sábado, 19 de fevereiro de 2022

Trilho da Pedra Moura - PR8 SVV

Anta da Cerqueira

A  Armanda Pinho juntou-se a nós no café restaurante “O Júnior” em Couto de Cima.    Antes de iniciarmos a caminhada insistiu  que passássemos na  casa que recuperou para  alojamento local,   “Sabores@Arte”,  pronta a receber visitas.  Um belo edifício   no centro da freguesia,  de arquitetura tradicional e paredes de granito, com muita luz e conforto. Mantem  os traços e os resquícios arquitetónicos das funções realizadas noutras épocas, como a adega  e a sala com lareira, com o conforto e a funcionalidade de uma casa moderna. No rés-do-chão, onde antigamente se guardavam os animais e as alfaias, fez   um pequeno auditório para apresentar filmes e realizar  eventos dedicados à cultura local.  Quer   recolher produtos  de artesanato, agricultura e doçaria regional para vender aos visitantes.  Tem dedicado  muito tempo dos últimos anos  ao projeto.   Trabalha há mais de quarenta  anos como professora, está cansada e  desiludida com o ensino, não compreende por que razão a segurança social demora tanto tempo a conceder-lhe a reforma.  Já enviou vários pedidos ao Ministério da Educação, todos sem resposta,  “Cada ano que passa torna-se mais desgastante, já não tenho  energia, vontade e saúde para aguentar a pressão.” Nasceu em Couto de Esteves e,  tal como a maioria dos  conterrâneos,  teve de sair. Estudou, tirou um curso, tornou-se professora,  trabalhou e fez a  vida noutro local.   Agora, que está quase reformada, regressa às origens para se "reencontrar" e "carregar  energias", como outros que   foram para as cidades do litoral ou emigraram e  só regressaram definitivamente depois de aposentados,  ocupando o tempo restaurando espaços antigos,  valorizando o património, participando na coletividade local.  

Chegamos a um espigueiro com uma vista soberba sobre o vale do Vouga.  “Gosto deste sossego e tranquilidade", diz-nos.  Enchemos  os pulmões com o ar fresco da manhã. Durante a pandemia fez muitas caminhadas pelos trilhos circundantes.   Há três sinalizados de pequena rota que começam em Couto de Esteves: o trilho dos Amiais, o da Agualva e o da Pedra Moura, que foi o que decidimos fazer por sugestão dela, o seu preferido.

Seguimos por uma levada seca ao longo do rio Gresso, que corria bucólico lá no fundo entre rochedos cobertos de musgo, formando pequenos rápidos e cascatas. "Havia muitas trutas quando era miúda". A vegetação é constituída por choupos e amieiros despidos, disfarçando a grande quantidade de eucaliptos que se encontram nas encostas mais altas. Ainda existem recantos idílicos, pastagens, vestígios de socalcos cobertos de erva alta, construídos com muros de granito que descem as encostas.  Leiras cultivadas com pencas e batatais. Na lama há pistas de javalis que de noite se aproximam da aldeia para comer raízes e frutos. Três agricultores queimam mato formando uma nuvem de fumo. Noutra época do ano seria assustador, hoje não, choveu nos dias anteriores, há humidade na terra. Folhas apodrecidas de bordo-bastardo cobrem a levada por onde caminhamos, em vez da água que devia levar.

As alminhas e cruzes de granito são uma constante, sinalizando os caminhos que ligavam as igrejas e o cemitério, atestando a religiosidade e a devoção das pessoas desde há muitos séculos, que raras vezes saiam da aldeia, a não ser em momentos muitos especiais. Comunidades que viviam isoladas e autosuficientes, celebrando ciclicamente os rituais cristãos, entre a vida e a morte de cada um.

Despedimo-nos da Armanda que regressou sozinha a Couto de Cima, tinha outros compromissos e visitas para o Almoço. Continuamos por uma subida ingreme até à aldeia de Catives. Assentámos arraial nas lajes de granito de uma eira entre dois espigueiros, ambos  com mais de cem anos: 1896 e 1905 –  data de construção  gravada no capitel. “Aqui os espigueiros chamam-se canastros”, disse-nos uma senhora com quem nos cruzamos. Depois do lanche seguimos em direção à anta da Cerqueira ou Pedra Moura, que dá o nome ao percurso, ladeados de eucaliptos,  por um trilho ascendente de terra até alcançarmos a estrada municipal. Caminhamos despreocupados dos veículos, que raramente passavam por nós, debaixo de um sol radioso, respirando o ar puro da serra. Avistamos a anta entre pinheiros-bravos, bem sinalizada e de fácil acesso pela EM 569. Mais um momento de paragem para algumas fotografias e conversa.

