sábado, 18 de janeiro de 2025

Viagem à Grécia

 


Os sentimentos são manipulados. Sentados, assistimos à indução permanente das emoções.

O cinema é interessante por si só, não é necessário o ruído publicitário. Ir ao cinema, diz  Nicole Kidman, é magia, um mundo maravilhoso em que entramos. É verdade, às vezes. Depende do filme. Não precisamos, contudo, que nos digam isso. Nós sabemos, nós sentimos.

A coca-cola diz: “o mundo precisa do Pai Natal”, num filme alegre, de gente feliz que realiza desejos e encontros.

A Vodafone faz um flashback dos anos 80: duas mulheres beijam-se. Uma delas não assume o amor pela outra, por receio. Nos anos 2020, a mesma mulher, envelhecida 40 anos, recebe o sobrinho gay e o namorado na noite de Natal. Após  alguma hesitação, ela diz: “Estou muito orgulhosa de ti.” Depois disso, envia uma mensagem por telemóvel a Beatriz, a paixão  dos anos 80, desejando-lhe um Feliz Natal.

Por detrás do progressismo, da tolerância, do discurso dos direitos humanos, a lavagem comercial esconde o  desrespeito pelas condições  básicas de trabalho, o incumprimento de horários e salários decentes que permitam viver condignamente, de empresas que tão intensamente, e constantemente, apelam à emoção.

Até que ponto os sentimentos, a cultura, o consumo, se transformaram numa gigantesca manipulação e numa grande máquina de vender? É real  este choro?

Prefiro o cinema pelo cinema, sem pipocas e sem publicidade.  

Foi com estes pensamentos que Rafael decidiu  fazer o inter-rail, para estar consigo, ter maior consciência de si. Sem manipulações. Ver o mundo em estado puro, fazer o seu filme pessoal da realidade, sem interferências alheias. E na verdade, porém, porque não teve paciência de arranjar companhia, ou alguém conhecido  que fizesse questão de ir com ele.

Chegou à Grécia. Uma viagem de mais de 2000 km, à outra extremidade da Europa. Sentou-se numa esplanada, ao fim da tarde, vendo as miúdas aperaltadas entrando nos táxis da praça em frente. Iam para “A" noite, era sexta-feira. Observou com vontade de ir atrás, meter conversa, conhecer uma tipa. Mas estava sozinho.

Que faria um Português tímido e só  num sítio desconhecido, longe de casa?

Talvez não fosse boa ideia. Não conhecia  o país e  a cultura, embora lhe agradasse aquele ambiente descontraído e sedutor.  Naquele momento, teve maior consciência da solidão em que se encontrava. Os sentimentos não eram manipulados pela publicidade, eram reais e intensos.  Sentiu-se tremendamente sozinho.

Acreditou nos filmes, nas viagens que via na televisão, nos relatos de quem fez o inter-rail antes dele. Não valia a pena a solidão e o cansaço  só para dizer, quando chegasse a Portugal: “Estive na Grécia”, não disfarçando o orgulho.  

Era um mirone, olhando as mulheres. Sem ninguém com quem conversar. Apenas o menu como tema de conversa com o garçon. Palavras gregas traduzidas para inglês. Perguntava o que eram: a salada, a soda, o Ouzo. Vendo-as entrar nos táxis, partindo para  “A" noite.  Crescendo o sentimento de vazio dentro dele,   imaginando outros filmes com elas.

Não teve consciência do quão sozinho se sentiria. Pura ingenuidade.

Levava consigo a fotocópia de um poema – apenas um, numa folha no meio dos documentos -, Ithaka, de Kavafy, que um amigo lhe arranjara. Não queria ocupar espaço e peso  com livros na mochila.  Foi o mais leve possível. As memórias e os apontamentos de viagem, escreveria depois, quando chegasse.

Viu, de facto,  navios partirem para Íthaca, de mochila às costas, no porto de Patras.

Os dias, passava-os a caminhar acelerado, vendo monumentos, por longas avenidas, sem parar, fazendo praia.  O máximo possível para enganar a solidão. De noite, via televisão no quarto do hotel, numa língua estranha, olhava mapas e guias turísticos, planeava o dia seguinte, contava as horas.  Dormia em hotéis baratos, geralmente barulhentos, virados para as estradas, ao pé das estações. Os primeiros que encontrava. Tinha pouco dinheiro e não queria andar muito tempo de mochila às costas, dorido e suado, dos quilómetros passados dentro de carruagens,  em estações de comboio e portos impessoais.  

O ciclo voltava a repetir-se no dia seguinte. Uns encontros, umas conversas esporádicas, não mais do que isso. Enviou postais aos amigos e família, escrevendo basicamente a mesma mensagem em todos eles: a viagem à Grécia está a ser “Fantástica!!”










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