sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Caminho Português de Santiago (Variante Espiritual), Etapa 1: Pontevedra - Armenteira

 

Combarro

O meu primo convidou-me para fazer o Caminho de Santiago, um qualquer. Escolhi a variante espiritual, entre Pontevedra e Pontecesures, e seguir para Santiago. Por serem poucos dias,  não estarmos fisicamente preparados para caminhadas longas e  ser próximo do mar, detalhe importante no Verão, período de temperaturas altas.

Talvez três ou quatro dias fossem suficientes.

Apanhamos às três da manhã o autocarro da Flixbus na Estação Intermodal de Campanhã e três horas mais tarde estávamos em Pontevedra, preparados para iniciar o caminho. Não reservamos albergue, nem hotel, nem viagem de regresso, fomos à descoberta, ao improviso, recetivos ao que o caminho nos tinha para oferecer e foram muitas as dádivas e surpresas que tivemos.

Logo em Pontevedra o que mais surpreendeu foi a quantidade de albergues, hotéis e lojas que proliferam com o caminho, vendendo dormida, comida, recuerdos.

Entramos na igreja da Virgem Peregrina, compramos duas vieiras, que penduramos visíveis na mochila para sermos identificados como peregrinos. A hospitaleira fez o primeiro carimbo da caminhada na nossa credencial.

O caminho é coincidente nos primeiros quilómetros com o trajeto principal. Atravessamos a ponte, seguimos para norte alguns quilómetros.

A quantidade de caminhantes que passavam por nós! Amigos e casais que resolveram fazer a sua caminhada matinal com os filhos, levando quase nada nas costas; grupos de peregrinos que começaram o caminho muitas etapas antes, facilmente identificados pelas mochilas maiores, os bastões e as vieiras, caminhando uns mais vigorosamente do que outros, mas todos em passo regular, já com muitos quilómetros nas pernas. Centenas que todos os dias, seguramente, fazem o trajeto no verão. Uma romaria em direção a Santiago, de mochilas às costas, bastões e roupa desportiva, que também me surpreendeu, não eram ainda nove horas da manhã.

Quatro quilómetros após o inicio, fizemos o desvio à esquerda pela variante espiritual.

Antes de Combarro, tivemos o troço mais duro de toda a variante, uma subida ingreme até ao mosteiro do  Poio. Caminho de terra entre pinhais e prados, onde nos cruzamos com manadas de cavalos selvagens, pastando tranquilamente, indiferentes à nossa passagem. No miradouro do Loureiro usufruímos de uma magnífica vista sobre a ria e o mar. Cruzamo-nos com uma peregrina jovem que caminhava sozinha no meio da floresta. Seguiu sem dizer palavra, apenas a troca de olhares e o sorriso normal entre peregrinos que se cruzam em lugares ermos. Caminhou alguns quilómetros à nossa frente. Por vezes, perdíamo-la de vista. Pensamos o quão corajosa era por estar sozinha, em atravessar lugares como aquele, onde facilmente podia haver um perigo oculto à espreita. Disse o meu primo: “deve ter uma metralhadora na mochila!”.

Chegamos ao mosteiro do Poio e carimbamos a credencial na Casa Consistorial. Conjunto harmonioso de edifícios antigos em granito, construídos na idade média, com pousada, habitado por monges Beneditinos. Imperava o silêncio, os jardins envolventes estavam cuidados, via-se o mar. Ficamos alguns minutos a desfrutar o local, percebemos que um grupo de peregrinas americanas tentava reservar por telefone o albergue para a noite. Entramos no mosteiro, visitamos os claustros, as salas laterais, de tetos ogivais, com quadros e esculturas de santos, a igreja de estilo românico e as capelas. Ambiente tranquilo e aconchegante, onde imediatamente se sente paz interior. Independentemente da fé de cada um, é impossível ficar-se indiferente num sítio assim.  

