sábado, 8 de novembro de 2025

Passadiço de Pindelo

 


Tenho como missão de vida ajudar o próximo e reduzir o seu sofrimento, tornar a vida dos outros mais alegre nestes tempos de servidão e medo.

Vivemos tempos sombrios, a dor alastra às famílias. Os pais envelhecem e morrem, amigos próximos adoecem jovens, ainda com muita vida pela frente.

Vidas cheias de obstáculos financeiros, orçamentos apertados, dívidas. Doenças e morte. Gente desamparada, deprimida e triste, sem saber para onde se virar,  impotente para seguir em frente.

Procuro Deus dentro de mim, Ele existe no meu íntimo à espera de ser encontrado, não é justo que perca a fé e o culpe das desgraças do mundo. Só tenho a agradecer Ele me dar a oportunidade de presenciar a vida a desenrolar-se à minha frente.

Devo encontrar alegria e alento na dor e fealdade, não desejar o mal de ninguém, mesmo quem maltrata e odeia o seu semelhante. Se responder com rancor torno-me igual a quem odeia e perpetuo e ciclo de sofrimento e revolta das pessoas.

Devo estar acima da história e dos acontecimentos quotidianos que todos os dias nos abalam e entram pela casa adentro.

Os ramos de jasmim, o céu azul sobre mim, a chuva, o vento e o sol, os pássaros que voam existirão sempre. Mesmo das grades e das prisões que nos cercam podemos olhar para fora e ver  beleza em todo o lado. Devemos estar gratos por isso.

Como não me alegrar e não pensar em Deus?

Todas as noites oro, tenho plena consciência de mim, do meu papel e da minha vida dentro dos acontecimentos que fluem e não domino. Compreendo a dor dos Homens e  a minha, e aceito-a. Sinto-me grata por ser assim.

Adoro conversar com as pessoas, tornei-me muito perspicaz a ler a sua alma. Em poucos minutos compreendo toda a sua vida e dor e sinto uma enorme compaixão por elas. Elas sentem que eu as compreendo  e, sem eu nada dizer ou pedir, abrem-se comigo e contam o livro das suas vidas.

Apaixonei-me por muitos homens, mas nunca serei capaz de me casar e de me entregar a um só homem. Não existe nenhuma contradição entre procurar Deus incessantemente dentro de mim e amar mais do que um homem ao mesmo tempo. Neles encontro diferentes manifestações de Deus.

Sinto por S. uma enorme ternura, todos os dias penso nele e quando estamos juntos o nosso amor é casto e profundo.

Durmo no regaço de Han, por ele sinto um amor  físico e intenso, enterro-me nele com  uma alegria vibrante.  Em Amsterdão ando de bicicleta todos os dias, de cigarro na mão, viva e fremente, em direção ao consultório de S. e não sinto qualquer remorso por deixar Han sozinho nos meus outros lençóis.

Quando engravidei subi e desci escadas propositadamente para me estafar, bebi mezinhas e injetei água quente para dissolver a vida que crescia dentro de mim. Não quero ser mãe nem ficar impedida de buscar Deus. Necessito de disponibilidade emocional e tempo para ajudar as pessoas a ultrapassarem o seu sofrimento nestes dias sombrios, de estar ao seu lado descomprometidamente.

Estou em Portugal a convite do João. Ele hoje trouxe-me ao passadiço de Pindelo, ver cascatas, serra e rochas íngremes, que não vejo nos Países Baixos. Mostrei o  meu diário. disse:

- Estou a escrever um diário e mais tarde talvez escreva um grande romance no qual colocarei tudo o que se passa neste tempo e  que  considero importante dizer às pessoas. Ainda temos de aprender a lidar com todas as nossas possibilidades, sinto que tenho algo a dizer para tornar o mundo melhor e haver menos sofrimento.

João folheou o caderno amarrotado de linhas azuis onde anoto os meus pensamentos, fui-lhe traduzindo do neerlandês algumas frases que considero mais felizes,  nas quais consegui representar com alguma fidelidade os meus pensamentos íntimos sobre Deus

- Etty, pela maneira tão entusiasmada e profunda com que falas e escreves, talvez um dia venhas a ser conhecida pelo teu diário. Não necessitas de escrever um grande romance ou poemas, possuis  uma prosa  poética e bela.  O diário é rico, o pensamento e vida nele contida  desmesurados e vastos. Revelas grandeza ao  falar das profundezas da tua alma e ao mostrar o caminho espiritual que encetaste quando conheceste S.  O teu livro ficará na história como “O Diário de Etty Hillesum”, acredita em mim.

Caminhamos pelo passadiço observando as maravilhas de Deus e do Homem, neste breve intervalo de sossego que encontramos juntos, falando da centelha divina que existe em nós. De como nos cruzamos neste tempo, através de um livro. Demos as mãos e seguimos até à cascata da Pedra Má.