sábado, 27 de setembro de 2025

Quintandona

 

Miradouro do Alto da Pegadinha

Cheguei a Quintandona com o livro de Sebastião Salgado na bolsa, não sei porquê. Ia preparada para a caminhada circular de 10 km que começa na aldeia. No entanto, chovia e o tempo estava sombrio. Decidi deambular por ali,  onde estava pela primeira vez.

Entrei sem ver ninguém. As ruas estreitas sossegadas, ladeadas por casas de xisto, de muros altos, recentemente restauradas. Algumas com letreiros nas lajes, de restaurantes e tascas fechadas. A aldeia parecia viver a ressaca do fim de semana anterior,  em que milhares de pessoas a visitaram para o festival do Caldo de Quintandona.  Os únicos locais abertos, e com pessoas, eram o posto de turismo e a tasca do Aguieiro.

No posto de turismo, deram-me informações sobre o trilho e o baloiço no alto da Pegadinha. Comprei às senhoras que lá estavam maracujás e uma fatia de bolo caseiro. Desci à tasca, comi rissóis e pataniscas,  bebi um vinho branco maduro que a dona retirou do garrafão de 5 litros para o copo de barro vermelho – tudo produtos locais, confecionados pelas senhoras da aldeia:  exceto o vinho, obviamente;  mas que também devia ser da região.

Sentei-me no baloiço da tasca e abri o livro do Sebastião Salgado. Vi algumas imagens,  li algumas das suas reflexões. Não fazia sentido estar ali sentada, sem conhecer as pessoas e a aldeia, com um livro biográfico de um fotógrafo brasileiro. Enfastiei-me com a leitura, fechei o livro. Talvez fosse mais apropriado ler Camilo Castelo Branco: o casario e o ambiente local estariam mais próximos da realidade descrita pelo autor português.

Dois homens encostaram-se ao balcão, a beber vinho e a comer bifanas – achei aquilo mais português, mais Camiliano. Observei discretamente, fiz de conta que continuava a ler. Um deles foi ao carro buscar qualquer coisa, ligou o autorrádio no volume máximo. Ouvi marteladas de música pimba a sair estridentes do interior. Desligou  e regressou ao balcão para continuar a beber com o parceiro. Deu-me a impressão de que conheciam a mulher que os servia e que deviam ser clientes habituais.

Julgo que estariam intrigados comigo: o que faria ali uma mulher sozinha a ler um livro, sentada no baloiço? Talvez a ida ao carro, que estava próximo,  fosse apenas uma desculpa para me observar melhor.   

Afastei-me. Fui a pé ao Alto da Pegadinha. No posto de turismo disseram-me que demoraria 50 minutos, passando no centro da freguesia de Lagares, pela estrada nacional. Um carro abrandou ao meu lado, o vidro abriu – vinham lá dentro os dois homens da tasca – o  passageiro perguntou:

- A menina anda perdida?

Fiz de conta que não ouvi. Olhei discretamente para os lados em autodefesa, havia casas, pessoas, carros a passar. Gritaria e enfiar-me-ia pelo quintal ao lado, se necessário.

- A menina não se preocupe, vimo-la na tasca do Aguieiro sentada no baloiço, lembra-se? Eramos nós que lá estávamos. Somos gente hospitaleira e como anda por aqui sozinha só queremos ajudar – disse ele.

Talvez fossem sinceras as palavras. Dei uma resposta diplomática que, ao mesmo tempo, os despacharia e mostraria que não estava tão vulnerável como aparentava.

- Muito obrigado, meus senhores. O meu marido vem ao meu encontro desde Lagares, deve estar a chegar no carro para me apanhar.  

- Esteja à vontade, vá com cuidado pela estrada - aceleraram, afastaram-se pela encosta acima.

O que havia de dizer? quando uma mulher anda sozinha desculpa-se sempre com o marido que está a chegar. Não é original, mas foi o que me lembrei no momento.

No caminho de terra e alcatrão esburacado para o Alto da Pegadinha,  motards faziam piruetas com as motos, levantavam uma poeira enorme no ar. Subi ao miradouro. O tempo estava sombrio, a ameaçar chuva. Nuvens carregadas pairavam cada vez mais próximas, trazidas pelo vento: resquícios do furacão Gabrielle a fazerem-se sentir no continente.

Estava completamente sozinha, os motards lá em baixo, distantes, a afinar as motos. Abri os braços ao vento e gritei:

- My name is Joana. I am the queen of the world – as  minhas palavras ecoaram nas encostas das colinas circundantes.

Abriguei-me na rocha, voltei a abrir o livro de Sebastião Salgado: Da Minha Terra à Terra. Reli  a epígrafe na  dedicatória que a  minha amiga Maria Madalena escreveu quando  o  ofereceu:  

O fascismo é a redução do pensamento, é obrigar as pessoas a pensarem da mesma forma. Não gosta do contraditório, de zonas cinzentas e da complexidade. Não aceita discursos racionais e ponderados.