terça-feira, 31 de agosto de 2021

Alcochete


A pacatez do centro da vila surpreende-me por estar tão próxima de Lisboa. Do pelourinho partem ruelas pedonais calcetadas com calcário, dali chegando-se aos restaurantes, a pequenas mercearias e lojas, à praça da câmara municipal com as agências bancárias, à estação dos correios e a outros serviços. Duas estátuas homenageiam os filhos da terra: o rei D. Manuel I, o Venturoso; e o padre Cruz, que o povo considerou santo. Há pouca gente a circular. A frente ribeirinha tem vista para Lisboa e a ponte Vasco da Gama - é como estar numa aldeia tranquila, onde nada falta, com vista privilegiada para a cidade.

O espelho de água do rio Tejo  parece um lago, ou o  mar sem ondas - “o mar da palha". Tem zonas tão baixas que é possível caminhar dentro de água a muita distância das margens. Vi ao longe pontos negros que depois percebi serem pescadores com fatos térmicos, procurando um marisco qualquer no lodo. 

Uma luz tremenda reflete-se no rio e na cal branca das paredes. O calor é seco. Sente-se o Alentejo. 








quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Praia da Bogueira

 

No último Verão escrevi textos sobre algumas praias fluviais que visitei no centro de Portugal, preterindo esta. Visitando-a agora reconheço que foi uma falha, estando tão próxima de outras que descrevi. 
Não é frequentada por tanta gente como as praias vizinhas da Senhora da Graça e da Senhora da Piedade, no entanto está igualmente bem equipada com estruturas de apoio, nadador salvador e bar. O relvado, do outro lado do açude, rodeado de salgueiros, oliveiras, choupos, plátanos e acácias, tem sombra e sol suficiente. Nas margens do rio estendem-se pomares e matos dispersos entre casas rurais, algumas devolutas, outras ainda habitadas que dão um charme próprio ao centro da freguesia de Casal de Ermio, Lousã.
O que mais me espanta é o silêncio e a tranquilidade, o civismo que encontrei aqui como nas outras praias. Não se fala alto, não há smartphones a debitar ruídos estranhos, há, no entanto, crianças que chapinham na piscina, adultos que lêem encostados nas cadeirinhas à sombra do plátano. Cheira a hortelã. O calor emana da terra seca. Ouvem-se grilos e cigarras.
O açude no rio Ceira criou um lençol de água bastante amplo, onde facilmente se caminha, nada e mergulha da prancha. A temperatura da água é muito amena, as pessoas conversam como se estivessem num jacuzzi.
Compreendo como é encantador este local. usufruir deste silêncio, espaço e natureza. Deste campo com praia.









domingo, 22 de agosto de 2021

Sandinha


Ninguém conhece a aldeia, ouviu falar, ou  tem motivo para a  visitar. A não ser que esteja em trânsito pelas estradas sinuosas da serra da Lousã e  se depare com a placa "Sandinha". Talvez decida parar, mas o mais  provável é seguir em frente. Trata-se de mais uma terra "com  risco ao meio", sem  motivo aparente de visita. Uma aldeia perdida, como tantas outras, nos confins de Portugal:  concelho de Góis,  freguesia de Cadafaz, 20 habitantes apenas (tinha 135 em 1911), nenhuma criança. Conhecida pelos seus habitantes, descendentes e pouco mais. 


Estou  apreensivo. Não vejo um único polícia, de jeep, a cavalo, o exército, voluntários a patrulhar a serra, ou drones fazendo vigilância, prevenindo o aparecimento de incêndios. Ninguém. Zero. Está calor, as encostas da serra cheias de eucaliptos e acácias. Quase ninguém vive nestas aldeias e os poucos que vivem são maioritariamente idosos. Há um abandono e desmazelo evidente do estado. Tenho a impressão que em condições adversas, simplesmente não haverão meios suficientes para acudir e quem aqui estiver será apanhado desprevenido, tal como aconteceu nos trágicos incêndios de  2017. 

A população está a decrescer. De acordo com os resultados preliminares dos censos 2021, Góis perdeu 10,7% da população que tinha em 2011, que já era pouca e vinha diminuindo. São agora 3806 habitantes. Uma razia. 

A aldeia tem  tradições comunitárias que substituem a ausência do estado: a torre do relógio foi construída em 2003 pelos baldios da freguesia de Cadafaz, a escola primária - atualmente sala de  convívio e delegação da associação "a bem da Sandinha" - em 1933, “pelo povo". 

