitas, entre a imensa multidão de foliões que se comprimia ao passar pela esplanada de uma das tasquinhas da rua estreita. As mesas estavam enfeitadas com toalhas de algodão axadrezado vermelho e branco, manjericos e fitas coloridas. As sardinhas assavam nos braseiros — ele sentia o cheirinho tão característico — quando viu a mensagem SMS da mãe: “Israel atacou o Irão”. Sentiu o sangue gelar — não imaginava que a loucura do seu governo chegasse tão longe, no preciso momento em que os Estados Unidos e o Irão negociavam um acordo nuclear!

Ligou imediatamente à mãe — eram três da manhã em Telavive. Tudo tranquilo. A mãe falou-lhe com a voz serena e resignada de quem está habituada a viver com a incerteza. Estava atenta ao som das sirenes, pronta para se refugiar no abrigo debaixo da garagem do prédio, em caso de urgência. Seguramente o Irão ripostaria, mais tarde ou mais cedo.

Ele e os amigos regressaram imediatamente ao Porto, pela A1, em alta velocidade, atentos às notícias vindas de Israel. Ainda bem que decidiu adquirir a cidadania portuguesa — tinha outro país onde viver nos momentos de incerteza e insegurança. Imaginava que muitos outros israelitas começariam a fazer o mesmo. A liberdade deteriorava-se cada vez mais: começou com o ataque a Gaza — o governo dizia que seria por pouco tempo. Passaram vinte meses, a situação política de Israel só se agravou, e o conflito tornou-se mais complexo. Um povo eternamente a fugir!

Começou a ver Portugal como um novo refúgio, uma nova pátria de acolhimento. A ironia histórica de milhares de judeus regressarem a Portugal, quinhentos anos depois de os seus antepassados terem sido expulsos, e começarem, indiretamente, a expulsar os portugueses de suas casas! Como investidor imobiliário, sabia bem que os preços da habitação em Portugal estavam demasiado altos, muito por culpa de pessoas como ele — endinheiradas — que compravam casas, fazendo disparar os preços e impedindo os portugueses nativos, com uma classe média já muito fragilizada, de adquirirem casa própria. Ironias do destino!

Obviamente, acompanha tudo o que se passa em Israel. Está farto da passividade da comunidade internacional em relação à Palestina. Acha que os palestinianos merecem um Estado e devem viver em paz na terra que também é dos seus antepassados — só o diálogo e o compromisso podem solucionar uma questão tão complexa. A guerra, a injustiça das mortes e das atrocidades em Gaza só agravará o ressentimento internacional contra os judeus. A guerra não é solução. Mas o povo israelita também merece uma pátria, viver em paz e obter garantias inequívocas de segurança por parte dos países vizinhos, nomeadamente do Irão e dos movimentos por ele apoiados.

Assistiu entusiasmado à iniciativa da Freedom Flotilla, gente intrépida e corajosa, e ficou alarmado com o aprisionamento do navio, a 9 de junho. Escreveu imediatamente uma carta ao ministro dos negócios estrangeiros de Portugal.


Carta:

Ex.mo Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Paulo Rangel,

Acabei de saber, através da comunicação social, que os 12 ativistas a bordo do navio supracitado, pertencente à coligação Freedom Flotilla, foram intercetados pelo Exército israelita em águas internacionais.

Impedidos de cumprir a sua missão humanitária com a população da Faixa de Gaza — cercada há 20 meses por Israel, tendo sido, nesse tempo, bombardeada, com infraestruturas essenciais destruídas e, por fim, vítimas de uma morte lenta devido à fome, usada como arma de punição coletiva contra uma população indefesa —, Israel excedeu há muito as violações do Hamas de 7 de outubro de 2023 em território israelita.

Peço, no âmbito das funções de enorme responsabilidade e prestígio desempenhadas por V. Ex.ª, que V. Ex.ª, os seus assessores e os colegas dos restantes gabinetes dos Negócios Estrangeiros dos países da União Europeia tudo façam para que os 12 ativistas regressem sãos e salvos aos seus países e famílias.

De acordo com o Direito Internacional, Israel violou leis humanitárias ao intercetar e raptar os ocupantes de um navio em águas internacionais, e ao impedir o acesso a água, alimentos e medicamentos a populações à beira da morte.

