quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Roskilde

 


Apesar de gostar da minha condição de turista sou sempre um estranho onde quer que vá, por esse motivo a necessidade de deambulação permanente, de encontrar constantemente  sítios novos para esquecer a estranheza e o desconforto de não estar na minha terra. Ao fim de dois dias em Copenhaga soube bem sair da cidade e ver outra Dinamarca, mais genuína porventura. Conhecer os meios de transporte para outros lugares e  verificar com agrado que  continuam a ser eficientes e confortáveis. O comboio tinha “Carruagens de Silêncio” anunciadas por  um cartaz na porta de entrada que exorta os passageiros a fazer silêncio absoluto, a não usar telemóvel, ouvir música e conversar com os colegas do lado. Como se as restantes carruagens  não fossem já suficientemente silenciosas! Viajamos numa dessas carruagens, os passageiros liam, mantinham-se calados e  nós, mais uma vez, tivemos de cochichar - o estritamente necessário - movendo-nos o mínimo possível no banco, com receio de fazer ruídos perturbadores.

Saímos da camioneta numa paragem  afastada da entrada no museu, caminhamos ao lado do jardim onde se  realiza o festival de música de Roskilde, dos mais antigos e importantes da Europa.  Sentia-se o ambiente  pesado, heavy, fulanos de roupa preta e casacos de cabedal moviam-se furtivamente, bebendo cerveja nas mesas como se estivessem num evento clandestino.  Mal os ouvíamos.  A Dinamarca é assim: as pessoas fazem silêncio. Eu, que aprecio o silêncio, penso que começaria a achar monótono tanto silêncio.  

O museu do Rock, Ragnarock, foi dos mais loucos e divertidos que visitei até hoje. Fica num edifício bizarro, visível ao longe, de cores garridas. Ao entrar no elevador para o segundo piso, a musica psicadélica começa imediatamente a tocar preparando os visitantes  para a viagem alucinante prestes a começar. O primeiro encontro, após a abertura do elevador, é a sala de luzes fluorescentes, dedicada à influência das drogas e  ácidos no mundo da música. Interagimos com o painel eletrónico, escolhemos  cores e  padrões geométricos, brancos e verdes fluorescentes, que põem a cabeça zonza. Vimos a história da música moderna, do jazz ao rock, da musica POP à techno, as principais bandas da Dinamarca e fora dela, acompanhamos interactivamente as exposições nas várias salas.

Tive a oportunidade de fazer uma gravação em estúdio e de enviar o filme para o meu email, que guardo como testemunho de um momento que  me dá vontade de rir sempre que o vejo.

Os estudantes saiam da escola politécnica em pequenos grupos, envergando macacões, fatos  de trabalho das oficinas, sujos de tinta e poeira. Passaram ordeiramente à nossa frente, indiferentes aos estrangeiros. Conversavam pouco entre si, e baixo. Estes adolescentes  seriam o equivalente aos nossos CEFs: problemáticos, avessos à escola. Em Portugal, o normal seria ouvi-los a berrar e a gesticular, encavalitando-se e dando tabefes uns nos outros. Aguardávamos o autocarro, eles entraram na paragem anterior. Quando parou,  vinha apinhado. Ocupavam todos os lugares sentados e o corredor, pareciam pilhas de legos encaixados na caixa, bonecos estáticos. A minha filha chamou-lhes NPC – O que significa isso? – perguntei – No Playable Characters, – disse ela - personagens dos videojogos sem qualquer intervenção na ação, ocupam o espaço, são cenário. -  Não entramos, preferimos caminhar 45 minutos  até ao centro da cidade e ao Museu Viking.

Comecei a ouvir uma melodia francesa conhecida, fiquei encantado com o ambiente sonoro, espontâneo e tranquilo que saia do piano no centro da praça, do lado da catedral. Lamentei em Portugal não haver pianos nos centros das cidades disponíveis para serem tocados por todos. Ouço falar Português e não é que quem toca é uma Portuguesa?!

Não há um único carro estacionado ao redor da catedral. Espaços amplos e abertos para serem caminhados tranquilamente.  Casas medievais de paredes garridas e varandins de madeira. Chão de tijoleira. A luz do sol a incidir no fiorde por trás das chaminés. Tudo calmo, o tempo parado.

Entramos no museu Viking. O esqueleto de um dos barcos no grande salão pertenceu a um chefe, ao mesmo tempo líder  religioso e militar. O barco foi enviado numa expedição às costas da Irlanda, onde naufragou e  foi encontrado séculos mais tarde,  perto de Dublin.

Os Vikings eram guerreiros, mercenários, piratas e saqueadores.  A maioria das pessoas nos seus aldeamentos  dedicava-se, porém,  à agricultura, pesca, artesanato. Viviam em autossubsistência, isolados nos fiordes, protegendo-se dos inimigos com barcaças e postes que colocavam a unir as margens, impedindo-lhes a entrada. Quando os bens escasseavam, a  fertilidade da terra e do mar era insuficiente, os chefes organizavam expedições, raziando costas longínquas. Chegaram ao mar Negro, a Itália, à península Ibérica, estabeleceram colónias na Ásia Central, criaram a base das futuras  nações Russa e  Ucraniana. Estabeleceram-se na América do Norte, Groenlândia, Islândia. Estavam divididos em 4 grandes grupos, falando uma língua parecida com o Dinamarquês: Suecos, Dinamarqueses, Noruegueses e Gautos. Eram politeístas, os deuses comportavam-se como os humanos,  irascíveis e vingativos. Adoravam seres sobrenaturais que  fazem parte da mitologia e do imaginário de romances como “O Senhor dos Anéis”: elfos, anões, gigantes,  valquírias. Não foram romanizados como os outros povos germânicos por se encontraram mais distantes do centro do império, mais a norte. Foram os últimos a ser cristianizados, mantiveram os rituais pagãos até  tarde, até ao dealbar do primeiro milénio.

Era um navio de guerra, Skeid, levava 60 a 70 remadores, permitiam-lhe avançar no mar sem vento e  vela desfraldada. Navegadores intrépidos e temíveis,  atacavam as costas, raptavam e violavam mulheres – li algures que a predominância de pessoas loiras em muitos lugares da costa portuguesa deve-se ao contacto com os Vikings.

O chefe foi sepultado com 11 cavalos, os cães de estimação, as suas mais finas peças de roupa, feitas dos melhores tecidos importados de Bizâncio, o tabuleiro de madeira do seu jogo favorito. Uma mulher velha, o anjo da morte, empilhou os pertences sobre a sepultura, serviu cerveja sagrada à tribo, que velou o corpo dias seguidos. Ela própria matou a jovem escrava que se voluntariou para acompanhar o chefe na vida do além. Ao fim de alguns dias os bens do morto foram soterrados sob uma meda de terra onde permanecerem até serem saqueados pelos ladrões de túmulos. 



Catedral


Museu Viking

Ragnarock




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