Contudo, o "povo" e as iniciativas locais vão remando contra ventos e marés, compensando  a inoperância  do estado. Mais adiante, no lugar dos Cabreiros, o rio Ceira corre límpido e bucólico  sob a ponte medieval, chamada Velha por ser muito antiga. A roulote de streetfood, Portus, fez esplanada e serve refeições. Uma família acendeu o fogareiro do parque.  As casas de xisto estão recuperadas; jovens apanham sol nas margens  e na eclusa do açude, outros deleitam-se na água transparente do rio. Vejo tendas montadas. Sítio idílico que me deixa com vontade de  ficar, de fazer uma pausa e descobrir as margens do PR 3 de Góis - Vale do  Ceira - com menos calor. Entre o  abandono e a  descaracterização paisagística, ainda vão surgindo recantos idílicos e harmoniosos, em que a natureza e o Homem estão em paz um com o outro. 















quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Areinho - Cais de Gaia

 


 Três miúdos preparam-se para mergulhar do tabuleiro inferior da ponte D. Luís.  Chamam os turistas de forma ruidosa, batem palmas, gritam alto, exibem-se em cima do corrimão. Um colega anda na margem a recolher dinheiro para dentro do chapéu:

- Já dá para saltar, Rodrigo? – pergunta um dos colegas na ponte.

- Ainda não.

Continuam a gritar, a chamar turistas.   - Está a ficar cheio de gente, carago!  Mexe-me essas trombas,  enche-me o chapéu, pá! Aproveita que está cheio de turistas– ordenam. Os mirones, a maior parte sem perceber uma palavra, vai-se rindo dos modos deles. 

- Um turista  deu 5 €!! - grita o Rodrigo. 

- A sério?! Então vou mergulhar, que ça lixe! – Um dos colegas no tabuleiro atira-se de pés para o rio. Um salto de 20 metros, que deve ser a altura do tabuleiro inferior da ponte.

Os turistas aplaudem.

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Na descida ingreme para a ponte D. Luís, um indivíduo assa sardinhas na rua à entrada da sede do Clube Desportivo do Torrão. Tenta convencer os turistas:

- Very wonderful Sardines!! Sardinas muy buenas!! Quieres entrar para comer?

Quando percebe que sou português, desculpa-se. Respondo: “eu também como sardinhas como os outros!”.  Rimos os dois.

- Dê uma volta e depois regresse. São muito fresquinhas, garanto-lhe! – convenceu-me. Regressei e comi sardinhas com batatas a murro. O Sr. José faz parte do corpo social do clube e serve no restaurante,  “só para ajudar”. O homem que está no assador não é sócio do clube mas também gosta de ajudar. É ele, o Sr. José e mais outra pessoa na cozinha.

A casa vai-se compondo com mais clientes, quase todos estrangeiros. Uma tasca que contrasta  com os restaurantes elegantes e caros da ribeira,  que têm a  vista desafogada para o Porto. Fica mais escondida, mas em contrapartida tem uma localização muito original: debaixo do tabuleiro da ponte. Mais castiça e antiga do que a maioria dos restaurantes, fundada em 1958. 

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Passo no World of Wine só para ver as vistas. É um espaço com um conceito muito inovador na cidade. Além das “melhores vistas” sobre o Porto, possui museus, restaurantes e a escola do vinho. Um local para regressar com calma, ver, provar, saborear. Pareceu-me ainda com pouco movimento para a dimensão e ambição que tem. Estou convencido que gradualmente acabará por se impor e que brevemente passará a ser um local de visita obrigatória.Tem todas as condições para isso.

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Já se pode ir a pé do areinho de Avintes até à Afurada, ao longo do rio.   Fiz a parte entre o Areinho de Oliveira do Douro e o Cais de Gaia. O trajeto ficou completo com a inauguração em Maio de alguns troços de passadiço que faltavam.   Percurso incrível com vistas fabulosas, apanhando enquadramentos pouco habituais dos tabuleiros de ferro das pontes D. Luís e D. Maria, e de cimento das pontes do Infante e de S. João, pela encosta granítica e austera de Quebrantões.