Com os meus melhores cumprimentos,
Yitzak Abdelrasheed

sábado, 31 de maio de 2025

Trilho da Levada de Víbora e Moinho de Rei (PR1 - CBC)


A Biblioteca Pública de Perosinho surgiu da iniciativa de um grupo de  amigos, em 1978.  Começaram por  vender panfletos  aos fiéis, nos  final  das missas, para angariar dinheiro e comprar livros.  Fizeram uma pequena biblioteca que funcionou numa arrecadação exígua -  tornou-se pequena para a quantidade de livros que adquiriram. Obtiveram  a colaboração da paróquia, que lhes cedeu uma sala maior. Graças ao visionarismo do pároco, os terrenos herdados de uma quinta da freguesia foram loteados e atribuídos às coletividades locais; a biblioteca ficou com o lote onde hoje se situa. Na mesma rua – a Rua das Coletividades – estão a Academia de Música,  o Rancho Folclórico,  o Clube de Caçadores e o pavilhão desportivo.

A biblioteca paga contribuição autárquica:  uma instituição que presta um serviço público devia estar isenta. “Estamos a tentar mudar os estatutos para ficar com a classificação  de instituição de utilidade  pública. É obrigatório ter página na internet  e apresentar contabilidade todos os 3 meses”, diz-me o  Vítor, diretor da biblioteca.  Todos os colaboradores são voluntários. Para reduzir as despesas,  fazem eles próprios a limpeza das instalações em vez de pagarem a uma empresa. Pagam luz e água. O dinheiro é sempre contado. Tem menos de 200 sócios, que pagam de cota 10€ por ano.

Organizam  encontros com escritores - já receberam Ana Luísa Amaral, Valter Hugo Mãe, Nuno Júdice, João Garcia, Gonçalo Cadilhe. Têm protocolos com instituições para troca de livros, participam ativamente na Semana das Coletividades da freguesia,  organizam peddy-papers e marchas de montanha.

A IX marcha de montanha é em  Cabeceiras de Basto – o trilho da Levada de Víbora e dos Moinhos do Rei. Converso com o Vítor no fim da caminhada,  no parque de merendas do Oural, quando os quarenta participantes se dispersam pelas mesas e partilham o lanche. Um grupo de motards faz picnic, montam  barraca com a máquina de pressão e oferecem finos ao grupo. Espaço agradável,  arborizado, com mesas de cimento e braseiros, atravessado pela levada que desagua na barragem.  

Fizemos o trilho circular no sentido dos ponteiros do relógio, passando debaixo de um frondoso carvalhal na parte inicial. Parámos para lanchar na área  de lazer de Víbora e, após uma subida bastante acentuada e difícil – em hora de muito calor! -, caminhámos pela zona mais elevada do trilho, de onde se desfrutam paisagens maravilhosas sobre as montanhas em redor. Rodeadas de uma estranha neblina que,  de acordo com as notícias, deviam ser as poeiras  do deserto africano a cobrir o céu de manto acinzentando, dando um ar místico e misterioso à paisagem. Ali próximo,  o miradouro de Porto d`Olho, com a pequena ermida, onde se chega realizando um desvio de 800 metros.

Apanhamos a levada,  seguimos  ao longo do canal construído por antepassados longínquos, que usaram técnicas milenares infalíveis.  Centenas de anos mais tarde, a água continua a correr, a cumprir a sua função de  irrigar  os pomares e quintais  da região – Li esta semana nas notícias, a propósito do apagão, que, sem eletricidade, a água nas nossas casas duraria apenas algumas horas. Ficaríamos todos sem água!!! Talvez devêssemos valorizar estes conhecimentos ancestrais que permitiram à humanidade chegar até aqui, sem danificar a natureza, mantendo a sua fertilidade e funcionalidade.

A água corria na levada, ganhava velocidade  em locais com  declive mais acentuado,  fluía serenamente nos sítios planos – uma delícia! Com o calor que estava soube tão bem molhar os braços na água límpida, refrescar o corpo,  senti-la na pele a correr.  

O Moinho do Rei  é uma referência a D. Dinis. Construídos no século XIII, os moinhos hidráulicos impulsionaram a moagem de farinhas no reino,  laboraram até serem substituídos por processos elétricos. É hoje um pedaço de pedras amontoadas e  cobertas de musgo, cujo único vestígio da sua função prévia é estar ao lado da levada. Resquício de uma época em que vários moinhos laboravam plenamente, memória bucólica de um mundo desaparecido.

