domingo, 23 de março de 2025

Cuenca

 


Deixou-se ficar para trás, não conseguia atravessar a ponte San Pablo. Calcorreou os primeiros metros, mas a irracionalidade das vertigens foi  mais forte, sentiu o tremor lívido do medo, o pânico invisível que o desequilibrava. Recuou enquanto o grupo se afastava e tirava fotografias da outra margem do Huécar.  

As casas colgadas no cimo da muralha medieval, com suas varandas suspensas sobre  as paredes abruptas, também o impressionavam.  Tudo era imponente, construído sobre morros altos com propósitos defensivos. Ele era atreito a medos e fobias, seria incapaz de se pôr numa das varandas como era apanágio das damas nobres.  O encontro combinado com Soraya sofreria um revés,  não entraria no restaurante de uma estrela Michelin para fazer o jantar à luz das velas, conforme combinado. Não imaginava quando fez a reserva ao telefone que o restaurante de luxo ficava dentro das casas colgadas e que de lá teria aquela vista que tanto o assustava. Estava fora de questão.

Faltavam algumas horas, até lá iludiria o tempo. Não queria dar parte de fraco, cancelaria o jantar e arranjaria uma desculpa qualquer,  uma urgência de última hora que convenceria Soraya.

Entrou nas muralhas, caminhou até à Plaza Mayor. A catedral gótica estava aberta, pagou 5€, visitou a nave e as capelas laterais, foi aos claustros, em obras com as paredes cobertas de cortinas e andaimes. Feixes de luz dourada atravessavam os desenhos abstratos dos vitrais contemporâneos, criados para transmitir  sentimentos de transcendência e leveza, de maior proximidade com o divino. Não lhe interessa a religiosidade, os dogmas e discussões filosóficas estéreis em torno de assuntos  subjetivos do domínio da fé. Respeita as obras grandiosas produzidas pelo engenho humano em nome da religião, de qualquer uma,  a criatividade e o poder do homem, mesmo não partilhando a mesma crença. Debaixo das colunas e abóbadas ogivais era impossível ficar indiferente. Desceu à  sala de ícones, pequenas maravilhas artísticas, luminosas, coloridas, de várias origens, doadas  por um cónego local. Ficaria horas a olhar os quadros, os santos em relevo, as procissões coloridas na Rússia. A câmara de videovigilância filmava-o, jamais se atreveria a tocar neles, seria uma profanação.   Lembrou-se da cena final do  filme "Andrey Rubliev", de Tarkovsky, os ícones mostrados em grandes planos. Fez o mesmo, filmou com o telemóvel num travelling as imagens na parede.

Soraya continuava sem responder aos SMS e WhatsApp  que lhe foi enviando com  fotografias  e mensagens de amor. Ainda não arranjara coragem para lhe dizer que cancelara o jantar, passariam a noite num outro sítio e lhe diria o quanto a amava.





















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