quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Noite do Porto

 

Cartazes na parede do Pipa Velha

O Pontual, na rua do Almada, tinha apenas dois funcionários: o careca que costuma estar atrás do balcão a fazer  omeletes e outro empregado a servir  às mesas. Os clientes há mais tempo no restaurante aguardavam ainda serem atendidos. Estava demorado. Estivemos cinco minutos com a mesa vazia, sem ver o menu ou ter a oportunidade de pedir entradas. Saímos. Ali perto, talvez o Antunes, na rua do Bonjardim. Sentia-se a vibração de início da noite na baixa do Porto,  filas na entrada dos  restaurantes, malta nova e turistas circulando a pé.

Um grupo numeroso de pessoas  aguardava lugar no Antunes. Os restaurantes mais tradicionais e antigos tornaram-se referências nos guias turísticos,  Tripadvisor e afins. Very tipical, delicious portuguese food, etc. Não se arranja lugar com a mesma facilidade de outrora. Os Portuenses, lentamente, vão sendo excluídos do melhor que a sua cidade tem para oferecer. Talvez o Buraco, na rua do Bolhão. Come-se bem como no Antunes, tem comida tradicional e não é caro. Havia lugar. Fomos para a sala ao fundo, à nossa volta mais turistas. Até este “buraco” já foi descoberto por eles. O interior é algo claustrofóbico e exíguo,   compensado, no entanto,  pela simpatia,  boa-mesa, comida despretensiosa, simples e saborosa, à moda antiga.

Pedimos Bacalhau à Buraco (o mesmo que Bacalhau à Braga ou Espiritual) e uma garrafa de Muralhas de Monção, branco. Entradas de pão, manteiga, queijo  e azeitonas. Os turistas Ingleses na mesa ao lado pediram um pratinho de bolinhos de bacalhau, de entrada. Comemos bolo de bolacha na sobremesa.

Fomos ao Pipa Velha beber o digestivo: aguardente CRF e gin tónico. Ambiente  intimista e tranquilo para beber um copo e conversar sossegadamente. A mesma decoração e tipo de clientela que conheci. Os cartazes de há  trinta anos continuam afixados na parede  com outros mais recentes, peças de teatro de companhias experimentais:  As boas raparigas vão para o céu as más vão para todo o lado,  TEAR,  TUP. Fiquei saudosista da   atmosfera teatral dessa época e das memórias que os cartazes trouxeram, dos espetáculos e dos seus atores. Falamos com o Eurico, lembra-se de nós. Não nos via há algum tempo: “não fazia ideia que era assim há tanto tempo”, disse admirado. É agradável continuar a ser reconhecido, ser cumprimentado pelo dono do bar, ter uma conversa amável com ele.

No caminho até ao Piolho passamos na Praça Carlos Alberto,  ao lado do  que foi o antigo Café Luso, agora um estabelecimento sem personalidade, de luzes vermelhas fluorescentes, sombrio, de mobília  angulosa, pós-moderna e kitsch, para enganar turistas, sem nada a ver com o Luso que ali existiu. Era o ponto de encontro da fauna mais diversa  da noite do Porto, nele  convergiam  atores, estudantes, académicos,  indigentes a pedir esmola, poetas que vendiam poemas escritos na hora no guardanapo de papel, gente de todas as condições e feitios, sítio democrático e livre. Buliçoso e luminoso. Sem preconceitos.   Servia os finos mais frescos e borbulhantes da cidade até às duas da manhã. 

O Piolho continua igual, resistindo às transformações e ao desaparecimento de cafés emblemáticos da cidade.

O Sr. Edgar estava no escritório “a tratar de uns assuntos”, interrompeu o trabalho para  falar connosco. O café Âncora D`Ouro foi oficialmente estabelecido em 1909 pela família Reis Lima, tornou-se local de tertúlias, frequentado por gente da política e estudantes universitários, que passavam horas a estudar e a conviver. Momentos recordados nas lápides colocadas nas paredes.

Não conhece a origem da alcunha “Piolho”. Há várias hipóteses.  A sua favorita diz que devido à distribuição das mesas, em filas compridas, de espaldares quase encostados, estabelecia-se contacto visual com qualquer ponto do restaurante. Coçar a cabeça seria o código secreto para ter cuidado com o que se dizia na presença de pessoas suspeitas. Outra teoria, menos prosaica, é explicada pela proximidade permanente das cabeças, facilitando o contágio de piolhos.  

Depois do vinte e cinco de Abril de 1974 a família Reis Lima passou a gerência a uma  sociedade de Marco de Canaveses. A nova gerência não conseguiu conciliar o momento político do país com a gestão do café. Haviam tensões entre diferentes fações e ideologias, exaltações pessoais que se exacerbavam nas mesas, influenciadas pelo álcool, pela incerteza do momento revolucionário em curso. A gerência proibiu estudar no interior  do café. Os tempos não estavam fáceis.  O sr.  Edgar começou a trabalhar nessa altura, nos finais da década de 70, com menos de dezoito anos. Assumiu a gerência com mais dois sócios, já falecidos. Não tinha experiência, foi aprendendo com os empregados mais antigos. Fez alguns disparates  - mandou retirar e vender a escadaria de prata que ligava ao piso superior. Está feliz com o sucesso do café,  manteve-o fiel à origem, fazendo poucas alterações na decoração. As cadeiras e as mesas continuam as mesmas de sempre, restauradas. Tal como o balcão, o soalho e os espelhos nas paredes.  As casas de banho são novas: “antigamente havia umas cortinas nas casas de banho das senhoras, os mais malandros colocavam-se nas mesas próximas a espreitá-las”.  Teve de se adaptar ao pós 25 de abril. As praxes, conotadas com a ditadura, foram proibidas. O restaurante perdeu  espírito, carisma e tradição. Em 1983 as praxes voltaram a ser permitidas,  os estudantes  a frequentar o café como antes. Mostrou-nos a sua placa favorita: a dedicatória de um estudante tímido, apaixonado por uma miúda a quem não se conseguia declarar: “Vai lá, ganha coragem, não tens nada a perder, senta-te ao pé dela, fala com ela”, dizia-lhe  ele. Assim foi. Os dois estudantes começaram a namorar e casaram. Ele era do Funchal, ela de Florença, Itália, conheceram-se no Porto, no café Piolho. A Placa tem o nome das três cidades e o ano de 2014.

Pipa Velha

Cadeira do "Piolho"




Interior do "Piolho"


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