domingo, 12 de outubro de 2025

Amarante

 


Os meus bisavós emigraram do Oklahoma para a Califórnia em 1933. As terras deixaram de ser produtivas e os rendeiros não podiam pagar as rendas. A agricultura mecanizou-se, os tratores substituíram os homens. Milhares de famílias abandonaram as quintas rumo ao Oeste, à terra prometida da Califórnia.

Viajaram num camião carregado dos víveres mais essenciais - a  minha avó,  grávida do meu pai, os seus pais e irmãos.  Contaram-me histórias épicas dessa viagem extenuante e acidentada, que ninguém queria fazer. Foram forçados a encetar o exilio  dentro do próprio país, como párias malditos e peçonhentos.  A Califórnia não foi a terra que almejavam. Foram maltratados e violentados, expulsos das bermas das estradas nos acampamentos temporários, que faziam junto de ribeiros, em tendas improvisadas com restos de cartões que encontravam nas lixeiras próximas,  e com as lonas que também  cobriam os camiões nas longas viagens pelos desertos e terras áridas do Arizona e do Novo México.  A Califórnia só lhes ofereceu  ira e revolta, os empregos prometidos foram um engodo para milhares de deslocados – um estratagema para escravizar e pagar ninharias a famílias inteiras: quanto maior a  procura de emprego mais os patrões podiam chantagear os trabalhadores e baixar os salários. Milhares de hectares foram  intencionalmente mantidos improdutivos para criar escassez de cultivo e pouca necessidade de mão-de-obra. Tempos miseráveis que a minha avó, Rosasharn, contava quando eu era criança.

Veio a segunda guerra mundial, os Estados Unidos concentraram-se na industrialização e no fabrico de equipamento militar. Os meus avós arranjaram um emprego estável e depois, com a vitória, deu-se o baby boom. A geração do meu pai foi a dos baby boomers,  do crescimento económico, do pleno emprego e do consumismo que tornou a América famosa. Cresci numa bela vivenda ajardinada,  nos arredores de Sacramento.  Conheço, no entanto, o historial da minha família, os sacrifícios que os meus antepassados fizeram para fugir da miséria.

Deixei de reconhecer a América, tornou-se mais violenta e racista, e não gosto de Trump. As minhas amigas falaram-me de Portugal, apresentaram-me o país como uma espécie de Califórnia em miniatura: com bom tempo, praias, surf, tranquilidade – que deixei de ter na américa – e benefícios fiscais para estrangeiros. Depois de pesquisas aturadas na internet e de muitas conversas e trocas de emails com compatriotas e viver em Portugal, decidi mudar-me com a minha companheira.

Cheguei há um ano, gosto de estabelecer um paralelismo pessoal entre a história dos meus bisavós e a minha, realçando o contraste de vidas e oportunidades tão diferentes. 

Eu, contrariamente aos meus antepassados,  pertenço ao grupo dos privilegiados – é o  Karma,  que  pôs em equilíbrio as nossas vidas, contrabalançando o seu passado de sofrimento com o meu  presente exultante e cheio de alegria. Os meus bisavós foram vítimas da mecanização da agricultura — tornaram-se excedentários, ficaram à mercê dos bancos, endividaram-se e perderam as terras que cultivaram durante gerações. Na Califórnia, continuaram sem condições para ter uma vida digna: viveram em acampamentos temporários, as Hoovervilles, sempre à procura de trabalho para alimentar as muitas bocas que tinham a cargo, humilhados pelas autoridades locais e pejorativamente chamados de Okies pelos californianos, por virem do Oklahoma.

Da mesma forma que na Califórnia se criou a escassez agrícola de forma intencional,  através do açambarcamento de milhares de hectares por uma minoria de grandes proprietários, em Portugal criou-se a  falta de habitação através do açambarcamento de quarteirões inteiros por grupos económicos e fundos de investimento destinados a hotéis, alojamentos locais e arrendamento de luxo.

Vê-se muita construção, mas pouca gente a viver nela. Sou, neste aspeto, uma felizarda: eu e a minha companheira, além dos benefícios fiscais, conseguimos comprar alguns apartamentos e viver das rendas.

Pelo que li e observo, do pouco que ainda conheço deste país, que me recebeu de braços abertos, em Portugal  há escassez de mão-de-obra, diria que faltam emigrantes em muitos setores.

Temos um exemplo em nossa casa: a empregada doméstica, Petra Von Kant, é filipina. Não conseguimos arranjar uma portuguesa. Disseram-nos que em Lisboa seria mais fácil, mas em Amarante só conseguimos a Petra por intermédio de uma amiga com contatos de trabalhadoras filipinas.

