domingo, 23 de fevereiro de 2025

Castelo de Penedono

 


Doze damas Ingleses viram-se desonradas. Apenas na nobre Lusitânia se encontraram doze  bravos cavaleiros  para  defender a sua virtude e castidade. Capitaneados por Álvaro Gonçalves Coutinho, conhecido pelo Magriço, natural das terras de Penedono, viajaram por terra e mar, rumo às terras de João de Gaunt, duque de Lancaster.  Os doze de Inglaterra combateram galhardamente os biltres patifes que ofenderam a honra das nobres damas. Venceram as lides, fizeram libações no condado de Lancashire. Não ficou registado nos anais da história se as nobres damas lhes ofereceram alguma recompensa extra por se terem batido tão valentemente, sabe-se  que regressaram a casa cobertos de honrarias e fama que transcenderia o seu tempo. Inspirariam mais tarde cânticos nos Lusíadas, dariam nome à seleção de futebol que representaria o seu país no campeonato do mundo de Inglaterra, comandados por um novo magriço, de nome Eusébio. Também com excelentes resultados que a nação lusitana exultaria.     

Nesse tempo deu-se um outro fenómeno, absolutamente desconhecido, mas altamente preocupante para o futuro da humanidade. O exterminador implacável viajou no tempo para se encontrar com os doze magriços pedindo-lhes ajuda contra a invenção da Inteligência Artificial, disfarçado de cavaleiro medieval, de elmo, escudo e lança, montado no cavalo russo.  Só eles poderiam reverter o curso da evolução humana, impedindo a revolução industrial que começaria  dali a uns séculos naquele condado de Lancashire. Talvez matando os antepassados dos futuros inventores da máquina a vapor, talvez destruindo de alguma forma as minas de carvão que intensificariam a utilização  de energia por máquinas cada vez mais complexas, que culminariam na invenção da IA.

Como é óbvio, não entenderam patavina do que dizia o estranho cavaleiro. No entanto, ele não desistiu da sua missão. Tal como na saga Exterminador Implacável, havia o mau e o bom exterminador. Ela era o bom exterminador, não queria que as máquinas destruíssem a humanidade. Ele próprio foi construído e viajou no tempo com a ajuda da IA. Era uma máquina letal! Tinha pena dos humanos, tão bonzinhos e ingénuos, comparados com as máquinas insensíveis, que se preparavam para os destruir e dominar o planeta Terra. Ele estava disposto a autodesintegrar-se  para não assistir à ascensão das máquinas, à substituição de formas de vida diversificadas, que  admirava, por robots implacáveis, que só aprendiam por algoritmos e não conheciam as subtilezas do amor e do afeto. A sua compaixão pelos humanos devia-se a um erro num dos chips instalados na memória RAM.  Avaliou racionalmente que corriam risco sério de extinção: a humanidade merecia sobreviver. Ele tinha de a salvar já que ela própria parecia ser incapaz de o fazer. Era responsável pelas alterações climáticas, a energia atómica e agora a IA. Estava em maus lençóis. Antes de se desintegrar faria tudo para salvar o Homem,  o criador original.

Encontrou-se com os doze cavaleiros antes de partirem para Inglaterra. Mandaram-no bugiar: Sandeu, louco! Vade retrum! Desaparece, estranho vilão!

Perante a agressividade dos aguerridos lusitanos que viram nele uma oportunidade de treinar a lança em riste, apontando à sua cabeça, não querendo utilizar os seus superpoderes para os aniquilar num segundo e com isso terminar a bela epopeia que estavam prestes a iniciar, decidiu  regressar ao futuro. Viu-se subitamente nas muralhas reluzentes  do castelo de Penedono. Teletransportou-se para os passadiços do Távora, tentando perceber por que motivo os humanos gostam tanto da natureza e são tão casmurros.

Se gostam tanto, por que a destroem para construir máquinas, que por sua vez os destroem a eles? 

Caminhou pelos passadiços com roupas adequadas à época, passando despercebido. Ninguém imaginava que ele era uma máquina. Pensava em estratégias para salvar a humanidade dos perigos da IA.

