Os sentimentos são manipulados.
Sentados, assistimos à indução permanente das emoções.
O cinema é interessante por si só,
não é necessário o ruído publicitário. Ir ao cinema, diz Nicole Kidman, é magia, um mundo
maravilhoso em que entramos. É verdade, às vezes. Depende do filme. Não
precisamos, contudo, que nos digam isso. Nós sabemos, nós sentimos.
A coca-cola diz: “o mundo
precisa do Pai Natal”, num filme alegre, de gente feliz que realiza desejos
e encontros.
A Vodafone faz um flashback dos
anos 80: duas mulheres beijam-se. Uma delas não assume o amor pela outra, por
receio. Nos anos 2020, a mesma mulher, envelhecida 40 anos, recebe o sobrinho
gay e o namorado na noite de Natal. Após
alguma hesitação, ela diz: “Estou muito orgulhosa de ti.” Depois
disso, envia uma mensagem por telemóvel a Beatriz, a paixão dos anos 80, desejando-lhe um Feliz Natal.
Por detrás do progressismo, da tolerância, do discurso dos direitos humanos, a lavagem comercial esconde o desrespeito pelas condições básicas de trabalho, o incumprimento de horários e salários decentes que permitam viver condignamente, de empresas que tão intensamente, e constantemente, apelam à emoção.
Até que ponto os sentimentos, a
cultura, o consumo, se transformaram numa gigantesca manipulação e numa grande
máquina de vender? É real este choro?
Prefiro o cinema pelo cinema, sem
pipocas e sem publicidade.
Foi com estes pensamentos que Rafael
decidiu fazer o inter-rail, para estar
consigo, ter maior consciência de si. Sem manipulações. Ver o mundo em estado
puro, fazer o seu filme pessoal da realidade, sem interferências alheias. E na
verdade, porém, porque não teve paciência de arranjar companhia, ou alguém conhecido
que fizesse questão de ir com ele.
Chegou à Grécia. Uma viagem de
mais de 2000 km, à outra extremidade da Europa. Sentou-se numa esplanada, ao
fim da tarde, vendo as miúdas aperaltadas entrando nos táxis da praça em
frente. Iam para “A" noite, era sexta-feira. Observou com vontade de ir atrás,
meter conversa, conhecer uma tipa. Mas estava sozinho.
Que faria um Português tímido e
só num sítio desconhecido, longe de casa?
Talvez não fosse boa ideia. Não
conhecia o país e a cultura, embora lhe agradasse aquele
ambiente descontraído e sedutor. Naquele
momento, teve maior consciência da solidão em que se encontrava. Os sentimentos não
eram manipulados pela publicidade, eram reais e intensos. Sentiu-se tremendamente sozinho.
Acreditou nos filmes, nas viagens
que via na televisão, nos relatos de quem fez o inter-rail antes dele. Não
valia a pena a solidão e o cansaço só
para dizer, quando chegasse a Portugal: “Estive na Grécia”, não
disfarçando o orgulho.
Era um mirone, olhando as mulheres.
Sem ninguém com quem conversar. Apenas o menu como tema de conversa com o
garçon. Palavras gregas traduzidas para inglês. Perguntava o que eram: a salada,
a soda, o Ouzo. Vendo-as entrar nos táxis, partindo para “A" noite. Crescendo o sentimento de vazio dentro dele, imaginando outros filmes com elas.
Não teve consciência do quão sozinho
se sentiria. Pura ingenuidade.
Levava consigo a fotocópia de um
poema – apenas um, numa folha no meio dos documentos -, Ithaka, de Kavafy,
que um amigo lhe arranjara. Não queria ocupar espaço e peso com livros na mochila. Foi o mais leve possível. As memórias e os
apontamentos de viagem, escreveria depois, quando chegasse.
Viu, de facto, navios partirem para Íthaca, de mochila às
costas, no porto de Patras.
Os dias, passava-os a caminhar acelerado, vendo monumentos, por longas avenidas, sem parar, fazendo praia. O máximo possível para enganar a solidão. De noite, via televisão no quarto do hotel, numa língua estranha, olhava mapas e guias turísticos, planeava o dia seguinte, contava as horas. Dormia em hotéis baratos, geralmente barulhentos, virados para as estradas, ao pé das estações. Os primeiros que encontrava. Tinha pouco dinheiro e não queria andar muito tempo de mochila às costas, dorido e suado, dos quilómetros passados dentro de carruagens, em estações de comboio e portos impessoais.
O ciclo voltava a repetir-se no dia seguinte. Uns encontros, umas conversas esporádicas, não mais do que isso. Enviou postais aos amigos e família, escrevendo basicamente a mesma mensagem em todos eles: a viagem à Grécia está a ser “Fantástica!!”
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