Vivemos em Amarante. Adoro a brejeirice da doçaria local!

Estes Portugueses são levados da breca! Não é que subverteram completamente a seriedade e o rigor religioso que se deve  a um homem  santo, muito acarinhado aqui na terra, e inventaram  um doce de forma fálica, dando-lhe o nome da sua parte íntima: Caralhinho de São Gonçalo?

Muito poderia dizer de Amarante, deixo algumas fotografias para as minhas amigas na América se roerem de inveja.

Esqueci-me de dizer que me chamo Joana, Joana Joad, em homenagem ao meu bisavô Tom Joad, que foi do Oklahoma para a Califórnia. A minha companheira chama-se Marlene e adotamos a Petra,  não só como empregada doméstica, mas também como nossa companheira. Somos muitos felizes as três! A Petra adaptou-se bem e aceitou as nossas condições, de corpo e alma. Os nossos papeis invertem-se frequentemente; nós, as patroas,  gostamos de fazer de empregadas e de ser subjugadas e humilhadas pela Petra, mas isso é outra história que não contarei aqui na internet.














sábado, 27 de setembro de 2025

Quintandona

 

Miradouro do Alto da Pegadinha

Cheguei a Quintandona com o livro de Sebastião Salgado na bolsa, não sei porquê. Ia preparada para a caminhada circular de 10 km que começa na aldeia. No entanto, chovia e o tempo estava sombrio. Decidi deambular por ali,  onde estava pela primeira vez.

Entrei sem ver ninguém. As ruas estreitas sossegadas, ladeadas por casas de xisto, de muros altos, recentemente restauradas. Algumas com letreiros nas lajes, de restaurantes e tascas fechadas. A aldeia parecia viver a ressaca do fim de semana anterior,  em que milhares de pessoas a visitaram para o festival do Caldo de Quintandona.  Os únicos locais abertos, e com pessoas, eram o posto de turismo e a tasca do Aguieiro.

No posto de turismo, deram-me informações sobre o trilho e o baloiço no alto da Pegadinha. Comprei às senhoras que lá estavam maracujás e uma fatia de bolo caseiro. Desci à tasca, comi rissóis e pataniscas,  bebi um vinho branco maduro que a dona retirou do garrafão de 5 litros para o copo de barro vermelho – tudo produtos locais, confecionados pelas senhoras da aldeia:  exceto o vinho, obviamente;  mas que também devia ser da região.

Sentei-me no baloiço da tasca e abri o livro do Sebastião Salgado. Vi algumas imagens,  li algumas das suas reflexões. Não fazia sentido estar ali sentada, sem conhecer as pessoas e a aldeia, com um livro biográfico de um fotógrafo brasileiro. Enfastiei-me com a leitura, fechei o livro. Talvez fosse mais apropriado ler Camilo Castelo Branco: o casario e o ambiente local estariam mais próximos da realidade descrita pelo autor português.

Dois homens encostaram-se ao balcão, a beber vinho e a comer bifanas – achei aquilo mais português, mais Camiliano. Observei discretamente, fiz de conta que continuava a ler. Um deles foi ao carro buscar qualquer coisa, ligou o autorrádio no volume máximo. Ouvi marteladas de música pimba a sair estridentes do interior. Desligou  e regressou ao balcão para continuar a beber com o parceiro. Deu-me a impressão de que conheciam a mulher que os servia e que deviam ser clientes habituais.

Julgo que estariam intrigados comigo: o que faria ali uma mulher sozinha a ler um livro, sentada no baloiço? Talvez a ida ao carro, que estava próximo,  fosse apenas uma desculpa para me observar melhor.   

Afastei-me. Fui a pé ao Alto da Pegadinha. No posto de turismo disseram-me que demoraria 50 minutos, passando no centro da freguesia de Lagares, pela estrada nacional. Um carro abrandou ao meu lado, o vidro abriu – vinham lá dentro os dois homens da tasca – o  passageiro perguntou:

- A menina anda perdida?

Fiz de conta que não ouvi. Olhei discretamente para os lados em autodefesa, havia casas, pessoas, carros a passar. Gritaria e enfiar-me-ia pelo quintal ao lado, se necessário.

- A menina não se preocupe, vimo-la na tasca do Aguieiro sentada no baloiço, lembra-se? Eramos nós que lá estávamos. Somos gente hospitaleira e como anda por aqui sozinha só queremos ajudar – disse ele.

Talvez fossem sinceras as palavras. Dei uma resposta diplomática que, ao mesmo tempo, os despacharia e mostraria que não estava tão vulnerável como aparentava.