Visitamos o Convento Beneditino de São Miguel de Refojos, a “Joia dos conventos beneditinos portugueses” – vinte e nove ao todo,  como nos disse mais de uma vez a guia do museu. Falou na simetria tradicional dos conventos barrocos: este apresenta uma simetria perfeita e elementos falsos a contrastar com os verdadeiros do lado oposto. “Refojos” é uma deturpação da palavra “refúgio” - para aqui vieram os eremitas originais há mais de mil anos, quando descobriram o local intocado no meio das serras, rodeado de água, onde era possível ter uma vida de recolhimento, contemplação e meditação. Mais tarde, aderiram à ordem beneditina, foram crescendo, ganhando importância e riquezas. O atual mosteiro começou a ser construído em 1755 – o ouro do Brasil deu para estas excentricidades!   Abandonado após as guerras liberais, por alienação do património da igreja, até à morte do último frade. Hoje funcionam nele  serviços da câmara, o Museu de Arte Sacra e um espaço de acolhimento ao visitante.  

...passando debaixo de um frondoso carvalhal na parte inicial






...após uma subida bastante acentuada e difícil – em hora de muito calor! -, caminhámos pela zona mais elevada do trilho, de onde se desfrutam paisagens maravilhosas sobre as montanhas em redor. 






Ali próximo, 
 o miradouro de Porto d`Olho, com a pequena ermida, onde se chega realizando um desvio de 800 metros.


Centenas de anos mais tarde, a água continua a correr





Resquício de uma época em que vários moinhos laboravam plenamente, memória bucólica de um mundo desaparecido.






Mosteiro Beneditino de São Miguel de Refojos











sexta-feira, 30 de maio de 2025

Gaza

 


O João anda revoltado com a crise em Gaza, colocou uma bandeira do país e publicou um texto no seu mural do FB. Recebeu likes e frases a apoiá-lo, de pessoas igualmente transtornadas a assistir a uma tragédia sem fim à vista, perante a passividade da comunidade internacional. Também recebeu comentários irados, ameaças veladas e insultos de desconhecidos que ele julga serem, na maior parte dos casos, perfis falsos que intoxicam as redes de desinformação e discursos justificativos da agressão. Farto de tanta exposição e do assédio permanente de haters  anónimos, retirou o post. Pensou passá-lo para o meu blogue. Hoje em dia, quase ninguém lê blogues, anda toda a gente entretida em plataformas mais imediatas e rápidas. No meu, ficaria resguardado, continuando a ter o texto disponível na net. Aceitei postá-lo sem qualquer problema. Sou tolerante, compreendo os dilemas interiores. O João é uma pessoa sensível, inconformado e atento às questões sociais, e ao que se passa no mundo. “Claro que sim”, entusiasmei-o, “não ficarás sem voz e Gaza não será esquecida.”

Tenho amigos israelitas, alguns participam regularmente, em Telavive, nas manifestações a favor da libertação dos reféns, a maior parte deles detesta o seu primeiro-ministro, não obrigatoriamente pelas mesmas razões de quem está fora de Israel. Não sei se estão chocados com os milhares de mortos em Gaza, com a utilização da distribuição alimentar como instrumento de guerra e de chantagem, se a informação que lhes chega é fidedigna. Contacto pouco com eles e não quero ter a indelicadeza de abordar com alguém tão próximo do conflito um assunto sensível e socialmente fraturante. Os nossos contactos são cada vez mais escassos.  

Se algum dia lerem o texto que se segue com certeza compreenderão as razões pelas quais decidi fazer o favor ao João. Sem hesitar. Se não concordarem com os seus argumentos, continuarei na mesma a ser amigo deles.

 

“Salta à vista a duplicidade europeia e dos mass media convencionais. A insistência nas sanções e notícias sobre a Rússia: “mais um pacote de restrições ao comércio com o país”, “mais um ataque terrível de Moscovo a Kiev: um dos piores desde o início da guerra”. Notícias e reportagens extensas nos principais canais e noticiários televisivos,  direito a repórteres no local e comentadores residentes a abordar o conflito sob os mais diversos prismas. Discursos constantes em defesa do aliado ucraniano, vítima da ignomínia do vizinho russo e do seu presidente, a encarnação do mal na Terra: Vladimir Putin.