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Combarro é uma pequena vila turística encostada à ria de Pontevedra. Sítio aprazível onde nos demoramos, deambulando pelas ruelas estreitas, tirando fotografias aos espigueiros e eiras tradicionais, vendo as pequenas lojas de recordações, procurando um local para nos sentarmos e comer. Tínhamos o estômago a dar horas. Encontramos um snack-bar na estrada de Sanxenxo, o único sítio do caminho onde fomos mal servidos, mas no momento não sabíamos isso, ainda. Na mesa ao lado, um grupo de cinco peregrinos de nacionalidades diferentes conversava entre si em Inglês, misturando palavras de  Espanhol e outros  idiomas que não identifiquei. O meu primo disse que uma das peregrinas devia ser Grega.

- Porquê ?

- Pelo sotaque.

Pedimos duas tostadas de queijo e manteiga, uma caña (fino) e um copo de vinho branco Albariño. Passaram vários minutos sem que viesse a comida, perguntamos porque demorava tanto. Era sexta-feira, havia pouca gente, mas estava quase. Pensamos que viria uma grande tostada, como as que temos em Portugal, feitas com pão alentejano, de fatias de queijo tradicional meio derretidas a escorrer para fora. Veio uma fatia pequena, mal torrada, e dois pacotinhos de manteiga e queijo para barrar. Ficamos desapontados com o serviço e pagamos tanto ou mais como o que viríamos a pagar noutros locais, mais bem servidos. Ainda por cima tivemos de ser nós a barrar o pão!

Enganamo-nos duas vezes no caminho, logo de imediato as pessoas que nos viram seguir na direção errada chamaram-nos à atenção. Na primeira vez, um grupo de peregrinos, que se encontrava a descansar na sombra das árvores, disse-nos com humor: “estávamos aqui de propósito para vos ajudar”.  Na segunda vez, passamos por um indivíduo sentado na rua a ouvir música do rádio. Alguns metros mais à frente, um senhor veio à janela dizer-nos: “não é por aí, voltem atrás”; ao mesmo tempo, o sujeito do rádio já se tinha levantado da cadeira e  vinha atrás de nós para nos corrigir. Agradecemos a ambos.

O caminho está sinalizado com setas amarelas, vieiras em azulejos azuis, placas metálicas e   cruzeiros antigos de granito, com Jesus Cristo ou Santiago no topo da coluna, indicando a direção correta, que só mesmo dois peregrinos, completamente distraídos e cegos com a conversa, como era o nosso caso, se poderiam perder.

Seguimos até Armenteira para terminar a última parte dos 24 km da primeira etapa. Dezenas de peregrinos conviviam nas esplanadas da pequena alameda que dá acesso ao mosteiro de monjas. Visitamos os claustros com o seu chafariz e os salões laterais, novamente o mesmo tipo de arquitetura e objetos religiosos. A mesma paz, silêncio e aconchego.

A oficina de turismo, dentro do mosteiro, abriria às quatro da tarde. No momento em que eu consultava o horário de funcionamento, a funcionária abriu a porta e mandou-me entrar. Assim fiz. Perguntei se havia vagas no mosteiro – as monjas alugam quartos aos peregrinos. Estava esgotado.

Pedi os contactos de outros albergues e residências próximas. Escreveu o número de telefone e o nome das casas onde podia encontrar dormida.

Enquanto falava com a funcionária, sempre simpática e solícita, respondendo demoradamente e dando mais informações do que as pedidas por mim, o tempo passou. Pressenti que atrás de mim alguém me fulminava com os olhos, apercebi-me então que, inadvertidamente, passei à frente de um casal de peregrinos que já ali estava à espera de ser atendido.  O mal estava feito, passei por eles sem dizer palavra, com o ar mais ingénuo que podia, e sai para a rua.  

Ligamos para os números. Tudo esgotado! 

- Não te preocupes. Fica “tranquilo!”, como dizem os espanhóis – disse ao meu primo.

Fomos para a esplanada comer pimentos padron, beber cañas e copas de vinho branco, descansar as pernas, ponderar o que fazer. O pior que podia acontecer era dormir na rua, o tempo estava agradável, tínhamos água da fonte perto de nós para nos lavarmos às escondidas.

O meu primo: se tivéssemos um saco cama até era fixe!

- No te preocupes, hombre, tranquilo!

