sábado, 1 de fevereiro de 2025

Haikai à moda do Porto

 


Maria Madalena adora o Japão. Infelizmente, nunca teve a oportunidade de visitar o país. Sente-se fascinada  desde miúda pela arte oriental e pela cultura nipónica em particular. Cativa-a a sonoridade da língua, os sons fechados, melodiosos e curtos das frases, parecendo  stacattos. Lê Mangas  avidamente. Vê Animes sempre que consegue. Inicialmente, através dos DVD que um amigo lhe emprestava. Mais tarde, assinou propositadamente a Netflix, que o mesmo amigo lhe recomendou, por ter muitos Animes. Passa horas sentada no sofá a assistir deleitada às histórias, a enredos  paranormais de personagens com poderes sobrenaturais. É fã do cinema clássico Japonês, viu filmes de Akira Kurosawa: Ran, Os Senhores da Guerra; Dersu Uzala, a Águia da Estepe; Os Sete Samurais. Fez questão de ver O Silêncio, de Martin Scorsese, baseado no romance do escritor católico Japonês, Shuzako Endo. Adorou o filme, não só porque retrata uma parte da história de Portugal, a missionação do Japão pelos jesuítas Portugueses, mas também pelo martírio que sofreram, em nome da fé Cristã, e da brilhante dialética de dois sistemas filosóficos em confronto, numa das cenas mais memoráveis que viu no cinema até hoje.

“Por que vens ao meu país convencer-nos a alterar as nossas crenças?”, pergunta o magistrado Japonês ao missionário representado por Andrew Garfield (grande orgulho, um ator de Hollywood a fazer o papel de um Português!)

“Venho em nome de um reino maior.”

“Que reino maior é esse? Portugal?” (o orgulho inflamou dentro do seu peito).

“Não. É o reino de Deus.”

O  diálogo memorável continuou. Um filme tremendo!

Conhece a biografia de Wenceslau de Morais. Leu O Bon-Odori, relatos das suas experiências  na ilha de Tokushima, onde viveu e morreu, adido de Portugal.

Entusiasma-a o minimalismo da cultura Japonesa, que tem na criação de bonsais, na construção de miniaturas de jardins  dentro das casas tradicionais de madeira de biombos móveis, e nos haikai, os seus maiores expoentes.  

Não tem espaço em casa, nem paciência para jardins minúsculos e  bonsais.  Falta-lhe a providencial paciência - é incapaz de se deter em  minúcias estéticas, reproduzindo com pedrinhas, regatos de água, montinhos de terra e verduras,  paisagens japonesas do monte Fuji.

Quanto aos haikai é diferente, basta-lhe um papel, alguma inspiração – mesmo que má – para traduzir em  apenas três frases de dezassete versos, 5 – 7 - 5,  as impressões dos seus dias, consoante as estações do ano e as suas variações de humor. O haiku (singular de haikai) capta um momento, uma essência. Condensado, simples e cristalino.

Ela está longe de atingir a  multiplicidade de sentimentos e imagens que um breve conjunto de palavras pode evocar, no entanto, tenta.  Maravilha-a que num poema tão curto caiba tal  enormidade de sentimentos.

Um dos seus livros favoritos é “O Estreito Caminho Para o Longínquo Norte”, de Bashô (Banana, em japonês). Viagem pelo Japão medieval, através da ilha de Hokkaido, no século XVII. O viajante e autor descreve templos, pessoas, lendas dos sítios onde passa, paisagens, variações nas tonalidades de luz, o desabrochar das flores, escrevendo haikai como corolário das suas observações e reflexões.

Na impossibilidade de ir ao Japão, Maria Madalena passeia pelo  Porto, inspirando-se  em Bashô, escrevendo frases simples e diretas, poéticas como os haikai, adaptados à realidade do que observa no dia-a-dia.

Uma das frase que sublinhou no livro foi: “Para viajar deveria bastar-nos o nosso corpo, mas as noites reclamam um agasalho; a chuva, uma capa; o banho, um traje limpo; o pensamento, tinta e uma pena.”

Certo dia, ao subir a rua Júlio Dinis, reparou  que o número de sem-abrigo é cada vez maior, dormindo e vivendo sob as arcadas e alpendres, em tendas alinhadas nas entradas dos edifícios.

Será que ainda sonham? Pensou.

Atravessou a rotunda da Boavista e sem pensar muito no destino que as suas pernas lhe davam, chegou  ao cemitério de Agramonte.

Teve uma epifania, um Haiku! 


Os cemitérios 

    Estão cheios 

             De sonhos


Estava inspirada. Almoçou, como não podia deixar de ser, num Japonês ali perto. Empregados brasileiros.  O Sushiman, Paulista de origem Japonesa. Foi servida por uma garçonete, estudante de Química na FEUP. Chegou a Portugal há poucos meses, pela primeira vez. No Brasil, não conseguia pagar as propinas, aqui é trabalhadora - estudante.

Imaginou  a vida difícil que ela deve ter, a viver num país com salários baixos e rendas exorbitantes. Veio iludida. É provável que não consiga conciliar as duas atividades e regresse ao Brasil. Ainda por cima numa época em que o racismo e a xenofobia  aumentam drasticamente, associando criminalidade à imigração. Uma falsidade tremenda, contrariada pelo últimos dados da polícia judiciária que referem a diminuição da criminalidade.

Maria Madalena é solteira, tem tempo para deambular, nunca casou e não gosta de homens. Mete conversa com jovens bonitas sempre que pode. As mulheres também a inspiram, não só a cultura japonesa.

Na estação de metro da Casa da Música, observou uma trintona vestida com um casaco branco de lã,  botões apertados, calças de ganga. Cruzaram olhares. A estranha dirigiu-se a ela, pressentindo no  seu olhar que talvez lhe conseguisse sacar uma “moedinha”.   

“Podia-me dar 1 euro para tomar um cafezinho?”

Maria Madalena fez o gesto que não com a cabeça. A mulher afastou-se docilmente, sem insistir.  Não parecia drogada, tinha um rosto suave e elegante, sem o desgaste causado pela toxicodependência.

A estranha continuou a deambular pela estação, parecendo insinuar-se discretamente para ela - ou talvez fosse imaginação sua.   Não interessa, não ficou para saber. Apanhou o 203 para Serralves. Um vagabundo, este sim, claramente com aspeto de toxicodependente – terá entrado na avenida de França? – falava sozinho no banco. Seria louco? Alguém com um desejo tremendo de comunicar, inventando personagens e situações imaginárias, ou o corpo ressacado, delirando enquanto não injetava a próxima dose?

As copas das árvores abanavam ao longo da avenida da Boavista.


Sussurra o vento lá fora

      O viajante louco

                   O poema encontrou


Saiu na avenida Marechal Gomes da Costa ao encontro de mais inspiração para os seus haikai.

Maria Madalena olhando a cidade do Porto, procurando inspiração para os seus Haikai.