Deixou-se ficar para trás, não conseguia atravessar a ponte
San Pablo. Calcorreou os primeiros metros, mas a irracionalidade das vertigens
foi mais forte, sentiu o tremor lívido
do medo, o pânico invisível que o desequilibrava. Recuou enquanto o grupo se
afastava e tirava fotografias da outra margem do Huécar.
As casas colgadas no cimo da muralha medieval, com suas
varandas suspensas sobre as paredes
abruptas, também o impressionavam. Tudo era
imponente, construído sobre morros altos com propósitos defensivos. Ele era
atreito a medos e fobias, seria incapaz de se pôr numa das varandas como era
apanágio das damas nobres. O encontro
combinado com Soraya sofreria um revés, não entraria no restaurante de uma estrela
Michelin para fazer o jantar à luz das velas, conforme combinado. Não imaginava
quando fez a reserva ao telefone que o restaurante de luxo ficava dentro das
casas colgadas e que de lá teria aquela vista que tanto o assustava. Estava
fora de questão.
Faltavam algumas horas, até lá iludiria o tempo. Não queria dar parte de fraco, cancelaria o jantar e arranjaria
uma desculpa qualquer, uma urgência de
última hora que convenceria Soraya.
Entrou nas muralhas, caminhou até à Plaza Mayor. A catedral gótica estava aberta, pagou 5€, visitou a nave e as capelas laterais, foi aos claustros, em obras com as paredes cobertas de cortinas e andaimes. Feixes de luz dourada atravessavam os desenhos abstratos dos vitrais contemporâneos, criados para transmitir sentimentos de transcendência e leveza, de maior proximidade com o divino. Não lhe interessa a religiosidade, os dogmas e discussões filosóficas estéreis em torno de assuntos subjetivos do domínio da fé. Respeita as obras grandiosas produzidas pelo engenho humano em nome da religião, de qualquer uma, a criatividade e o poder do homem, mesmo não partilhando a mesma crença. Debaixo das colunas e abóbadas ogivais era impossível ficar indiferente. Desceu à sala de ícones, pequenas maravilhas artísticas, luminosas, coloridas, de várias origens, doadas por um cónego local. Ficaria horas a olhar os quadros, os santos em relevo, as procissões coloridas na Rússia. A câmara de videovigilância filmava-o, jamais se atreveria a tocar neles, seria uma profanação. Lembrou-se da cena final do filme "Andrey Rubliev", de Tarkovsky, os ícones mostrados em grandes planos. Fez o mesmo, filmou com o telemóvel num travelling as imagens na parede.
Soraya continuava sem responder aos SMS e WhatsApp que lhe foi enviando com fotografias e mensagens de amor. Ainda não arranjara coragem para lhe dizer que cancelara o jantar, passariam a noite num outro sítio e lhe diria o quanto a amava.