Decretaram-se sanções económicas à Rússia, proibiu-se a participação de clubes e atletas russos em competições desportivas internacionais e no Eurofestival da canção, enquanto não terminar a agressão à Ucrânia. 

Do outro lado, Gaza. A morte diária de dezenas de pessoas, a maioria crianças, bombardeadas e deliberadamente impedidas de receber alimentos, recebem notícias e reportagens breves, habitualmente de correspondentes em Israel, sem direito ao mesmo tempo de antena e horário nobre da Ucrânia.

Os dirigentes europeus mostram-se “preocupados” com as atrocidades cometidas por  Israel. Nada mais. Até hoje, não se decretou qualquer sanção económica: o país continua a participar nas principais competições desportivas internacionais e no Eurofestival da Canção. 

A European Broadcasting Union (EBU) refere que o Eurofestival é um evento inclusivo e neutral, não mistura política com música: Israel não pode ser expulso (mas a Rússia foi!).

Falta ética nas relações internacionais. Os países usam as palavras “Democracia”, “Paz”, “Liberdade”, “Direitos Humanos” em vão, consoante as conveniências do momento e os jogos de estratégia no tabuleiro internacional. Os discursos moralistas de dirigentes europeus e as decisões de apoio determinado á Ucrânia caem por terra ante a passividade em relação a Israel: não passam de hipocrisia e cinismo. O mundo assiste impotente à destruição de Gaza, assobia para o lado, como sempre fez.

Israel foi empurrando os palestinianos, cercando-os com muros e Checkpoints, dificultando o acesso à água e ao mar, aos terrenos de oliveiras centenárias pertencentes durante gerações às mesmas famílias, em Gaza e na Cisjordânia. Inviabilizou a existência de um estado.

O ataque do Hamas, de 7 de Outubro de 2023, constituiu o argumento perfeito para Israel destruir de uma vez por todas o que restava de uma sociedade e de um território minimamente organizado e habitável. Gaza está a ser terraplanada. A Cisjordânia, governada pela Fatah - rival do Hamas -, sofre a impunidade dos colonos judeus, que atacam e matam palestinianos com a cumplicidade do exército. Centenas de Cisjordanos foram presos e mortos desde 7 de Outubro.  A missão diplomática europeia foi atingida por disparos das IDF, perto de Jenin, por “sair da rota”. O exército israelita põe e dispõe à sua vontade do que se passa dentro da Cisjordânia. A Europa mostra-se “indignada” e exige “explicações”. O episódio passou e, no dia seguinte, mais ninguém falou dele: um fósforo que se apagou mal acendeu – tal como muitas outras vezes. A representante europeia da política externa, Kaja kallas, criticou Israel pelo bloqueio à entrada de ajuda humanitária em Gaza - 80% proveniente de países europeus. Concluiu, no entanto, que continua a colaborar com Israel para resolver a crise. A UE prefere colaborar com o infrator, responsável pela crise humanitária, a impor-lhe sanções, como faz à Rússia.

Ouvem-se esporádicas vozes de indignação e pouco mais. As manifestações pró-palestinianas, parcamente noticiadas e fortemente dissuadidas pelos governos europeus, são logo rotuladas de incentivos ao ódio contra Israel e antissemitas. 

A extrema-direita cresce em Portugal e na Europa, recorre a discursos agressivos contra os imigrantes, insulta as vozes dissonantes, ataca a multiculturalidade e os direitos das minorias.     Aliada de Israel, utiliza os mesmos métodos de comunicação.  Quem discorda é apelidado de “Esquerdalha”, “Comunista”, “Extrema-esquerda”, “Amigo de terroristas”. Inviabiliza-se qualquer discussão séria e complexa quanto às causas da guerra na Ucrânia e da situação na Palestina. O ruído, o esbracejar rancoroso contra qualquer tentativa de explicação racional é intencional: serve para lançar uma cortina de fumo, ridicularizar pacifistas, aumentar o investimento na indústria de guerra e desinvestir na educação, saúde e ambiente.   Criminalizam-se as revoltas sociais em nome da luta contra a ameaça russa – se não o fizermos teremos em breve os tanques de Putin à nossa porta.  Mais vale investir em armamento do que remediar! É o consenso fabricado pelos líderes políticos e pela CS conivente.