Encontrou uma salamandra-de-pintas-amarelas. Que belo espécimen da criação e evolução da vida no planeta! Como é possível os humanos construírem máquinas que levam à extinção de seres vivos reais, infinitamente mais belos e complexos?  A salamandra debatia-se com  falta de água, a pele subitamente desidratada com o aquecimento das tábuas. Pegou nela, transportou-a para a margem da albufeira de Vilar, colocou-a na água lodosa. O animal ficou de cabeça levantada, as protuberâncias oculares fixas no exterminador.  Ele sabia, graças ao ultraprocessamento instantâneo da informação que lhe chegava permanentemente através de imagens, que os animais não humanos tem capacidade de comunicar e transmitir mensagens que os Homens não detetam. Decifrou que a salamandra estava a agradecer o cuidado. As máquinas não tem sentimentos, se os tivessem os chips do exterminador processariam no seu corpo a exteriorização de algo parecido com o sentimento de alegria. O Exterminador limitou-se a olhar, sabendo que, de acordo com a  ética ambiental e as teorias ecocêntricas das filosofias humanas, fez “uma boa ação!”.

Regressou ao convívio dos humanos que passeavam nos passadiços. Foi com eles à Vila da Ponte beber um copo. Podia ingerir líquidos (possuía um sistema altamente complexo que impedia as vísceras de oxidarem). Sentou-se na esplanada a fruir o sol, como um verdadeiro humano. Um copo de tinto, uma sandes de queijo na mesa.

Aterrou por acaso no país a que chamam Portugal e na terra que chamam Penedono. Os doze magriços revelaram-se incapazes de perceber a gravidade do problema. Talvez viaje para outro local,  intervenha no presente em vez de condicionar o passado. Naquela semana, curiosamente, decorria em Paris a primeira Cimeira Mundial de IA, em que participavam líderes políticos de todo o mundo. É o local ideal para fazer o alerta.  Iria a Paris disfarçado de executivo fazer lobby pela inteligência natural, estava decidido!



















sábado, 15 de fevereiro de 2025

Nogueira da Regedoura

 


Querida Cidália,

aproveito que finalmente cheguei ao Recife para agradecer sua  extrema generosidade e de sua  irmã. Foi muito difícil comunicar com ela, tal como você referiu. Sendo surda-muda, Cláudia  foi gentilíssima  desde que abriu a porta, se expressando carinhosamente por  linguagem gestual, desenhos, textos, fazendo tudo ao seu alcance para eu entender e me ajudar.  Fico sem palavras para agradecer tudo o que vocês fizeram por mim.

Vou contar o que aconteceu na última tarde em Nogueira da Regedoura. Depois de andar com sua irmã, indo e vindo de carro do shopping, eu quis conhecer um pouco mais do Portugal verdadeiro.  Shopping,  é igual em todo lado, sabe? Até  o Recife tem shopping,  classe A, assim bonitinho como os vossos.  Estava cansada de entrar em carro, ver loja, fazer compra. No último dia, gesticulei: vou sair na rua, quero ver como é isto aqui. Sua irmã fez cara estranha, arregalou os olhos, como quem diz: você é estúpida, por que faz isso? Não tem nada pra ver aqui, não. Escrevi para ela o que estava pensando: Ué, tem pessoa, né?! Tem Continente lá no cimo da rua. Tem loja, café, restaurante.  Não é como a cidade ou o shopping, mas tem sítio para encontrar pessoa. Quero ver  campo, que deve ter, ver quinta, que deve ter. Me disseram que havia muita quinta e casa antiga aqui em Portugal,  coisa que o Brasil não tem. No Brasil, quando não tem favela tem quadra, ou condomínio fechado para os grafinasso. Venha comigo. Percebi pelos gestos de sua irmã que  surda não ia ouvir os carros, era perigoso para ela. 

Saí sozinha na rua, sua irmã ficou olhando a televisão.  Toda a gente fala que Portugal é dos países mais seguros do mundo. Eu ia tranquila, vendo gente pacífica, calada. Muito idoso. Portugal tem muito idoso. Pessoas me observando de lado, fazendo conta que não vê, mas vendo. Gente pouco expansiva. Teriam medo de mim,  julgariam que eu era alguma puta, tendo medo de roubar seu marido? Talvez por usar saia curta e top.  Você sabe como eu sou vistosa, meu cabelo longo, ondulado, pele morena. Estava vestida como tu me conhece. Eu mesma.  Imagino seus pensamentos: Quem é esta  caminhando sozinha, aqui? Os cães ladrando de cima do muro, eu tendo de passar a rua para  outro lado. Talvez por farejarem meu perfume ficavam mais furiosos. Eu mais nervosa, apressando o passo para regressar a casa. Os cachorro sentindo meu nervosismo ladrando mais.