Ao chegar à ribeira de Gaia, a vista do Porto, embora não seja uma surpresa, surpreende sempre. É um misto de orgulho sempre que observo esta panorâmica única e,  ao mesmo tempo, de frustração, porque o Porto tem beleza, história e carisma, não é inferior a muitas cidades europeias, que no entanto são mais visitadas e famosas.  Falta-lhe mais vida, população, estar menos abandonada – como diz a letra do Carlos Tê:

“Ver-te assim abandonada
Nesse timbre pardacento
Nesse teu jeito fechado
De quem mói um sentimento

Por isso, também dói observar o Porto. Há a nostalgia de uma alegria e vida que nunca existiu na cidade, mas que sabemos que podia existir.  Seguramente podia ser melhor quando comparada com outras cidades europeias que, com menos, são mais sobranceiras, opulentas e dinâmicas. 




















domingo, 15 de agosto de 2021

N. Sra. da Saúde



É uma tradição peregrinar à N. Sra. da Saúde. O santuário fica num monte com vista para o mar e largos quilómetros em redor, sítio apelativo para a prática de rituais  desde a antiguidade. Acredito que tenha sido altar pagão, posteriormente reconvertido em local de culto cristão, dedicado a N. Sra. da Saúde. 

No tempo dos meus avós, enfeitavam-se os carros de bois e ia-se de carroça. Hoje, continuam-se a fazer picnics entre famílias e amigos, que celebram o dia nas encostas do Monte, com missas, promessas e orações no santuário, juntando o sagrado e o profano.

Milhares de pessoas, das freguesias e concelhos vizinhos, deslocam-se a pé pela estrada nacional. Era tradição, na minha família, reunirmos e convivermos em picnic numa mata próxima, porém nunca fiz a peregrinação, até hoje.

Saí de casa antes  da meia noite com o colete refletor no corpo. As bermas da estrada iam cheias de peregrinos, que paravam nas roulottes para beber bejecas e comer bifanas com batatas fritas, deliciando-se sofregamente, lambuzando-se – caminhar abre o apetite; de noite, com temperatura amena, mais ainda -, o cheiro da comida no ar convence mais pessoas a fazer um intervalito na caminhada e a abastecer a barriga -    a N. Sra. da Saúde pode esperar mais alguns minutos, é preciso recarregar energias e há prioridades  mundanas que também fazem bem à alma!! 

Ao redor do santuário, juntam-se mais pessoas nas esplanadas dos restaurantes e em  picnics nas mesas de cimento, apesar de já passar da meia-noite. Contudo, não se trata apenas de diversão, para muita gente é o momento de fazer a promessa há muito tempo desejada para que alguém estimado recupere a saúde, intercedendo diretamente a Nossa Senhora, no seu dia e santuário, rezando-lhe, fazendo-lhe o pedido. A casa da cera vende réplicas em tamanho real de órgãos do corpo humano: os pulmões custam 5€, o pé direito e o intestino grosso 3€ - de quase todos os órgãos e membros, a preços diferentes consoante o tamanho,  que serão queimados. Faz-se fila para ver o altar; cá fora uma senhora de joelhos, visivelmente em esforço, dá a volta ao santuário.

O sagrado e o profano juntos.





sábado, 7 de agosto de 2021

Santa Tecla

 


“Aqui viveram mais de 3000 pessoas”, diz o painel interpretativo no Castro de Santa Tecla. É interessante imaginar como seria viver aqui. Claro que é uma imaginação muito distorcida por dois mil anos de distância, por uma história, vida e perspetivas totalmente diferentes de quem vive no século XXI. Se não fosse o castro e as várias relíquias arqueológicas que foram desenterradas na abertura da estrada há cem anos, este seria o spot perfeito para um hotel e condomínio de luxo, com vistas desafogadas sobre o mar e o rio Minho. Será que os seus habitantes tinham consciência do spot em que viviam? Será que recebiam visitas que lhes diziam:

- Uau!!! Este sítio onde vives é maravilhoso!!!

Sabe-se que o local tinha uma função defensiva e de vigilância, que os barcos Fenícios, Cartagineses e Romanos subiam a costa e comerciavam mercadorias com os povos do noroeste peninsular – há uma ânfora de azeite no museu arqueológico -. Os colares de contas coloridas, os moldes de barro para trabalhar o ferro fundido, a urna de cerâmica em forma de jarro, indicam uma sociedade que revelava  complexidade e sofisticação – as mulheres gostavam de se aperaltar, eram usadas ferramentas de ferro e, provavelmente, os mortos eram incinerados. Mais tarde, com a ocupação e a influência Romana, começaram-se a fazer sepulturas e a construir estelas funerárias.

Cá fora, o quiosque vende souvenirs com símbolos celtas, padrões geométricos formando suásticas, lembrando que estes povos eram indo-europeus e que existiu uma cultura anterior à cristianização, que posteriormente adotou muita simbologia pagã – basta ver as cruzes que ladeiam o caminho do calvário.