Os países árabes mantêm um silêncio cúmplice, a crise de Gaza é para eles um tema embaraçoso. Prefeririam que o assunto fosse ignorado para não terem de justificar a sua inação à opinião pública nacional. Regimes ditatoriais brutais - como é o caso do vizinho Egito -  continuam a manter relações diplomáticas com Israel, manietados,  incapazes de tomar qualquer medida dissuasora das  atrocidades sobre a palestina. São os primeiros a trair as aspirações dos seus próprios povos, a reprimir violentamente os gritos de liberdade dos cidadãos nas revoltas das Primaveras Árabes. O Irão mostra-se perante a comunidade internacional o mais fervoroso apoiante da causa palestiniana,  abafou com mão de ferro as manifestações que há alguns meses colocaram milhares de pessoas nas ruas contra a obrigatoriedade do véu islâmico, a arbitrariedade da polícia dos costumes, a falta de liberdade de expressão e a crise económica.  

Os países são instituições, superestruturas, ao serviço de interesses acima dos seus povos, dominados por oligarquias apostadas no enriquecimento constante, promovido pelo fluxo de capitais transfronteiriços. O nacionalismo é uma palavra bacoca, usada para dar a falsa ilusão de pertença a uma pátria – as liberdades, os direitos e a dignidade humana de quem ali vive retrocedem sempre que se trata de defender o capital pelas elites.   No caminho ficam os escombros de um planeta destruído, ambientes naturais desaparecidos, povos e países arrasados. O povo palestiniano, martirizado aos olhos do mundo, sofre o mesmo destino das sociedades colonizadas, violência e expropriação.

Misturam-se fait-divers e espetáculo permanente na CS. Normaliza-se a chacina. As TVs  mostram no mesmo serviço noticioso a guerra na Ucrânia (ultraje por mais um ataque russo!), a fome em Gaza (de relance), os festejos do campeão, os destinos das próximas férias de verão, o calor nos próximos dias (bom para ir à praia!). No Instagram e FB, mulheres belas mostram o esplendor dos corpos (milhares de seguidores), o mundo cheio de sorrisos e gente feliz a toda a hora, pessoas magníficas e animais domésticos a fazer acrobacias (milhares de visualizações). A exposição crescente a gadgets tecnológicos e a jogos virtuais, a informação falsa e tendenciosa, aumentam o alheamento. A Terra está doente e a humanidade a adoecer física e mentalmente: insensível e cega a olhar o seu umbigo, distante de si própria, a tentar sobreviver no dia-a-dia num mundo crescentemente hostil. Crianças morrem esfomeadas, um povo é exterminado e a vida continua.

Qualquer filme, palavra, música, expressão artística a olhar para si própria, esvazia-se perante o silenciamento e a impotência de parar o massacre. A arte perde o sentido de transformar o mundo num lugar melhor, torna-se num objeto oco ao serviço da inutilidade e do poder de quem manda – em mais um instrumento alienante e conivente com a cegueira. Nada faz sentido perante o que está a acontecer em Gaza.” 

sábado, 24 de maio de 2025

Barcas Serranas (Coimbra)

 


As barcas serranas desciam o Mondego de Penacova à Figueira da Foz. Transportavam lenha, ramagem e carqueja para os fornos das padarias de Coimbra e Figueira, regressavam com arroz do Baixo Mondego, peixe e sal, unindo aldeias e pequenas vilas por laços económicos,  nos quais se produzia e trocava o que a terra, o mar e o rio ofereciam. Trocas ocorridas  ao longo das  margens, durante centenas de anos, desde antes de Portugal existir, quando neste território viviam tribos primitivas e, mais tarde,  povos que chegaram do Oriente com produtos e culturas mais sofisticadas, com quem aprenderam.

Homens que  remavam e velejavam entre a  serra e a foz, sujeitos à força do vento e das correntes, dependentes da fertilidade da terra e do mar, testemunhas  de uma diversidade paisagística que, em poucos quilómetros, passa das planuras  alagadiças – de que são  testemunhos os mosteiros de Santa Clara-a-Velha, abandonado devido às inundações, e Santa Clara-a-Nova,  para onde se transferiram as  freiras – às margens apertadas e montanhosas do interior, onde o rio corria mais impetuoso por  desníveis maiores.

