Descobri da pior forma que devo
ter muito cuidado quando me abrigo debaixo das árvores. Certo dia, ao
baixar-me, pousei a mão no poio de um cão, ainda fresco. A revolta imediata que
senti contra os donos! O jardim tinha
sacos e contentores para recolha dos dejetos, mesmo assim continua a haver muitos brutos
incivilizados por aí. A repelência pelo nojo com que ficaram a minha mão e a
manga do meu único casaco, o desconforto e o incómodo que tive! Limpei à erva como
pude. Estava a anoitecer, caminhei algumas
centenas de metros do Passeio Alegre até às rochas na praia da Luz. Arranquei
algas de uma poça, esfreguei nelas a mão e a manga, juntei água do mar e
friccionei com areia. O cheiro teimava em não desaparecer. Aninhei-me debaixo do passadiço de madeira e
ali fiquei até ao amanhecer.
Acordei com os passos acelerados
das pessoas a correr por cima de mim, sobre as vigas. O dia clareava e eu
ficava visível e exposto a quem passava
na praia e no passadiço. Adivinhava-se uma daquelas manhãs de junho, cinzentas
e orvalhadas, em que os banhistas se deitam atrás dos tapa-ventos para se
protegerem do frio. A manga continuava
molhada e o meu corpo tremia. Saí para fora, deambulei para aquecer e fazer horas até abrir
o balneário da praia. Recuei para o
jardim, não queria que vissem as minhas
olheiras da noite mal dormida e sentissem o cheiro. Comi do saco de plástico os
restos que sobravam.
Como sempre, andava sem dinheiro.
Tomei duche de água fria e usei o sabão
de mão colocado no lavatório. Esfreguei bem a manga e o corpo, voltei a colocar o que restava no sítio.
Apesar de viver na rua, descobri estratagemas para me manter distante
e “invisível” da multidão. Sento-me em bancos de jardim, com o ar mais
natural, a ler o jornal - folhetins
gratuitos que recolho nas estações de metro. Mudo de poiso, procuro outros
jardins e assim vou iludindo o tempo e as pessoas. Entro nos centros comerciais
da cidade apenas para me aliviar e saio imediatamente para a rua. Não gosto de
centros comerciais, não tenho dinheiro para gastar, nem de passar o tempo
sentado nos recantos menos iluminados como alguns vagabundos fazem. Entro e
saio. Uma vez, um antigo colega de escola reconheceu-me:
- Não és o João? – Fiquei em
pânico: - não, não sou o João, está a confundir-me com outra pessoa.
- És o João, és. Como é que não
és o João?! É a tua voz, o teu olhar. Estás mais magro. Não te lembras de mim,
o Manel? Jogávamos bilhar no Diu! Como
não te podes lembrar de mim, caraças?
- Não sou o João, já disse. Não
me chateie – respondi com rispidez.
Desviei-me dele e segui apressadamente
para a saída. Começaria a fazer perguntas,
a querer saber porque vivo na rua, provavelmente ofereceria ajuda,
comida ou alguma moedinha, compadecido
de mim. Não quero compaixão, quero que se lixe a compaixão! E que se fodam
todos.
Desço à Ribeira, procuro nos
contentores das ruas das Aldas e dos Mercadores restos comestíveis. Estou à vontade nas ruas esconsas e escuras. Movo-me furtivamente, se ouço passos e vozes
de transeuntes a aproximar disfarço, fecho a tampa, ponho-me direito a olhar
para as janelas, como se estivesse à
espera de alguém. Volto a inclinar-me, a procurar nos sacos atirados para
dentro do contentor. Não imaginam a quantidade de desperdício, de pedaços de
fruta comestível, pacotes com restos de batata frita, bolachas partidas, fiambres,
queijos, pasteis que encontro. Devem ser miúdos mimados, habituados à
abundância, a terem as vontadinhas todas
feitas, que saturam rapidamente do que
pedem insistentemente aos pais, fazem birra porque viram na montra um doce colorido,
provam e deitam foram.
Ainda bem! Assim tenho muito por
onde escolher. Não passo fome, acho até
que como bem e abundantemente, graças ao desperdício. Consigo, pelo
cheiro, distinguir os diferentes tipos de alimento. Abro apenas os sacos
colocados em cima do entulho e sem cheiros desagradáveis. Distingo pelos aromas
pão, frutas, carnes, restos ainda
frescos. Um trabalho de precisão e paciência que me permite viver e ter comida
para o resto da noite e dia seguinte.
Eu, ao contrário dos outros,
aproveito tudo. Meto os restos comestíveis dentro do saco de plástico, que anda sempre comigo, embrulhados no papel
de jornal e vou gerindo a coleta ao longo do dia. Tenho o meu orgulho, não gosto de ser visto
junto dos contentores, por isso só o faço durante a noite. Não procuro as
instituições de solidariedade social, que
distribuem comida pelos sem-abrigo do Porto.
