Os meus bisavós emigraram do
Oklahoma para a Califórnia em 1933. As terras deixaram de ser produtivas e os
rendeiros não podiam pagar as rendas. A agricultura mecanizou-se, os tratores substituíram
os homens. Milhares de famílias abandonaram as quintas rumo ao Oeste, à terra prometida da
Califórnia.
Viajaram num camião carregado dos
víveres mais essenciais - a minha avó, grávida do meu pai, os seus pais e irmãos. Contaram-me histórias épicas dessa viagem extenuante e acidentada, que ninguém queria fazer. Foram forçados a encetar o exilio
dentro do próprio país, como párias
malditos e peçonhentos. A Califórnia não
foi a terra que almejavam. Foram maltratados e violentados, expulsos das bermas
das estradas nos acampamentos temporários, que faziam junto de ribeiros, em
tendas improvisadas com restos de cartões que encontravam nas lixeiras próximas,
e com as lonas que também cobriam os camiões nas longas viagens pelos
desertos e planícies áridas do Arizona e do Novo México. A Califórnia só lhes ofereceu ira e revolta, os empregos prometidos foram um
engodo para milhares de deslocados – um estratagema para escravizar e pagar
ninharias a famílias inteiras: quanto maior a procura de emprego mais os patrões podiam
chantagear os trabalhadores e baixar os
salários. Milhares de hectares foram
intencionalmente mantidos improdutivos para criar escassez de cultivo e
pouca necessidade de mão-de-obra. Tempos miseráveis que a minha avó, Rosa De
Sharn, contava quando eu era criança.
Veio a segunda guerra mundial, os
Estados Unidos concentraram-se na industrialização e no fabrico de equipamento
militar. Os meus avós arranjaram um emprego estável e depois, com a vitória,
deu-se o baby boom. A geração do meu pai foi a dos baby boomers, do
crescimento económico, do pleno emprego e do consumismo que tornou a América
famosa. Cresci numa bela vivenda ajardinada,
nos arredores de Sacramento. Conheço, no entanto, o historial da minha família, os
sacrifícios que os meus antepassados fizeram para fugir da miséria.
Deixei de reconhecer a América,
tornou-se mais violenta e racista, e não
gosto de Trump. As minhas amigas falaram-me de Portugal, apresentaram-me o país
como uma espécie de Califórnia em miniatura: com bom tempo, praias, surf,
tranquilidade – que deixei de ter na américa – e benefícios fiscais para
estrangeiros. Depois de pesquisas aturadas na internet e de muitas conversas e
trocas de emails com compatriotas e viver em Portugal, decidi mudar-me com a
minha companheira.
Cheguei há um ano, gosto de estabelecer um paralelismo pessoal entre a história dos meus bisavós e a minha, realçando o contraste de vidas e oportunidades tão diferentes.
Eu, contrariamente aos meus antepassados, pertenço ao grupo dos privilegiados – é o Karma, que pôs em equilíbrio as nossas vidas, contrabalançando o seu passado de sofrimento com o meu presente exultante e cheio de alegria. Os meus bisavós foram vítimas da mecanização da agricultura — tornaram-se excedentários, ficaram à mercê dos bancos, endividaram-se e perderam as terras que cultivaram durante gerações. Na Califórnia, continuaram sem condições para ter uma vida digna: viveram em acampamentos temporários, as Hoovervilles, sempre à procura de trabalho para alimentar as muitas bocas que tinham a cargo, humilhados pelas autoridades locais e pejorativamente chamados de Okies pelos californianos, por virem do Oklahoma.
Da mesma forma que na Califórnia se criou a escassez agrícola de forma intencional, através do açambarcamento de milhares de hectares por uma minoria de grandes proprietários, em Portugal criou-se a falta de habitação através do açambarcamento de quarteirões inteiros por grupos económicos e fundos de investimento destinados a hotéis, alojamentos locais e arrendamento de luxo.
Vê-se muita construção, mas pouca gente a viver nela. Sou, neste aspeto, uma felizarda: eu e a minha companheira, além dos benefícios fiscais, conseguimos comprar alguns apartamentos e viver das rendas.
Pelo que li e observo, do pouco que ainda conheço deste país, que me recebeu de braços abertos, em Portugal não há escassez de mão-de-obra — pelo contrário, diria até que faltam emigrantes em muitos setores.
Temos um exemplo em nossa casa: a empregada doméstica, Petra Von Kant, é filipina. Não conseguimos arranjar uma portuguesa. Disseram-nos que em Lisboa seria mais fácil, mas em Amarante só conseguimos a Petra por intermédio de uma amiga com contatos de trabalhadoras filipinas.
Vivemos em Amarante. Adoro a
brejeirice da doçaria local!
Estes Portugueses são levados da breca! Não
é que subverteram completamente a seriedade e o rigor religioso que se deve a um homem santo, muito acarinhado aqui na terra, e inventaram um doce de forma fálica, dando-lhe o nome
da sua parte íntima: Caralhinho de São
Gonçalo?
Muito poderia dizer de Amarante, deixo
algumas fotografias para as minhas amigas na América se roerem de inveja.
Esqueci-me de dizer que me chamo
Joana, Joana Joad, em homenagem ao meu bisavô Tom Joad, que foi do Oklahoma
para a Califórnia. A minha companheira chama-se Marlene e adotamos a Petra, não só como empregada doméstica, mas também
como nossa companheira. Somos muitos felizes as três! A Petra adaptou-se bem e
aceitou as nossas condições, de corpo e alma. Os nossos papeis invertem-se
frequentemente; nós, as patroas, gostamos
de fazer de empregadas e de ser subjugadas e humilhadas pela Petra, mas isso
é outra história que não contarei aqui na internet.