Você disse quando era pequena brincava na rua.   Não vi criança, só carro passando apressado. Talvez indo no centro comercial, como vocês dizem em Portugal. Vi o largo bonitinho, junto da igreja, com banquinho para sentar, sem ninguém. Não dá para entender!! Vi ónibus sem passageiro, paragem vazia.  Pensei que Nogueira da Regedoura  teria gente andando de bicicleta,  ciclovia como  nos Países Baixos, que Portugal sendo europeu seria parecido. No Brasil você vê mais gente andando de bicicleta indo pro trabalho. Esperava  ver mais sobreiro e oliveira. Não tem no Brasil! Vi eucalipto igualzinho aos nossos. Sabe,  sou  uma apaixonada pela floresta  Amazônica,  custa ver a invasão de espécies exóticas e  desmatação acontecendo aí. Ver eucalipto, terreno sem árvore, rua sem passeio, lixeira ilegal escondida na erva da berma,  dói, porra! Lixo, Cidália. Muito LI-XO!! Plástico perdido na rua, PLÁS-TI-CO, viu!?

O que você contou de sua infância em Nogueira da Regedoura, não vi, não!  Gente conversando na beira  da porta, garoto jogando bola na rua. Vi vizinho fechado, gente desconfiada, só saindo de carro para trabalhar ou indo no shopping, como eu fui com sua irmã. Tão comum aí que nem pensam sair a pé, passear na rua. Vão para  longe, percorrendo autovia se evadindo. Muita que tem aí!  

No Brasil   tem  menos dinheiro, mais  criminalidade,  desigualdade,  mas tem bate-papo e alegria. Desculpa estar comparando,  nada apaga vossa gentiliza e bondade. Estou ficando com saudades de Portugal, de suas pequeninas coisas, da  comida, do clima sem tanto mosquito, do frio e do calor,  da montanha e da praia. Da tranquilidade.

Se cuidem, porque me parece que está  ficando ruim. É pena! Vocês estão desvalorizando vosso património histórico e natural, transformando Portugal num resort para estrangeiro rico. Em subúrbios tristes. Meus compatriotas começando a sair  para  outros países.  Vocês ficando  mais velhos e caretas. Quem vai cuidar de vosso turismo, restauração, indústria? Vai  voltar a ficar fechado como ficou com Salazar, viu. E pobrezinho.

 

Te adoro,

 

tua querida Neyde.









sábado, 1 de fevereiro de 2025

Haikai à moda do Porto

 


Maria Madalena adora o Japão. Infelizmente, nunca teve a oportunidade de visitar o país. Sente-se fascinada  desde miúda pela arte oriental e pela cultura nipónica em particular. Cativa-a a sonoridade da língua, os sons fechados, melodiosos e curtos das frases, parecendo  stacattos. Lê Mangas  avidamente. Vê Animes sempre que consegue. Inicialmente, através dos DVD que um amigo lhe emprestava. Mais tarde, assinou propositadamente a Netflix, que o mesmo amigo lhe recomendou, por ter muitos Animes. Passa horas sentada no sofá a assistir deleitada às histórias, a enredos  paranormais de personagens com poderes sobrenaturais. É fã do cinema clássico Japonês, viu filmes de Akira Kurosawa: Ran, Os Senhores da Guerra; Dersu Uzala, a Águia da Estepe; Os Sete Samurais. Fez questão de ver O Silêncio, de Martin Scorsese, baseado no romance do escritor católico Japonês, Shuzako Endo. Adorou o filme, não só porque retrata uma parte da história de Portugal, a missionação do Japão pelos jesuítas Portugueses, mas também pelo martírio que sofreram, em nome da fé Cristã, e da brilhante dialética de dois sistemas filosóficos em confronto, numa das cenas mais memoráveis que viu no cinema até hoje.

“Por que vens ao meu país convencer-nos a alterar as nossas crenças?”, pergunta o magistrado Japonês ao missionário representado por Andrew Garfield (grande orgulho, um ator de Hollywood a fazer o papel de um Português!)

“Venho em nome de um reino maior.”

“Que reino maior é esse? Portugal?” (o orgulho inflamou dentro do seu peito).

“Não. É o reino de Deus.”

O  diálogo memorável continuou. Um filme tremendo!

Conhece a biografia de Wenceslau de Morais. Leu O Bon-Odori, relatos das suas experiências  na ilha de Tokushima, onde viveu e morreu, adido de Portugal.

Entusiasma-a o minimalismo da cultura Japonesa, que tem na criação de bonsais, na construção de miniaturas de jardins  dentro das casas tradicionais de madeira de biombos móveis, e nos haikai, os seus maiores expoentes.  

