sábado, 25 de janeiro de 2025

Ecovia do Arda

 


Seguimos as palavras de um velho sábio que encontramos no caminho: “Parem onde virem o pássaro rosa  cantar para vocês.” Assim fizemos. Enquanto observávamos o painel informativo no início do percurso, a 300 metros do centro da velha cidade das freiras, o pássaro rosa cantou.  Ao princípio, não o reconhecemos. Perante a sua insistência, olhamos para trás. Vimo-lo aos nossos pés, dizendo: “É aqui!” Depois voou, assustado, pousando no ramo mais seguro que encontrou.  Fomos ao longo do Arda, contando o tempo e os passos, agradados pela tranquilidade do caminho. Os prados humedecidos pelas chuvas do primeiro mês, as levadas e as flores, velhas casas senhoriais,  acompanharam  nosso breve rumo. O sol descia  sua luz suave de fim de tarde, decidimos regressar à cidade, acompanhando o arco-íris sobre a montanha.

Voltaremos mais tarde para concluir o caminho. Talvez de bicicleta, fruindo no pouco tempo o  vale plano do Arda, saindo e voltando por passadiços e ecovias recentes, debaixo das sombras da folhagem frondosa que não vimos.

O velho sábio disse-me uma última vez: “Tu, que voltarás para trabalhos e dias entediantes, leva contigo estas palavras… ri delas, aguenta. Frui a vida com humor. De um poema  que conheces. Vê só a  adaptação que  fiz, propositadamente para ti…”

Entregou-me um papel engelhado, previamente amarrotado, como se tivesse decidido deitá-lo fora e arrependido, no último momento, de o fazer, entregando-o ao primeiro transeunte que encontrasse, que, por acaso, fui eu. No qual estava escrito numa letra desorganizada, rasurada e reescrita várias vezes, evidenciando várias tentativas de escrever algo de jeito, o seguinte texto:

Ítaca (de regresso ao trabalho)

Quando partires de regresso a Ítaca,

Deves orar por uma jornada longa,

Plena de desgaste e más experiências.

Patrões, colegas, e mais chatices,

Um chefe irado – não os temas,

Pensa naqueles que nada fazem.

Se fores brioso e digno e um sentir irado

Teu corpo toca e sobe pela espinha acima.

Patrões, colegas, e mais chatices,

Chefes em fúria – sempre encontrarás

Se é no teu corpo que os levas

Ou a eles ceder  perante ti.

Deves orar por uma jornada longa,

Que sejam muitas as manhãs de inverno,

Quando, com que desprazer, com que esforço,

Entrares em escritórios iguais a tantos outros!

Em gabinetes claustrofóbicos evitarás deter-te

Requerendo audiências, pedidos e autorizações

Que nunca mais chegam ….

(e por aí fora…)










sábado, 18 de janeiro de 2025

Viagem à Grécia

 


Os sentimentos são manipulados. Sentados, assistimos à indução permanente das emoções.

O cinema é interessante por si só, não é necessário o ruído publicitário. Ir ao cinema, diz  Nicole Kidman, é magia, um mundo maravilhoso em que entramos. É verdade, às vezes. Depende do filme. Não precisamos, contudo, que nos digam isso. Nós sabemos, nós sentimos.

A coca-cola diz: “o mundo precisa do Pai Natal”, num filme alegre, de gente feliz que realiza desejos e encontros.

A Vodafone faz um flashback dos anos 80: duas mulheres beijam-se. Uma delas não assume o amor pela outra, por receio. Nos anos 2020, a mesma mulher, envelhecida 40 anos, recebe o sobrinho gay e o namorado na noite de Natal. Após  alguma hesitação, ela diz: “Estou muito orgulhosa de ti.” Depois disso, envia uma mensagem por telemóvel a Beatriz, a paixão  dos anos 80, desejando-lhe um Feliz Natal.

Por detrás do progressismo, da tolerância, do discurso dos direitos humanos, a lavagem comercial esconde o  desrespeito pelas condições  básicas de trabalho, o incumprimento de horários e salários decentes que permitam viver condignamente, de empresas que tão intensamente, e constantemente, apelam à emoção.

