O manto branco de neve cobre
os extensos pinhais bravos da serra. A estrada serpenteia ao longo da natureza incólume e selvagem. O
Tejo, minúsculo fio de água, desponta da nascente, corre estreito
entre a erva hirta e as agulhas de gelo. O exterminador vai de camioneta a
Albarracín, camuflado de turista, na companhia dos humanos fascinados com a alvura da neve. Autêntico Blade Runner, só reconhecido por outros como ele.
O guia, Ignácio, cristão
descendente dos Aragoneses que reconquistaram o reino, orienta o grupo. Hoje, realizam
o trilho das Pasarelas do Barranco de la Hoz. Partem de Calomarde a pé. A neve
resplandece sob o manto de sol que raia das nuvens. As chuvas intensas
alagaram o trilho. Os humanos descalçam as botas de caminhada, molham os pés na
água gelada, calcam lama e saibro cortante. O exterminador é uma máquina insensível. Inveja-os por sentirem dor, água a escorrer no corpo, frio e calor.
Chegam a um local ermo sobre
falésias perigosas, o humano Pedro sente vertigens, acocora-se na rocha a aguardar
o regresso dos restantes colegas. Enquanto isso, filma ao longe os barrancos
íngremes que o assustam, frui o silêncio. Mais tarde, quando fica com rede,
posta vídeos e comentários no Facebook.
O exterminador acha estúpido filmar, comentar e divulgar tudo para os
amigos verem e fazer likes. Até os momentos mais recatados e únicos são
filmados!
Se fosse humano não passaria o
tempo a utilizar gadgets, apreciaria os sentidos oferecidos pelo corpo, cometeria erros
propositadamente e riria deles. Como máquina está condenado a funcionar
ininterruptamente, milimetricamente, previsivelmente funcional e certeiro até ao longínquo dia em que avariar de vez.
Ignácio leva o grupo a Albarracín, local onde o exterminador havia encontrado nas suas viagens no tempo o mouro Ibn Al Razim. Lembra-se da sua gentileza e coragem, assim como a das suas gentes. Congratula-se que a memória do amigo tenha perdurado no nome da serra e da vila encantada. Albarracín, a vila vermelha, continua altiva e impressionante, igual a si própria, como se o tempo não tivesse passado. Nas suas ruas estreitas parecem ecoar ainda as vozes dos alfagemes que poliam espadas, as dos almocreves e vendedores que chegavam à fortaleza de todos os cantos do emirado de Córdoba. Os humanos deambulam nas ruelas, tiram fotografias teimosamente em todo o lado de todos os ângulos possíveis e imaginários, ele não sabe se olham mais para o telemóvel ou se para o ambiente medieval que os rodeia, tingido de muralhas, telhados e paredes ocres.
Chegam a Teruel ao fim da tarde, fazem o check in no hotel. Passeiam antes do jantar, apreciam a arte mudéjar das torres e palácios da cidade, as misturas de estilo islâmico, cristão e judaico, reunidas nessa arte única, só existente na península Ibérica. O Exterminador sabe tudo, basta recorrer à inteligência artificial com a qual foi programado que obtém toda a informação, sintetizando em poucos segundos os dados de milhares de documentos digitalizados nas redes. Cativam-no as emoções humanas, imiscuir-se nelas, mais interessantes e imprevisíveis do que toda a informação compilada até hoje.
Inventa o nome Joaquim e a profissão de professor para conversar com a mulher ao seu lado. Falam de escola como os professores fazem sempre que estão juntos. Sai-se bem, ela jamais descobriria que o senhor tão simpático, aparentando longa experiência e profissionalismo, não passa de uma máquina.
Quatro amigas pré-reformadas jantam na mesa, à parte. Andam sempre juntas e perdem-se do grupo frequentemente. Levam os telemóveis e o stick na mão, tiram muitas selfies, sorriem várias vezes para a fotografia, observam uma por uma as imagens, eliminam aquelas em que estão mais "feias" até chegar a acordo, selecionando as melhores. Ignácio mantém o ar digno aturando os seus comentários que o culpam de as deixar sistematicamente para trás.
Os casais recatados de meia idade soltam a língua depois dos primeiros copos. Ficam bem dispostos e extrovertidos, descobrem parentescos, amigos comuns: por um triz não se cruzaram no último verão com fulano e sicrano na grande muralha da China! Como os humanos variam de humor depois de um jantar opíparo! Ao início tão formais, tornam-se efusivos, parecem amigos de longa data ao fim de poucas horas.
Trilho da Pasarela do Barranco de La Hoz
Teruel
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