O monumento megalítico tem 5000 anos, comprovando que a região é habitada pelo menos desde essa época. É um local funerário, no qual se colocavam os mortos em posição fetal ou dentro de um vaso bojudo que simbolizava o útero. A morte  era considerada uma transição para a nova vida. As antas também se chamam "mamoas" porque eram cobertas com terra, formando monticulos que lembravam uma "mama". Entrei pela antecâmara agachando-me para não bater com a cabeça, as lajes de granito estão sobrepostas formando uma abertura estreita e baixa. Apenas dentro da câmara tumular se consegue estar de pé. Imagino que antigamente, já no período cristão, as pessoas tinham tendência para efabular, criar histórias e mitos associados a estes locais, cuja origem era misteriosa para elas. Existem muitas lendas de mouras encantadas em Portugal. Esta "Pedra da Moura" seria mais uma

Dali seguimos por Cerqueira em direção ao início do percurso em Couto de Esteves, num trajeto  descendente por estrada alcatroada e por fim, novamente, em trilhos rurais ladeados de muros de granito, pequenos tanques de armazenamento de água, bicas secas, quintais e árvores de fruto.  Fomos dizer adeus à Armanda, combinando que regressaríamos para fazer os restantes trilhos.

Almoçamos bem no restaurante “O Cortiço”, no centro de Sever do Vouga, e depois ainda fizemos uma pequena caminhada pela ecopista do Vouga, entre o apeadeiro desativado de Paradela e a ponte de Santiago. Cruzámo-nos com pessoas de todas as idades que, como nós, aproveitaram o bom tempo para fazer tranquilamente mais uns quilómetros a pé – o desnível é irrelevante.










Canastro em Catives




Anta da Cerqueira










Couto de Esteves


Ecopista do Vouga



domingo, 6 de fevereiro de 2022

Vale de Batuecas

Novamente as lendas. Esta diz que os Batuecas eram um povo selvagem que vivia escondido e livre neste vale profundo, longe do mundo, das convulsões das guerras, dos horrores da morte violenta e das trevas da superstição que assolavam a Europa. Colhiam os frutos selvagens, o mel silvestre, apanhavam esporadicamente um animal que descia dos contrafortes da serra para saciar a sede nas águas cristalinas do rio: ursos pardos, lobos e outros de grande porte que hoje são apenas uma miragem. Protegiam-se nas grutas das intempéries e do frio da noite, desenhavam nas paredes gravuras que representavam cenas de caça, mulheres de peitos grandes e ventres largos, simbolizando a fertilidade, e homens de falos eretos. Figuras rupestres que hoje se podem ver em algumas rochas. Viviam seminus, sem hierarquias, uma vida pagã, adorando a natureza e o seu panteão de deuses animistas. Tudo era sagrado: o sol, a lua, a água do rio, os animais, o bosque. Mas esta vida pagã e sacrílega tinha de acabar. Os monges Carmelitas chegaram e construíram no vale do rio o mosteiro de San José del Desierto.  Para mostrar que a santidade e a beatitude podia ser alcançada de outra forma, pela renúncia e oração, tentaram convencer os Batuecas de que, o que faziam, era errado, assustando-os e coagindo-os com o fogo dos infernos, convencendo-os a converterem-se à fé cristã, forçando-os a aceitar novas dogmas. O certo é que no século XXI ainda existe o convento, onde seis monges vivem isolados do mundo, cercados por um alto muro de xisto que contorna o mosteiro e a respetiva quinta. De fora são apenas visíveis  gigantescos ciprestes e, se espreitarmos por uma frincha, conseguimos ver o barraco que serve de arrecadação às alfaias agrícolas e as janelas fechadas das selas. Dos Batuecas resta apenas a lenda e o mito de um misterioso povo pagão que habitava o vale. 
Os monges organizam retiros espirituais. No mínimo duas noites. Aceitam reservas apenas pelo WhatsApp.
Já não me lembrava de como era descer uma serra com estradas estreitas e precipícios vertiginosos. Fomos na camioneta de La Alberca até ao início do trilho no Vale do Batuecas, sete quilómetros com a respiração suspensa em cada curva que fazia, muito lentamente, travando a fundo, entrando em contramão com o chassis completamente fora do eixo. A prova cabal de como o local para onde nos dirigimos é um ermo  isolado e de difícil acesso. 
Caminhamos sempre pelas margens do rio até à cascata de El Chorro, numa distância aproximada, de ida e volta, de 12 km. No início seguimos ao longo do convento, num caminho de terra coberto de raízes e debaixo da sombra de teixos centenários. Um trilho encantado, misterioso e mágico, num isolamento perfeito para a contemplação e os retiros espirituais que os monges organizam.
 No muro do convento uma laje de ardósia com um poema eloquente de São João da Cruz: 

“Buscando mis amores 
Iré por esos montes y riberas; 
Ni cogeré las flores
Ni temeré las fieras, 
Y pasaré los fuertes
y Fronteras.” 