- Muito obrigado, meus senhores. O meu marido vem ao meu encontro desde Lagares, deve estar a chegar no carro para me apanhar.  

- Esteja à vontade, vá com cuidado pela estrada - aceleraram, afastaram-se pela encosta acima.

O que havia de dizer? quando uma mulher anda sozinha desculpa-se sempre com o marido que está a chegar. Não é original, mas foi o que me lembrei no momento.

No caminho de terra e alcatrão esburacado para o Alto da Pegadinha,  motards faziam piões com as motos, levantavam uma poeira enorme no ar. Subi ao miradouro. O tempo estava sombrio, a ameaçar chuva. Nuvens carregadas pairavam cada vez mais próximas, trazidas pelo vento: resquícios do furacão Gabrielle a fazerem-se sentir no continente.

Estava completamente sozinha, os motards lá em baixo, distantes, a afinar as motos. Abri os braços ao vento e gritei:

- My name is Joana. I am the queen of the world – as  minhas palavras ecoaram nas encostas das colinas circundantes.

Abriguei-me na rocha, voltei a abrir o livro de Sebastião Salgado: Da Minha Terra à Terra. Reli  a epígrafe na  dedicatória que a  minha amiga Maria Madalena escreveu quando  o  ofereceu:  

O fascismo é a redução do pensamento, é obrigar as pessoas a pensarem da mesma forma. Não gosta do contraditório, de zonas cinzentas e da complexidade. Não aceita discursos racionais e ponderados.  







sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Bandarra, o Profeta de Trancoso

 

Tinha apenas dois nomes: Gonçalo Anes.

Bandarra era alcunha, significava boémio, bon vivant. Possuía dinheiro, gostava de se vestir bem, sabia ler - raro na época - e foi sapateiro. Consertava sapatos e também os fabricava, o que implicava possuir conhecimentos e ferramentas específicas, transmitidos através das gerações por laços familiares e corporativos. Todas as evidências indicam que era Cristão-novo, embora não hajam provas conclusivas desse facto. Por isso mesmo, sabe-se pouco de Bandarra: os Cristãos-novos tendiam a ocultar as práticas judaicas, por questões de sobrevivência. Artesão culto e abastado, preferia o Velho ao Novo Testamento: características que também se identificavam com a comunidade judaica.

Trancoso, a vila onde nasceu, possuía a maior comunidade da Beira Interior: 700 pessoas, antes da expulsão e das conversões forçadas decretadas pelo rei D. Manuel I e do estabelecimento da inquisição por D. João III.

Foi o primeiro nome da vila a ser chamado ao tribunal do Santo Ofício, em 1541 - dos 500 nomes hoje gravados no museu Judaico, condenados pela inquisição até 1759, quando D. José I aboliu a distinção entre Cristãos-novos e Cristãos-velhos. 

Não foi acusado por heresia e suspeitas de judaísmo, mas sim por escrever textos polémicos, em verso: as Trovas continham profecias que o tornaram conhecido como vidente e místico. Os versos podiam ser interpretados de várias formas, e a igreja Católica não aceitou que a sua autoridade e ortodoxia fossem questionadas. Foi condenado e proibido de escrever - talvez o maior castigo que se podia aplicar a um poeta.

Regressou a Trancoso e terminou os seus dias na aldeia vizinha de Nogueira, a 6 km da vila. Viveu isolado numa choupana, continuou a fazer profecias e a receber visitas. A lenda das adivinhações cresceu com o tempo: diz-se que previu  o fim  do Santo Ofício, a própria morte e o pagamento da transferência dos seus restos mortais para a igreja de São Pedro, onde se encontra sepultado. Sabe-se que foi casado e teve duas filhas. 

As profecias do fim do império inspiraram o Padre António Vieira e, mais tarde, Fernando Pessoa, que elaboraram a partir delas o misticismo messiânico presente na obra de ambos. Esse misticismo manifestava-se na crença do regresso do rei D. Sebastião, o Desejado, e no advento de um novo império, que seria o quinto e último da história da humanidade - um império construído pelos portugueses, de caráter espiritual e religioso, no Padre António Vieira; cultural e simbólico, em Fernando Pessoa. 

Bandarra foi um espírito livre numa época de fanatismo e perseguições religiosas, adaptou-se ao seu tempo, escreveu por metáforas, alusões e alegorias,  o que não podia dizer diretamente. Um homem demasiado avançado numa época em que só a palavra da ortodoxia Católica era válida.

