quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

O Porto, A Minha Casa

 


Descobri da pior forma que devo ter muito cuidado quando me abrigo debaixo das árvores. Certo dia, ao baixar-me, pousei a mão no poio de um cão, ainda fresco. A revolta imediata que senti contra os donos!  O jardim tinha sacos e contentores para recolha dos dejetos,  mesmo assim continua a haver muitos brutos incivilizados por aí. A repelência pelo nojo com que ficaram a minha mão e a manga do meu único casaco, o desconforto e o incómodo que tive! Limpei à erva como pude.  Estava a anoitecer, caminhei algumas centenas de metros do Passeio Alegre até às rochas na praia da Luz. Arranquei algas de uma poça, esfreguei nelas a mão e a manga, juntei água do mar e friccionei com areia. O cheiro teimava em não desaparecer.  Aninhei-me debaixo do passadiço de madeira e ali fiquei até ao amanhecer.

Acordei com os passos acelerados das pessoas a correr por cima de mim, sobre as vigas. O dia clareava e eu ficava  visível e exposto a quem passava na praia e no passadiço. Adivinhava-se uma daquelas manhãs de junho, cinzentas e orvalhadas, em que os banhistas se deitam atrás dos tapa-ventos para se protegerem do frio.  A manga continuava molhada e o meu corpo tremia. Saí para fora,  deambulei para aquecer e fazer horas até abrir o balneário da praia.  Recuei para o jardim,  não queria que vissem as minhas olheiras da noite mal dormida e sentissem o cheiro. Comi do saco de plástico os restos que sobravam.

Como sempre, andava sem dinheiro. Tomei  duche de água fria e usei o sabão de mão colocado no lavatório.   Esfreguei bem a manga e o corpo,  voltei a colocar o que restava no sítio.

Apesar de viver na rua,  descobri estratagemas para me manter distante e “invisível” da multidão. Sento-me em bancos de jardim, com o ar mais natural,  a ler o jornal - folhetins gratuitos que recolho nas estações de metro. Mudo de poiso, procuro outros jardins e assim vou iludindo o tempo e as pessoas. Entro nos centros comerciais da cidade apenas para me aliviar e saio imediatamente para a rua. Não gosto de centros comerciais, não tenho dinheiro para gastar, nem de passar o tempo sentado nos recantos menos iluminados como alguns vagabundos fazem. Entro e saio. Uma vez,  um antigo colega  de escola reconheceu-me:

- Não és o João? – Fiquei em pânico: - não, não sou o João, está a confundir-me com outra pessoa.

- És o João, és. Como é que não és o João?! É a tua voz, o teu olhar. Estás mais magro. Não te lembras de mim, o Manel?  Jogávamos bilhar no Diu! Como não te podes lembrar de mim, caraças?

- Não sou o João, já disse. Não me chateie – respondi com rispidez.

Desviei-me dele e segui apressadamente para a saída. Começaria a fazer perguntas,  a querer saber porque vivo na rua, provavelmente ofereceria ajuda, comida ou alguma moedinha,  compadecido de mim. Não quero compaixão, quero que se lixe a compaixão! E que se fodam todos.

Desço à Ribeira, procuro nos contentores das ruas das Aldas e dos Mercadores restos comestíveis. Estou  à vontade nas ruas esconsas e escuras.  Movo-me furtivamente, se ouço passos e vozes de transeuntes a aproximar disfarço, fecho a tampa, ponho-me direito a olhar para as janelas,  como se estivesse à espera de alguém. Volto a inclinar-me, a procurar nos sacos atirados para dentro do contentor. Não imaginam a quantidade de desperdício, de pedaços de fruta comestível, pacotes com restos de batata frita, bolachas partidas, fiambres, queijos,  pasteis que encontro.  Devem ser miúdos mimados, habituados à abundância,  a terem as vontadinhas todas feitas, que  saturam rapidamente do que pedem insistentemente aos pais, fazem  birra porque viram na montra um doce colorido, provam   e deitam foram.

Ainda bem! Assim tenho muito por onde escolher. Não passo fome, acho até  que como bem e abundantemente, graças ao desperdício. Consigo, pelo cheiro, distinguir os diferentes tipos de alimento. Abro apenas os sacos colocados em cima do entulho e sem cheiros desagradáveis. Distingo pelos aromas pão,  frutas, carnes, restos ainda frescos. Um trabalho de precisão e paciência que me permite viver e ter comida para o resto da noite e dia seguinte.

Eu, ao contrário dos outros, aproveito tudo. Meto os restos comestíveis dentro do saco de plástico,  que anda sempre comigo, embrulhados no papel de jornal e vou gerindo a coleta ao longo do dia.  Tenho o meu orgulho, não gosto de ser visto junto dos contentores, por isso só o faço durante a noite. Não procuro as instituições de solidariedade social,  que distribuem comida pelos sem-abrigo do Porto.