Há algo de que só agora me apercebo e que já ontem havia estranhado. A natureza no estado,    dito “selvagem”, está, em muitos locais, repleta de postes de eletricidade com fios condutores, estradas, antenas de telecomunicações e torres eólicas, mesmo nos parques naturais e zonas protegidas. É cada vez mais difícil olharmos  o horizonte e não vermos a intervenção humana em toda a parte. A nossa mente está habituada a determinadas imagens e na ausência delas não se apercebe imediatamente que elas não estão lá. Não me lembro de ter visto estes artefactos humanos na Peña de Francia e hoje, definitivamente, não há nada disto. De facto, é um privilégio ainda encontrar sítios assim. Estarmos por momentos e durante algumas horas num estado verdadeiramente primitivo. Não há rede móvel no trilho. Para onde olhamos vemos apenas as arestas rochosas das fragas que rodeiam o vale, o manto verde por onde o rio corre escondido, os arbustos que crescem nas rochas. Só exemplares autóctones: medronheiros, azinheiras, sobreiros, pinheiros mansos, gilbardeiras, carquejas. Sim, aqui posso dizer: a natureza ainda é verdadeiramente selvagem. Talvez ainda hajam lobos. 

A cascata de El Chorro é uma queda com 15 metros de altura de difícil acesso, águas gélidas e translúcidas. Fizemos o nosso almoço volante ao redor da lagoa. Um dos caminheiros tem um bastão verdadeiramente espetacular e artístico, parece uma tuba. No entanto, ele desmonta-se. Quando é para comer, o Miguel desarticula o bastão em quatro pernas e encaixa o tampo que leva na mochila, montando uma pequena mesa, onde coloca uma toalha com enchidos e queijo. Os outros companheiros levam vinho e o respetivo copo para a festa. Uma das frases que me ficou na memória destes dias é esta: “não venho para caminhar, venho para comer”. Fazia-me alguma confusão que uma pessoa que vem caminhar 15 km, disse-se isto. Percebo, agora, o seu autêntico significado. Considero uma arte este estilo de caminhada e de fruição da vida, que não está ao alcance de qualquer um. 

 Visitamos no regresso a Portugal a aldeia de Mogarraz, um belo Pueblo tradicional de casas de madeira e varandas floridas, que se distingue pela exposição permanente de retratos dos seus habitantes pintados nas paredes por um artista local. Tudo começou quando ele acedeu ao arquivo fotográfico da aldeia, onde constavam muitas fotografias, tipo passe, tiradas nos anos 60, de forma a evitar a deslocação dos habitantes a localidades mais afastadas para tirar o equivalente ao nosso bilhete de identidade. Hoje existem mais de quinhentos retratos pintados por si, dispersos pelas paredes das casas, dando um aspeto muito sofisticado ao pueblo.
Convento Carmelita de San José del Desierto


As raízes a atapetar o chão no vale encantado

O Vale Encantado ao longo da margem do Batuecas

O rio Batuecas






 El Chorro y El Guapo



Pueblo de Mogarraz

Mogarraz

Mogarraz

Mogarraz


sábado, 5 de fevereiro de 2022

Trekking na Serra de Francia

 

Peña de Francia

O nosso trilho começou na estrada alcatroada de acesso ao santuário, onde a camioneta nos deixou. Partimos de madrugada de Braga, Porto e Mangualde, locais em que  foi parando e recolhendo os caminheiros para este fim de semana de muitas expetativas, com duas caminhadas: uma  na Peña de Francia e outra no Vale de Batuecas.

Metemo-nos pelo trilho  íngreme de terra e fizemos três quilómetros sempre a subir até ao maciço rochoso da Peña de Francia,   imponente lá no alto. Dos miradouros víamos a paisagem em redor, a meseta Ibérica e o maciço montanhoso da serra de Bejar,  que a atravessa nesta região de Espanha.  Caminhamos entre pinheiros mansos, só as nossas conversas pontuais  interrompiam a silêncio da serra.   O momento era de adaptação ao início do trilho e de encantamento com o que estava à nossa volta.  Como em poucas horas tudo muda: a paisagem, a língua, a cultura, as pessoas com quem conversamos. Dois grifos planam sobre nós, as pinhas e as agulhas dos pinheiros estão caídas no solo, algumas rochas soltas obrigam-nos a ter cuidado e a ver onde pousamos os pés.