Vivo na rua, mas não me considero
marginal. Tenho a minha dignidade! Ao
contrário dos sem-abrigo, não caí na droga nem no alcoolismo. Não fumo, não
bebo, não roubo, não arrumo automóveis, não contraí dívidas nem sou trabalhador precário que não
consegue pagar a renda exorbitante e a
solução que encontrou foi dormir na rua. Nada disso! Podia ter muito dinheiro,
eu era um miúdo promissor, bom aluno,
filho de boas famílias. Nunca me faltou nada, no entanto levaria uma
vida previsível e aborrecida, teria de
cumprir horários rígidos, de trabalhar. Sou alérgico ao trabalho. O problema
seria passar mais de 40 horas por semana
fechado num escritório, numa fábrica, onde quer que fosse. Considero-me um filósofo errante, um niilista
ultra individualista que vive na rua por opção, um passarinho sem ninho. No fundo, um
espírito-livre. Assumo orgulhosamente todo o desconforto que isso me causa.
Tampouco, durmo em qualquer lado.
Experimentei uma vez o albergue noturno da rua Mártires da Pátria. Fui atendido
por um jovem simpático. Perguntou se
tinha ficha, se estava sinalizado pela câmara, o número da segurança
social, se trabalhava, desde quando vivia na rua, se tinha família, etc. Uma
intromissão inadmissível na minha vida! Menti.
Disse que fui despejado pelo senhorio nesse mesmo dia devido às rendas
em atraso. Fiz o choradinho. A família não queria saber de mim, a ex-mulher
fez queixa por violência doméstica,
perdi a casa, a família e os amigos. Fui abandonado por todos. Senti um prazer
mórbido em inventar uma história dramática, em fazer de mim um desgraçado
coitadinho. Só faltou chorar.
- Tem cartão de cidadão? –
perguntou desconfiado das minhas balelas.
- Esqueci de dizer que também fui
assaltado, estou sem documentos.
- Muito bem, sr. Isidro - também inventei o nome –, vou ligar à polícia a referir que recebemos
uma pessoa sem documentação, desempregada. – Mudei de cor.
- Não
se preocupe, é um procedimento normal. O senhor está numa situação de extrema
vulnerabilidade. Pessoas indocumentadas e sem apoio, completamente à margem da
sociedade, são cada vez mais comuns,
infelizmente. É obrigatório dar conhecimento às autoridades. Assim que efetuarmos
os procedimentos normais arranjarei cama para si e pode ficar até às 8 da
manhã.
Da mesma forma que não suporto
trabalhar, sou igualmente incapaz de cumprir horários. Se tinha de me levantar
cedo então o albergue não era para mim e, além do mais, telefonando à polícia,
corria o risco de descobrirem o meu
logro. Olhei-o nos olhos com a minha cara mais séria e digna, disse-lhe:
- Meu caro senhor, não se
preocupe mais comigo. Não sou um miserável como esses que aqui vem ter, a quem
vocês não dão o direito de dormir o tempo justo. Já não basta a vida difícil
ainda os abrigam a madrugar. Com licença. – Bati a porta e sai para a rua.
Não deixo pilhas de cobertores e
plástico rodeados de pacotes de vinho e roupa suja amontoados nas esquinas, debaixo dos alpendres. Não montei tenda semiescondida num espaço público. Não tenho pertences, apenas a roupa que
anda comigo e o saco de plástico. Sento-me
disfarçadamente nos degraus cobertos. Não
faltam no Porto e arredores sítios abrigados para me sentar durante a noite e dormir
recostado na parede, de boca aberta virada para cima, apesar de serem cada vez
mais os verdadeiros sem-abrigo que os ocupam.
O meu sítio preferido no verão é
a Foz. Fico encostado a um dos metrosideros na avenida Brasil, ao fim da tarde,
na sombra escura, protegido das vistas
indiscretas dos passeantes, até ser noite, a marcar lugar como um cão de guarda.
Afasto os bichos que se aproximam a farejar as árvores, sacudo-os com gestos e
ruídos, não permito que façam à minha volta as suas necessidades. Aprendi a
lição! E quanto a mim, quando o meu corpo dá sinal, vou ao mar aliviar-me, sem
deixar cheiros ou vestígios, ao contrário dos cães.
Quando chove e faz frio deambulo
pelas estações de metro e comboios até
fecharem, depois procuro degraus
escondidos e as primeiras igrejas abertas para as missas. Dormito sentado nos
bancos de trás, como se estivesse a rezar, a cabeça pendente de sono inclinada
para o chão. A essa hora já a cidade acordou e milhares de pessoas caminham na
labuta diária para o trabalho, fechadas nos seus pensamentos e preocupações,
apressadamente. Sigo entre elas como se fosse mais um que saiu do conforto da
sua cama. E assim recomeço cada novo dia.