Enchentes reguladas com a construção de açudes,  barragens e canais, que alteraram a imprevisibilidade da água,  desviaram os seus excessos e torrentes repentinas. Hoje, o Mondego é um rio  sem as navegações de outrora. Restam a barca que fotografei, em mau estado -  a lembrar uma relíquia arqueológica achada soterrada no fundo lodoso  -, com a nota histórica e a fotografia a preto e branco de outros tempos e,  uma outra, a jusante, ancorada na margem para passeios turísticos.

Na Praça da Lusofonia, reúnem-se em barraquinhas animadas com música, petiscos e venda de artigos tradicionais dos seus países, estudantes dos PALOP e de Timor-Leste, em alegre convívio. Bebem, dançam, conversam estendidos na relva, em picnics, gozam o fim de tarde ameno, os últimos raios de sol difusos  sobre o Mondego, que desliza sereno. Centenas de pessoas nas esplanadas, estudantes que jantam antes dos concertos no recinto da Queima, na outra margem do rio. Subitamente, encontro um Portugal animado, colorido e diverso. Um país agradável, estendido na relva, fruindo a vida, mostrando as suas ligações históricas a outros países,  porto seguro e acolhedor de gente de muitas origens,  fiel à sua historia e multiculturalidade.  Encontrei, em Coimbra, um país mais tolerante e rico.   



Igreja de São Tiago

a lembrar uma relíquia arqueológica achada soterrada no fundo lodoso


domingo, 11 de maio de 2025

Museu Nacional Grão Vasco

Santa Ana e a Virgem (MNGV)
 

As descrições visuais da vida de Cristo representadas nos retábulos do mestre Grão Vasco (Vasco Fernandes) são como as bandas desenhadas e os filmes da atualidade – o ser humano continua a preferir histórias contadas através de imagens do  que  em palavras,  por ser mais fácil e rápido entendê-las. Na idade média, as pessoas,  analfabetas e  supersticiosas, iam à igreja como os letrados vão hoje ao cinema: os “filmes” eram sempre os mesmos – histórias da Bíblia, a vida de Cristo e dos santos. Devia ser maravilhoso, para comunidades ultra religiosas, assistir à recriação de cenas da vida de Cristo, pungentes e intensas,  organizando o calendário das suas parcas existências conforme o  ciclo das estações e os rituais religiosos, celebrados nos diferentes meses do ano. Vidas rotineiras, previsíveis e sempre iguais através das gerações, só interrompidas por pestes, más colheitas causadas por intempéries, e guerras. Para  quem via a  vida e os santos como motivo de celebração permanente, era uma fuga às agruras da fome e da violência dos senhores da guerra.

Adquiri o bilhete ao abrigo do decreto-lei da ministra da cultura, Dalila Rodrigues, que permite visitar gratuitamente os Museus Nacionais cinquenta e dois dias por ano -  curiosamente num domingo, em que o bilhete, de qualquer forma, já seria grátis. Desperdicei um dia inutilmente: restam-me cinquenta um dias este ano para visitar os 37 museus nacionais!!! (Não os irei gastar).

Foi uma delicia fazer a viagem pelo espirito da idade média, verificando a importância que a religião tinha no quotidiano das pessoas  e no mecenato de bispos a artistas, como foi o caso de Vasco Fernandes - cujas grandes pinturas religiosas foram encomendas de bispos de Viseu.

Na ala esquerda do Museu decorrem as exposições temporárias de pinturas de Paula Rego e de moedas, de João Silva. Entrei no museu atraído pelo cartaz da exposição de Paula Rego. A temática das pinturas (litografias) não me surpreendeu: uma mulher atormentada por diversos fantasmas ao longo da sua vida, de uma sensibilidade extrema, marcada pela adolescência vivida no Portugal conservador do Estado Novo.

A série “Jane Eyre” transmite os sentimentos de Paula Rego na leitura do romance, relido por si várias vezes. Retratam  as etapas do processo de emancipação da heroína, da  infância até ao casamento. As telas, a preto e branco, sombrias, evidenciam a tensão social, a miséria e  o machismo da Inglaterra vitoriana e conservadora do Século XIX. Uma alusão, também, ao Portugal que Paula Rego conheceu e influenciou profundamente a sua expressão artística.