Vivo na rua, mas não me considero marginal. Tenho a minha dignidade!  Ao contrário dos sem-abrigo, não caí na droga nem no alcoolismo. Não fumo, não bebo, não roubo, não arrumo automóveis, não contraí dívidas  nem sou trabalhador precário que não consegue  pagar a renda exorbitante e a solução que encontrou foi dormir na rua. Nada disso! Podia ter muito dinheiro, eu era um miúdo promissor, bom aluno,  filho de boas famílias. Nunca me faltou nada, no entanto levaria uma vida previsível e  aborrecida, teria de cumprir horários rígidos, de trabalhar. Sou alérgico ao trabalho. O problema seria passar  mais de 40 horas por semana fechado num escritório, numa fábrica, onde quer que fosse.   Considero-me um filósofo errante, um niilista ultra individualista que vive na rua por opção,   um passarinho sem ninho. No fundo, um espírito-livre. Assumo orgulhosamente todo o desconforto que isso me causa.    

Tampouco, durmo em qualquer lado. Experimentei uma vez o albergue noturno da rua Mártires da Pátria. Fui atendido por um jovem simpático. Perguntou se  tinha ficha, se estava sinalizado pela câmara, o número da segurança social, se trabalhava, desde quando vivia na rua, se tinha família, etc. Uma intromissão inadmissível na minha vida! Menti.  Disse que fui despejado pelo senhorio nesse mesmo dia devido às rendas em atraso.  Fiz o choradinho.  A família não queria saber de mim, a ex-mulher fez queixa  por violência doméstica, perdi a casa, a família e os amigos. Fui abandonado por todos. Senti um prazer mórbido em inventar uma história dramática, em fazer de mim um desgraçado coitadinho. Só faltou chorar.

- Tem cartão de cidadão? – perguntou desconfiado das minhas balelas.

- Esqueci de dizer que também fui assaltado, estou sem documentos.

 - Muito bem, sr. Isidro -  também inventei o nome –,  vou ligar à polícia a referir que recebemos uma pessoa sem documentação, desempregada. – Mudei de cor.

 -  Não se preocupe, é um procedimento normal. O senhor está numa situação de extrema vulnerabilidade. Pessoas indocumentadas e sem apoio, completamente à margem da sociedade,   são cada vez mais comuns, infelizmente. É obrigatório dar conhecimento às autoridades. Assim que efetuarmos os procedimentos normais arranjarei cama para si e pode ficar até às 8 da manhã.

Da mesma forma que não suporto trabalhar, sou igualmente incapaz de cumprir horários. Se tinha de me levantar cedo então o albergue não era para mim e, além do mais, telefonando à polícia, corria o risco de  descobrirem o meu logro. Olhei-o nos olhos com a minha cara mais séria e digna, disse-lhe:

- Meu caro senhor, não se preocupe mais comigo. Não sou um miserável como esses que aqui vem ter, a quem vocês não dão o direito de dormir o tempo justo. Já não basta a vida difícil ainda os abrigam a madrugar. Com licença. – Bati a porta e sai para a rua.

Não deixo pilhas de cobertores e plástico rodeados de pacotes de vinho e roupa suja amontoados nas esquinas,  debaixo dos alpendres. Não montei  tenda semiescondida num espaço público.  Não tenho pertences, apenas a roupa que anda comigo e o saco de plástico.  Sento-me disfarçadamente nos degraus  cobertos. Não faltam no Porto e arredores sítios abrigados  para me sentar durante a noite e dormir recostado na parede, de boca aberta virada para cima, apesar de serem cada vez mais os verdadeiros sem-abrigo que os ocupam.

O meu sítio preferido no verão é a Foz. Fico encostado a um dos metrosideros na avenida Brasil, ao fim da tarde, na sombra escura,  protegido das vistas indiscretas dos passeantes, até ser noite, a marcar lugar como um cão de guarda. Afasto os bichos que se aproximam a farejar as árvores, sacudo-os com gestos e ruídos, não permito que façam à minha volta as suas necessidades. Aprendi a lição! E quanto a mim, quando o meu corpo dá sinal,  vou ao mar aliviar-me,   sem deixar cheiros ou vestígios, ao contrário dos cães.  

Quando chove e faz frio deambulo pelas  estações de metro e comboios até fecharem, depois procuro  degraus escondidos e as primeiras igrejas abertas para as missas. Dormito sentado nos bancos de trás, como se estivesse a rezar, a cabeça pendente de sono inclinada para o chão. A essa hora já a cidade acordou e milhares de pessoas caminham na labuta diária para o trabalho, fechadas nos seus pensamentos e preocupações, apressadamente. Sigo entre elas como se fosse mais um que saiu do conforto da sua cama. E assim recomeço cada novo dia.