Trancoso possuía então uma próspera e numerosa comunidade judaica, separada da cristã pela rua da Corredoura. Os cristãos-novos, convertidos à força, gravaram cruzes nas paredes das portas para indicar que se tornaram cristãos e adoravam Cristo, mas adicionaram-lhes sinais compreendidos apenas pela sua comunidade, revelando que, secretamente, continuavam a ser judeus. Esses símbolos ainda são visíveis no interior da muralha, especialmente na rua da Alegria. As casas tinham passagens secretas para as dos vizinhos. Outra característica das habitações judaicas era a existência de duas portas para a rua: uma pequena, para os assuntos domésticos; outra maior, destinada ao comércio.

Túmulo do Bandarra na igreja de São Pedro

Rua da Alegria 


Símbolos nas casas dos Cristãos-novos 






Boneco que representa o padre Costa, de Trancoso: gerou 299 filhos em 53 mulheres. 


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Castelo Mendo

Também Castelo Mendo foi o resultado da sua posição geográfica, cresceu à sombra das guerras de fronteira, dentro de muralhas. Hoje, é uma das 12 aldeias históricas que fazem parte dos roteiros turísticos da Beira Interior. Tem poucas dezenas de habitantes e silêncio nas ruas vazias, em contraste com o que era há séculos atrás. 

Mais um retrato de um país que não sabe o que fazer com o seu passado e história, repleto de camadas esquecidas, que a maioria dos portugueses ignora, onde valeria a pena investir e reconstruir, habitando e valorizando economicamente os locais de baixa densidade. 

Nas traseiras das ruínas da igreja de Santa Maria do Castelo, uma sepultura solitária jaz silenciosa entre as ervas. A placa ao lado informa que se trata da "Sepultura do General", o nobre Miguel Augusto de Sousa Corte Real, "barbaramente assassinado pelos seus próprios soldados em 1840", aos 37 anos de idade. Imagino que foi uma vítima tardia da guerra civil entre absolutistas e liberais. A praça-forte de Almeida manteve-se fiel ao rei D. Miguel, o Usurpador, até 1840. Não encontrei, na pequena vila, explicações de como caiu na posse dos liberais   nem, em Castelo Mendo, as circunstâncias políticas em que o fidalgo foi assassinado. No entanto, considero perfeitamente plausível, unindo os fios da história, que tenha sido vítima desse contexto. 

A guerra civil terminou oficialmente em 1834 com a vitória dos liberais, o que demonstra o quão difícil foi unir o país, assolado por guerrilhas que se mantiveram ativas por muitos anos: surtos de violência, fanatismo e assassínios foram comuns nestas paisagens, serenas e aprazíveis.

Vimos uma senhora debaixo dos ramos da árvore frondosa, fora da muralha a esticar os braços e a levar as mãos à boca, discretamente. Quando saiu, fomos para a árvore. Tal como desconfiávamos, tinha fruta. Amoras roxas, carregadas, entre as folhas banhadas pelo sol. Uma amoreira selvagem com brincos vermelhos e maduros pendurados. Fruta rara que não se compra nos supermercados, nem se vê nos pomares. 

Começamos a apanhá-las e a comer, debaixo de nós o chão carregado de amoras esmagadas por muitos pés  - nódulos de vinho derramado e coágulos de sangue. Sabor intenso, maravilhoso, como já não existe na fruta normalizada e standardizada. Sujamos os lábios e as mãos de tinta vermelha, lambuzamos os dedos, parte da nossa roupa ficou salpicada de nódoas. Saboreei o sabor primitivo da fruta madura:  o mesmo que os nossos antepassados conheceram e perdemos. Lembrei-me da cerejeira branca na berma da estrada em Trás-os-Montes, na minha infância. 

Com tanta guerra, violência e medo, ainda há surpresas generosamente oferecidas pela natureza ao Homem. 










Desenhos de Duarte D'Armas 

Sepultura do General 


Museu Histórico-Militar de Almeida

Celebrando a Vitória, fotografia de Arnaldo Garcês. MHMA

O texto deve ser lido com esta música de fundo (clicar aqui). Perceberão porquê no último parágrafo.

Impressionam os artefactos militares inventados pelo Homem. O museu expõe réplicas e armas originais dos povos que passaram no território de Almeida, e miniaturas de soldadinhos a travarem batalhas, desde os Romanos e Lusitanos até à Primeira Grande Guerra Mundial. 

Foi assombrosa a criatividade humana, ao longo dos séculos, para inventar armas que provocaram mortes, mutilações e dores indizíveis nos inimigos. Os Lusitanos usaram sabres e falcatas de ferro, perfuravam intestinos de um só golpe. Os Romanos infligiram os mesmos ferimentos com gládios - povo tecnicamente mais evoluído,  inventou catapultas que lançavam projéteis, de mais de 20 kg, até 400 metros de distância, arrasavam aldeamentos, derrubavam muralhas e esmagavam, de uma só vez, dezenas de inimigos.