 A outra exposição, ainda mais marcante e tensa, é a série dos “abortos”: oito telas que retratam mulheres a abortar. Paula Rego foi uma ativista e defensora da lei do aborto. Escandalizou-a a pouca adesão dos portugueses ao  referendo e a sua indiferença demonstrada na grande abstenção de junho de 1998, em que o “Não” à despenalização venceu.  O aborto viria a ser legalizado num segundo referendo, realizado em 2007. Na entrevista dada por si, que acompanha a exposição, denuncia a hipocrisia de uma sociedade na qual a criminalização gera  abortos clandestinos, colocando em risco a saúde e a vida das mulheres.

Cristo articulado usado nas representações da descida da cruz, séc. XIII

São Pedro, por Vasco Fernandes (Grão Vasco)

Pintura de António Vaz, discípulo de Grão Vasco

Paula Rego, série "Aborto"

No Conforto da Touca, Série "Jane Eyre", Paula Rego

Sala de Aula, Série "Jane Eyre", Paula Rego

sábado, 10 de maio de 2025

Passadiços do Mondego

 


Seguimos o sentido Videmonte Barragem do Caldeirão. Verificamos o perfil do trajeto aqui. Concluímos ser a melhor opção:  quase sempre em sentido descendente, exceto os últimos dois quilómetros, com um final muito acentuado –  mais de oitocentos degraus a subir   e  o risco de  vertigens para quem sofre delas.   Em caso de desistência, sairíamos em Vila Soeiro, tendo realizado uma grande parte do trajeto.

Os bilhetes foram comprados antecipadamente no sítio dos passadiços na  internet: aqui - 2,5€ cada um.

Fizemos a visita prévia a Videmonte, tomamos o pequeno- almoço no Bar da aldeia, tendo como companhia homens da terra que bebiam o  café da manhã  e aguardente para “aquecer”. Ruas asseadas, fachadas de granito com cartazes curiosos dos moradores  a promover o turismo na aldeia.  Terra interessante, bonita, com história e prática de  atividades ancestrais ligadas à agricultura, onde se cozia o pão em fornos comunitários. Com os mesmos problemas de muitas outras em Portugal:  despovoada e envelhecida – a merecer uma visita mais demorada e atenta noutra ocasião.  O Sr. António, chefe da confraria de igreja matriz de São Sebastião,   convidou-nos a entrar. Abriu  a porta lateral propositadamente para nós. Mostrou o altar que esteve escondido centenas de anos -   o conjunto artístico mais valioso da igreja – um fresco dedicado a São Francisco de Assis, recentemente descoberto durante as obras de restauro.  

O início do trilho fica a aproximadamente dois quilómetros do centro da  aldeia,  na estrada nacional. Estacionamos o carro, fizemos o Check- in. Uma das senhoras que se encontrava ali, perguntou:

- Como vão regressar ao  carro?

 - de táxi, claro!

– já tem taxista?

 – Não.

Entregou-nos o  cartão: “Carina: 965 890 301”

– ligue-me quando acabar.

Quanto ao trajeto,  é realmente muito bonito -  concordo com as várias opiniões que li, em geral abonatórias da beleza do percurso.  A opção que fizemos revelou-se, como previmos,   mais vantajosa; no sentido inverso, faríamos quase todo o trajeto a subir. Quanto à parte física, deve-se subir com calma, cada um no seu ritmo, parando as vezes necessárias, bebendo água e ingerindo alimentos para suportar o desgaste. Em certos momentos, lembrou-me os caminhos de Santiago, atendendo à quantidade de pessoas na encosta da montanha alinhadas umas atrás das outras, de mochilas às costas.

Para a descrição pormenorizada do trilho, consultar o sítio na internet: Passadiços do Mondego.

Os caminhantes devem  ter em atenção a condição física, o facto de no verão as temperaturas serem inclementes e de largos troços não terem sombra. Outros, porém,  são arborizados, passam encostados ao rio, com locais de descanso,  mesas de picnic e casas de banho – embora poucos. Um dos pontos de apoio, sensivelmente a meio, antes de uma das pontes suspensas, vende mel, produtos artesanais e água. Aqui, cruzamo-nos com um beagle simpático a arfar  de um lado para outro, feliz no seu meio natural, cheirando as plantas, correndo e sendo acariciado pelos humanos.