Até que ponto os sentimentos, a cultura, o consumo, se transformaram numa gigantesca manipulação e numa grande máquina de vender? É real  este choro?

Prefiro o cinema pelo cinema, sem pipocas e sem publicidade.  

Foi com estes pensamentos que Rafael decidiu  fazer o inter-rail, para estar consigo, ter maior consciência de si. Sem manipulações. Ver o mundo em estado puro, fazer o seu filme pessoal da realidade, sem interferências alheias. E na verdade, porém, porque não teve paciência de arranjar companhia, ou alguém conhecido  que fizesse questão de ir com ele.

Chegou à Grécia. Uma viagem de mais de 2000 km, à outra extremidade da Europa. Sentou-se numa esplanada, ao fim da tarde, vendo as miúdas aperaltadas entrando nos táxis da praça em frente. Iam para “A" noite, era sexta-feira. Observou com vontade de ir atrás, meter conversa, conhecer uma tipa. Mas estava sozinho.

Que faria um Português tímido e só  num sítio desconhecido, longe de casa?

Talvez não fosse boa ideia. Não conhecia  o país e  a cultura, embora lhe agradasse aquele ambiente descontraído e sedutor.  Naquele momento, teve maior consciência da solidão em que se encontrava. Os sentimentos não eram manipulados pela publicidade, eram reais e intensos.  Sentiu-se tremendamente sozinho.

Acreditou nos filmes, nas viagens que via na televisão, nos relatos de quem fez o inter-rail antes dele. Não valia a pena a solidão e o cansaço  só para dizer, quando chegasse a Portugal: “Estive na Grécia”, não disfarçando o orgulho.  

Era um mirone, olhando as mulheres. Sem ninguém com quem conversar. Apenas o menu como tema de conversa com o garçon. Palavras gregas traduzidas para inglês. Perguntava o que eram: a salada, a soda, o Ouzo. Vendo-as entrar nos táxis, partindo para  “A" noite.  Crescendo o sentimento de vazio dentro dele,   imaginando outros filmes com elas.

Não teve consciência do quão sozinho se sentiria. Pura ingenuidade.

Levava consigo a fotocópia de um poema – apenas um, numa folha no meio dos documentos -, Ithaka, de Kavafy, que um amigo lhe arranjara. Não queria ocupar espaço e peso  com livros na mochila.  Foi o mais leve possível. As memórias e os apontamentos de viagem, escreveria depois, quando chegasse.

Viu, de facto,  navios partirem para Íthaca, de mochila às costas, no porto de Patras.

Os dias, passava-os a caminhar acelerado, vendo monumentos, por longas avenidas, sem parar, fazendo praia.  O máximo possível para enganar a solidão. De noite, via televisão no quarto do hotel, numa língua estranha, olhava mapas e guias turísticos, planeava o dia seguinte, contava as horas.  Dormia em hotéis baratos, geralmente barulhentos, virados para as estradas, ao pé das estações. Os primeiros que encontrava. Tinha pouco dinheiro e não queria andar muito tempo de mochila às costas, dorido e suado, dos quilómetros passados dentro de carruagens,  em estações de comboio e portos impessoais.  

O ciclo voltava a repetir-se no dia seguinte. Uns encontros, umas conversas esporádicas, não mais do que isso. Enviou postais aos amigos e família, escrevendo basicamente a mesma mensagem em todos eles: a viagem à Grécia está a ser “Fantástica!!”










sábado, 11 de janeiro de 2025

São Gonçalinho

 


Foram encomendadas à confraria 7 toneladas de cavacas, distribuídas por sacos de 5 kg. Cerca de 1400 sacos vendidos a 40 € cada, que as pessoas levam consigo para cumprir a tradição, atirando-as  do cimo da capela.  A fila na entrada da sacristia lateral,  que dá acesso à escadaria para a cúpula, alonga-se dezenas de metros. Pessoas de todas as idades, famílias, pais com o bebé no marsupial, amigos, crianças de capacete, que também estiveram a apanhar cavacas, aguardam a vez de subir.