A caminhada continua e vamos metendo conversa uns com os outros: alguns caminheiros são habituais nestas saídas da Borealis e já se conhecem, outros é a primeira vez, como é o meu caso. Vão-se tirando algumas fotografias. Peço para me fotografarem com o fundo da vasta planície: um sorriso, uma de perfil, outra  em cima da rocha.

No santuário,  o Pedro, um dos guias,  explica a história do local.

A lenda conta que o santuário foi construído no local onde um pastor teve a visão da Virgem Negra, numa pequena gruta a que se chega, descendo por um túnel apertado e de teto baixo, inclinando o corpo para não bater com a cabeça nas paredes. Claustrofóbico e despojado, apenas com uma simples estatueta da virgem, muito diferente de outros locais de culto mais ostensivos, como Fátima.   É o santuário mariano situado a maior altitude no planeta, acima dos 1700 metros. 

O topónimo Francia, muito comum na província de Salamanca, deriva dos colonos franceses que a vieram ocupar após a reconquista Cristã no século XI, assim como muitos apelidos que hoje existem na região.  

O relógio de sol foi construído sobre o rochedo e escavaram-se três túneis com acesso aos miradouros:  apesar de grandioso, passa despercebido ao mais incauto dos turistas,  ninguém espera encontrar um relógio com estas dimensões. Facilmente pode ser confundido com outro tipo de monumento.

Almoçamos no alpendre do santuário, abrigados nos muros do vento frio e cortante que fazia, a temperatura devia estar próxima dos zero graus.

Iniciamos a descida de 12 quilómetros até à aldeia de Monsagro, por um trilho de terra e rochas soltas, novamente com muitos pinheiros mansos e pinhas no chão. É nítido o contraste entre as encostas cobertas de vegetação e os cumes despidos. Uma estrada serpenteia a serra numa encosta vazia, dando a ilusão que atravessa o deserto.   O ar é puro, o céu cristalino, a visibilidade de muitos quilómetros. Passamos numa carvoeira – um montículo vegetal que ia ardendo lentamente e  fazendo carvão. Chegamos ao rio Agadan, afluente do Águeda que desagua em Barca D´Alva e é uma  fronteira física entre Portugal e Espanha, no distrito da Guarda. Ao longo da margem, a vegetação muda, torna-se mais densa e cambiam as espécies: os líquenes cobrem os troncos de carrascos e de velhos vidoeiros despidos, ouve-se o rumorejar prazeroso do rio. As águas translúcidas correm pelas rochas, pequenos passadiços  de madeira ajudam-nos a atravessá-lo.  Paz. Sossego. Tranquilidade. Por fim, uma derradeira subida a exigir um esforço extra para terminar o caminho em Monsagro, onde o autocarro nos aguardava para  levar à aldeia de La Alberca,  onde pernoitaremos no hotel Doña Teresa.  A minha companheira dos últimos quilómetros  queixa-se das dificuldade e de como cada metro pode custar a passar quando se está cansado e com dores nas pernas. Digo para a animar que quanto maior o esforço maior a recompensa e o prazer de terminar.

Monsagro é uma aldeia onde  não se vê ninguém,  contudo tem um museu dedicado aos fósseis de trilobites,  muito comuns na zona. Tão comuns que começaram a ser usados como decoração nas paredes das casas. Uma excentricidade única.

Regressamos a La Alberca, um pueblo típico com tradições culturais muito fortes. Tem os trajes tradicionais mais bonitos de Espanha, um pouco como as nossas Vianesas, mas mais escuros e pesados, devido ao clima mais frio e agreste, também com ouro a revesti-los. É tradição leiloar um porco no dia de Santo António, que passeia livremente pela aldeia e é alimentado por todos até ao Dia de Santo Antão, a 17 de janeiro, dia em que é morto e oferecido às famílias mais pobres. A estátua do marrano é testemunha desta veneração imemorial pelos suínos. O fabrico de enchidos é uma indústria importante na região. veem-se imensos porcos a focinhar debaixo dos sobreiros nas propriedades ao longo das estradas principais.

Jantamos no centro, na Cafeteria/ Restaurante El Encuentro,  momento descontraído de  convívio.  Ouviram-se histórias de aventuras, vividas com humor e saudosismo pela equipa da Borealis e pelos caminheiros que se juntaram a eles em destinos mais ou menos exóticos, que sabem bem recordar.

















Icnofósseis de trilobites na parede de uma casa. Monsagro





La Alberca

La Alberca

La Alberca