No cerco de Lisboa, utilizaram-se torres de assalto, de vinte e sete metros de altura, para ultrapassar os muros e portas da cidade. 

Fabricaram-se vários tipos de objetos, cortantes e contundentes:  lâminas compridas, gumes metálicos, afiados e reluzentes,  sofisticados e letais - decepavam mãos e pernas num abrir e fechar de olhos. Malhos deformavam cabeças. Morteiros portáteis, canhões e colubrinas (canhões mais compridos, pesados e potentes) afundavam navios. As baionetas - espingardas de lâmina na ponta do cano, preparadas para a luta corpo a corpo - espetavam o inimigo quando estava estendido no chão. Na Primeira Grande Guerra, as metralhadoras disparavam  dezenas de balas em poucos segundos - uma inovação que alvejava vários inimigos de uma só vez.

Objetos que se observam silenciosos nos museus militares do mundo, depois de terem cumprido a sua  tenebrosa missão.

Exigiam conhecimentos técnicos e científicos avançados para o fabrico, minuciosamente aplicados. Eram construídos com os melhores materiais do seu tempo: madeiras finas de cerejeira, metais resistentes, de bronze e ferro fundido. Tinham designs atraentes e o nome do fabricante delicadamente gravado na superfície metálica e polida da arma, a atestar a origem nas mais recomendadas oficinas do mundo. Produtos de luxo que alimentavam a ilusão de invencibilidade.

Apreciados em vitrinas de vidro e salas preparadas para receber confortavelmente os visitantes curiosos, fascinados pela História e pelo passado. Colocados em antigas masmorras, asfixiantes - transformadas atualmente em salas agradáveis, sem o sangue e o horror indescritível da realidade da guerra - revelando, apenas, a memória e os relatos de batalhas distantes.

Perturba constatar o engenho e a capacidade humana utilizados para conceber instrumentos destinados a promover a morte e a destruição do seu semelhante. Exibem-se armas utilizadas ao longo de 2000 anos de conflitos,  que  arrastaram os homens e as  famílias deste território - atualmente tão sonolento e procurado pelo sentimento de  tranquilidade  - para a guerra.  Algo inconcebível para quem nasceu no fim do século passado e viveu sempre em paz. A paz talvez seja uma exceção e não a regra.

O rei D. Manuel I ordenou o registo das 51 fortalezas na fronteira portuguesa, de Castro Marim a Caminha,  ao desenhador Duarte D'Armas - um documento ímpar que as representa no início do século XVI. As aldeias históricas têm placas, junto das muralhas, que  mostram como eram nessa época. Hoje,  encontram-se muito incompletas em relação ao que eram há 500 anos: cidadelas inexpugnáveis,  com torres, baluartes, fossos e muros duplos, dentro das quais viviam centenas de pessoas,  preparadas para resistir a longos cercos. Eram arquiteturas defensivas, típicas de sociedades em guerra constante. 

Almeida tinha uma torre no interior da muralha, que explodiu no dia 26 de agosto de 1810, quando o paiol foi atingido por uma bombarda do exército napoleónico, que a cercava. Houve centenas de mortos, a fortaleza foi destruída e ocupada pelos Franceses. Uma mortandade tremenda na pequena vila de camponeses e militares. Quantas lágrimas, quanto desespero! Inimagináveis, agora,  ao observarmos este local tão pacato.

Um mês antes, um exército de 6000 soldados franceses tinha-se deparado com uma coluna de 4000 soldados anglo-lusos,  que travava o seu avanço do outro lado da ponte do rio Côa. Uma enormidade de homens aos tiros, a matarem-se uns aos outros de cada uma das extremidades, nesta ponte solitária e silenciosa. 

Na sala da Primeira Grande Guerra encontra-se uma fotografia de Arnaldo Garcês, fotógrafo que registou o quotidiano dos soldados portugueses nas trincheiras. Imagem maravilhosa de um soldado a celebrar a vitória. Ouve-se,  na sala,  música de fundo de Edward Elgar, Nimrod: a guerra até parece entusiasmante quando se escutam obras-primas como esta. 



Aqui situava-se o castelo de Almeida, destruído em 26 de Agosto de 1810.

Representação do castelo no século XVI. Desenho de Duarte D'Armas 

Ponte sobre o rio Côa, local de uma célebre batalha entre o exército napoleónico e as tropas anglo-lusas, em Julho de 1810