Compro na primeira barraquinha que encontro um saco de 5 cavacas  por 6€. Preço standard. Não vale a pena procurar mais barato. Vou para a fila, sou o único com o saco pequeno. É um momento único para os beira-marenses, devotos deste santo, castiço e popular, ternamente apelidado de São Gonçalinho pelas gentes do bairro. Os forasteiros como eu, que só comparecem nos dias da festa, não compram os sacos grandes, esgotados  há três semanas.

O confrade controla  as entradas. Espero  com outras pessoas a ordem para nos deixar subir. Enquanto isso, ele vai conversando bem-disposto: “Sorria, as tristezas não pagam dívidas”, diz,   vendo-me encostado à parede. Fala dos “testemunhos” com um dos visitantes. Não se pode ser confrade todos os anos “tem-se de passar o testemunho”.  

Subo os 41 degraus  até ao exterior da cúpula. Contorno numa fila ordeira  o pátio estreito,  vejo os telhados circundantes, a ria e centenas de pessoas que se aglomeram nas ruas de acesso à capela. Dezenas delas concentram-se no átrio, olham para cima, seguram guarda-chuvas virados ao contrário, camaroeiros e sacos,  prontas para apanhar as cavacas. Atiro as minhas lá para baixo com pouca força, filmando o momento. Ouvem-se  os gritos  de quem  se assusta com a dureza das cavacas e por um triz não leva com uma na cabeça, e de alegria, por conseguirem apanhá-las. Como num  jogo de crianças em que ganha quem mais encher o saco de rebuçados.  Outra tradição, é tocar o sino da capela.  O som ouve-se à distância, sabendo-se ao longe  que estão a ser lançadas cavacas. O lançamento decorre de manhã à noite,  só interrompido durante a realização das cerimónias religiosas.

O  espírito do São Gonçalinho é ingenuidade e alegria, traduzida no diminutivo do nome, nos santinhos de barro de várias cores colocados nas janelas, na airosidade   de milhares de pessoas que se juntam para o celebrar.

O programa deste ano.




O altar do São Gonçalinho

Moliceiro no canal de São Roque

Armazém com sacos de cavacas, de 5kg




Monumento comemorativo da desaparecida muralha de Aveiro. Inaugurado em 8 de dezembro de 2024, da autoria de Siza Vieira



domingo, 5 de janeiro de 2025

As Bestas

 


A energia eólica dá dinheiro aos donos dos terrenos. Uma bênção para muitos.  Costumam aparecer ambientalistas, geralmente gente urbana que não conhece a vida árdua do campo, contra a instalação dos parques. Pessoal cosmopolita pensando pelos outros,  julgando que partilham as mesmas vontades e ideias que eles. Defendem a preservação da natureza, a paisagem e a integridade territorial. A riqueza vem pelo turismo sustentável. 

Podia estar a acontecer connosco,  numa das nossas aldeias.  Assistimos como se fizéssemos parte do enredo, observando o simpático  casal de Franceses  que abandonou  a  vida no seu país a atirou-se de alma e coração a uma  nova vida na aldeola galega, perdida nas montanhas.   Local que os apaixonou e que o terão conhecido fazendo o caminho de Santiago – a certa altura veem-se peregrinos de mochila às costas calcorreando a floresta. Detalhe irrelevante. O importante é que chegam cheios de vontade, pondo mãos à obra, recuperando estábulos e pardieiros, trabalhando a terra, cultivando alimentos, vendendo  no mercado local. 

A  chegada gera um conflito entre dois modos de ser, perspectivas de vida e anseios antagónicos, mostrando o lado polido e educado do ser humano e os seus instintos mais sombrios e violentos.   A  maldade do mundo bem explicada pelos olhos das “bestas” até se torna compreensível. O Homem é capaz, consoante o ambiente em que cresce,  do melhor e do pior. As duas  facetas  através de uma história, interpretações e ambientes absolutamente realistas. 

Convincente e tenso do princípio ao fim. Dos melhores  que vi nos últimos meses.