O casal saiu da oficina com ar de quem também não tinha sítio. Sentou-se na esplanada próximo de nós. Aquela que o meu primo julgava ser Grega foi ter com eles, percebi que o casal era francês e que ela tinha outra nacionalidade, pois falavam em Inglês entre si, mas que dominava o espanhol melhor do que eles. Foi quem fez as chamadas telefónicas, provavelmente para os mesmos sítios.  Vi a cara desalentada que faziam depois de cada chamada.

Íamos pensando nas possibilidades que tínhamos: dormir na rua, chamar táxi e procurar hotel numa cidade maior, continuar a caminhar até encontrar um local com dormida. É nos momentos de relaxamento, tendo o estômago satisfeito e a sede saciada, que as melhores ideias, as mais simples, aparecem.

- E se formos ao albergue municipal perguntar, como se não soubéssemos de nada, se tem dormida para nós? Não nos podem deixar na rua, somos peregrinos! – disse o meu primo.

Celebramos a brilhante ideia com mais uma tapa de pimentos padron e bebida, vendo chegar mais peregrinos à pequena alameda, descendo da montanha. O meu primo comentou: “olha aquela peregrina, tem  um ar mesmo derreado, mal pode andar!” Apesar de jovem e elegante, devia ser a primeira vez que fazia os caminhos.

Tal como estávamos à espera, não havia vagas no albergue. O hospitaleiro, contudo, disse-nos: “Vou ligar a um pessoa, a perguntar se ainda há lugar para vocês em casa dela. Está lá fora uma peregrina portuguesa à espera que a venham buscar.” Havia lugar.  Juntámo-nos à peregrina, era quem tínhamos visto chegar derreada a Armenteira. Jéssica, natural de Alenquer.

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Clara chegou num KIA branco, levou-nos a Barrantes, 5 km mais à frente.

Ficamos deslumbrados com o que vimos. A casa estava cercada por um relvado com pinheiros bravos que faziam uma sombrinha agradável no jardim. Fomos recebidos pela irmã de Clara, Ester.  Mostrou os quartos, a máquina de lavar roupa, a cozinha onde tomaríamos o pequeno-almoço gratuito na manhã seguinte. Tudo novo, espaçoso e limpo. Emprestou as chaves para sairmos e entrarmos à hora que quiséssemos, indicou os restaurantes e caixas multibanco mais próximos. Mostramos a intenção de retomarmos no dia seguinte o percurso no sítio onde terminamos.   Combinaram apanhar-nos às oito e trinta da manhã para nos levarem ao local. Pagamos 25 € por pessoa pela estadia.

Tomei um duche refrescante, pus a máquina a lavar roupa, sentámo-nos nas espreguiçadeiras do jardim conversando com Jéssica. Dissemos que a vimos chegar derreada a Armenteira. Acertamos, é a primeira vez que faz o caminho. Começou em Valença.  

Fomos jantar a um restaurante próximo: la Peneira. Sem ela.

Quando regressamos vimos um peregrino que ainda não conhecíamos, refastelado na espreguiçadeira, fumando um cigarro.

- vocês devem ser os peregrinos portugueses – disse ele.

Samuel. Siciliano, adepto fervoroso do Messina. A trabalhar em Paris na restauração, com muitos colegas Portugueses.  Foi para a torre Eiffel gozar a vitória de Portugal no Euro 2016. Arranha um pouco o Português: “Tenho família em São Paulo."

Veio ter connosco outra peregrina que chegou com Samuel: conhecíamo-la de vista. Afinal, a Grega é uma Italiana que domina o espanhol e fala inglês com sotaque: Emanuela. 

Durante a conversa tratei-a algumas por Ângela. Às tantas, diz-me ela com alguma impaciência:

- tu sempre a tratares-me por Ângela! 

- Desculpa, é porque pareces um anjo. 

- Estás perdoado. 


Virgem Peregrina, Pontevedra

Pontevedra


Pontevedra

Mosteiro do Poio

Poio

Mosteiro do Poio






Combarro



Miradouro do Loureiro



Mosteiro de Armenteira


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