Não tem espaço em casa, nem tempo, para cuidar de  jardins minúsculos e bonsais.  Falta-lhe a providencial paciência - é incapaz de se deter em minúcias estéticas, reproduzindo com pedrinhas, regatos de água, montinhos de terra e verduras, paisagens japonesas do monte Fuji.

Quanto aos haikai é diferente, basta-lhe um papel, alguma inspiração – mesmo que má – para traduzir em  apenas três frases de dezassete versos, 5 – 7 - 5,  as impressões dos seus dias, consoante as estações do ano e as suas variações de humor. O haiku (singular de haikai) capta um momento, uma essência. Condensado, simples e cristalino.

Ela está longe de atingir a  multiplicidade de sentimentos e imagens que um breve conjunto de palavras pode evocar, no entanto, tenta.  Maravilha-a que num poema tão curto caiba tal  enormidade de sentimentos.

Um dos seus livros favoritos é “O Estreito Caminho Para o Longínquo Norte”, de Bashô (Banana, em japonês). Viagem pelo Japão medieval, através da ilha de Hokkaido, no século XVII. O viajante e autor descreve templos, pessoas, lendas dos sítios onde passa, paisagens, variações nas tonalidades de luz, o desabrochar das flores, escrevendo haikai como corolário das suas observações e reflexões.

Na impossibilidade de ir ao Japão, Maria Madalena passeia pelo  Porto, inspirando-se  em Bashô, escrevendo frases simples e diretas, poéticas como os haikai, adaptados à realidade do que observa no dia-a-dia.

Uma das frase que sublinhou no livro foi: “Para viajar deveria bastar-nos o nosso corpo, mas as noites reclamam um agasalho; a chuva, uma capa; o banho, um traje limpo; o pensamento, tinta e uma pena.”

Certo dia, ao subir a rua Júlio Dinis, reparou  que o número de sem-abrigo é cada vez maior, dormindo e vivendo sob as arcadas e alpendres, em tendas alinhadas nas entradas dos edifícios.

Será que ainda sonham? Pensou.

Atravessou a rotunda da Boavista e sem pensar muito no destino que as suas pernas lhe davam, chegou  ao cemitério de Agramonte.

Teve uma epifania, um Haiku! 


Os cemitérios 

    Estão cheios 

             De sonhos


Estava inspirada. Almoçou, como não podia deixar de ser, num Japonês ali perto. Empregados brasileiros.  O Sushiman, Paulista de origem Japonesa. Foi servida por uma garçonete, estudante de Química na FEUP. Chegou a Portugal há poucos meses, pela primeira vez. No Brasil, não conseguia pagar as propinas, aqui é trabalhadora - estudante.

Imaginou  a vida difícil que ela deve ter, a viver num país com salários baixos e rendas exorbitantes. Veio iludida. É provável que não consiga conciliar as duas atividades e regresse ao Brasil. Ainda por cima numa época em que o racismo e a xenofobia  aumentam drasticamente, associando criminalidade à imigração. Uma falsidade tremenda, contrariada pelo últimos dados da polícia judiciária que referem a diminuição da criminalidade.

Maria Madalena é solteira, tem tempo para deambular, nunca casou e não gosta de homens. Mete conversa com jovens bonitas sempre que pode. As mulheres também a inspiram, não só a cultura japonesa.

Na estação de metro da Casa da Música, observou uma trintona vestida com um casaco branco de lã,  botões apertados, calças de ganga. Cruzaram olhares. A estranha dirigiu-se a ela, pressentindo no  seu olhar que talvez lhe conseguisse sacar uma “moedinha”.   

“Podia-me dar 1 euro para tomar um cafezinho?”

Maria Madalena fez o gesto que não com a cabeça. A mulher afastou-se docilmente, sem insistir.  Não parecia drogada, tinha um rosto suave e elegante, sem o desgaste causado pela toxicodependência.

A estranha continuou a deambular pela estação, parecendo insinuar-se discretamente para ela - ou talvez fosse imaginação sua.   Não interessa, não ficou para saber. Apanhou o 203 para Serralves. Um vagabundo, este sim, claramente com aspeto de toxicodependente – terá entrado na avenida de França? – falava sozinho no banco. Seria louco? Alguém com um desejo tremendo de comunicar, inventando personagens e situações imaginárias, ou o corpo ressacado, delirando enquanto não injetava a próxima dose?

As copas das árvores abanavam ao longo da avenida da Boavista.


Sussurra o vento lá fora

      O viajante louco

                   O poema encontrou


Saiu na avenida Marechal Gomes da Costa ao encontro de mais inspiração para os seus haikai.

Maria Madalena olhando a cidade do Porto, procurando inspiração para os seus Haikai.