Ao chegar à entrada de Vila Soeiro, a última antes da subida para o barragem do  Caldeirão, pedi a opinião à funcionária, devido às vertigens,  se deveria ou não continuar até à barragem. Segui o caminho, reticente. Ainda bem que o fiz, caso contrário não passaria a bela ponte medieval da Mizarela, nem  veria os quintais com árvores de fruta floridas - a prodigalidade do campo! –, nem a  magnifica vista da cascata do Caldeirão.  

Respirei de alívio quando pousei os pés no alcatrão firme da estrada e registei o fim da caminhada na cabine de apoio. Sim, a última parte não é aconselhável a quem tem vertigens: não olhei para baixo,  fiquei nervoso. É irracional, gatinhei os últimos metros, já nos degraus de granito. Não fui ao miradouro, com medo.

Liguei à taxista Carina. Foi o marido quem nos apanhou; pagámos 15 € pelo regresso ao carro. Os passadiços vieram dinamizar a economia — uma bênção para taxistas, restauração e alojamento. “A Guarda estava parada no tempo. Está a ser muito bom para nós. Há pessoas a fazer os passadiços em qualquer altura do ano, mesmo no verão, com o calor. É quando chegam os emigrantes, as pessoas têm mais tempo, e há quem não pense muito nisso — fazem-nos de qualquer maneira.”

Os Passadiços do Mondego colocaram no mapa o concelho da Guarda, habitualmente pouco falado — e, quando o é, geralmente por maus motivos: incêndios, portagens nas SCUT, falta de médicos, abandono demográfico, etc. Mais de uma pessoa me falou com orgulho da beleza do trilho, contando tudo o que sabia sobre os 12 km do trajeto e algumas peripécias que ocorreram com caminhantes inexperientes e descuidados desde a sua inauguração, em 2022.

O bilhete inclui a visita à catedral da Guarda.  Levam-se 20 minutos de carro até ao centro da cidade. Lembrei-me dos três “F”: Farta, Forte e Fria. Epítetos que lhe ficam a matar.

Rústica, austera, varrida pelo ar frio da montanha;  paços episcopais  circunspetos e silenciosos, de janelas e  portas  rígidas e maciças, dando a impressão de que por trás delas ainda se encontram clérigos inquisidores de batina negra, vigiando as pessoas que passam na praça.  Um lugar onde se sente a antiguidade, a força e  influência da religião católica,   em que a fé e a subserviência a Deus e ao patrão eram as leis da vida para quem aqui vivia.  A catedral merece uma visita: monumento grandioso numa terra pequena, atesta a importância religiosa da cidade na história e formação de Portugal, desempenhando um papel preponderante na evolução cultural da região.

É lamentável observar, na Praça da Sé, edifícios devolutos, com paredes a ruir e sem teto – uma imagem deste país chamado Portugal, onde se prefere gastar dinheiro em estádios de futebol, autoestradas e empreendimentos faraónicos, em vez de se recuperar a memória histórica. Uma contradição flagrante num país onde constantemente se assiste a todo um ecossistema político-social-empresarial-cultural a apelar ao patriotismo nos mais variados eventos — sendo o futebol o mais paradigmático — mas que não investe na recuperação do seu património arquitetónico, repleto de chagas como estas um pouco por todo o lado.

Videmonte

Igreja de São Sebastião, Videmonte

Ruas asseadas, fachadas de granito com cartazes curiosos dos moradores  a promover o turismo na aldeia.

Ruas asseadas, fachadas de granito com cartazes curiosos dos moradores  a promover o turismo na aldeia.



 ...o altar que esteve escondido centenas de anos -   o conjunto artístico mais valioso da igreja – um fresco dedicado a São Francisco de Assis, recentemente descoberto durante as obras de restauro.  















Ponte de Mizarela


Cascata do Caldeirão

Altar da Sé da Guarda

É lamentável observar, na Praça da Sé, edifícios devolutos, com paredes a ruir e sem teto – uma imagem deste país chamado Portugal, onde se prefere gastar dinheiro em estádios de futebol, autoestradas e empreendimentos faraónicos, em vez de se recuperar a memória histórica. 



Sé da Guarda, estátua de D. Sancho I