domingo, 31 de julho de 2022

Via Appia

 


As primeiras milhas da via Appia foram exatamente aquilo que eu estava à espera.

O cartaz na parede no restaurante onde ontem jantamos com a fotografia da via era muito apelativo: a calçada Romana rodeada de ciprestes e pinheiros mansos, bucólica e idílica. 

Cigarras cantantes,  corvos que marcham desajeitados na erva seca, altos pinheiros mansos. O perfil montanhoso dos Apeninos ao longe. É assim o caminho. 

A via é património cultural de Itália e da humanidade. A Appia Antica foi a primeira e a mais importante estrada construída no Império Romano - a rainha das estradas. Ligava Roma a Cápua, na Campânia, tinha 212 km de extensão, demorava 5 a 6 dias a ser percorrida. Com a expansão do império para o Sul de Itália, expandiu-se a Brindisi. A nova Via Appia ficou com 587 km e a jornada completa levava 13 a 14 dias. 

Começou a ser construída no séc. IV AC e foi terminada pelo imperador Trajano no séc. III AD. 

Pavimentada com lajes de basalto, basoli, e largura de 4, 15 metros, de forma a permitir a passagem de duas carruagens em sentidos contrários. Havia estações de 10 em 10 km nos troços mais frequentados e de 17 em 17 km nos menos frequentados para troca de cavalo e descanso dos viajantes. 

Alugamos bicicleta no Punto Informativo Appia Antica e fizemos as 4 milhas (6,5 Km) iniciais do trajeto. A via está pejada de vestígios. Cada quilómetro conta histórias do império, de rituais religiosos  praticados nos templos que ladeavam a estrada, de oferendas a Cibele, a Deusa Mãe, simbolizando a fertilidade da natureza. Sepultavam-se os nobres romanos ao longo da via, cada lápide e mausoléu assinala  o descanso final de um patrício ou família. Passamos nas Catacumbas de São Calisto onde foram sepultados os primeiros papas. Percorrer a Via é como percorrer a história do império Romano.

As alamedas de terra ladeadas de ciprestes que levam a uma villa de tijolos vermelhos ainda existem. Os prados adjacentes estão cuidados. Não há espécies exóticas. A intervenção humana manteve as similitudes. Fazer estes quilómetros foi fascinante, um mergulho na história e num tempo diferente, sentindo o privilégio de estar em contacto e ver a natureza  como era há 2000 anos atrás, ouvindo os mesmos sons das cigarras, tendo o mesmo calor  e refrescando-me na mesma água fresca das fontes do caminho. 

Eugénio de Andrade escreveu um curto poema, "Roma",   dedicado à Via Appia. Do livro Escrita da Terra, ei-lo:

Era no Verão ao fim da tarde, 

como Adriano ou Virgílio ou Marco Aurélio 

entrava em Roma pela via Ápia

e por Antínoo e todo o amor da terra

juro que vi a luz tornar-se pedra


Tal como Eugénio de Andrade, os imperadores Romanos, e numa quente tarde de verão, também hoje entrei em Roma pela via Appia. 



Entrada numa Villa 



















sábado, 30 de julho de 2022

A Arte em Roma

Colunata de Bernini em São Pedro 

O Barroco marca a fisionomia da cidade. O Séc. XVII conjugou a opulência e a riqueza papal com o talento único de artistas capazes de, com a sua criatividade, talento e dinamismo, alterar e moldar definitivamente a face de Roma. O mais destacado foi Bernini (1598 – 1680). As suas obras são visíveis gratuitamente no museu aberto que é a cidade dos papas (a fonte central da Piazza Navona, a colunata de São Pedro, a igreja de Sant`Andrea al Quirinale, a estátua de Daniel em Santa Maria del Popolo). O estilo  caracteriza-se pela exuberância e o exagero, ao mesmo tempo demonstra  uma leveza e graciosidade criadas em   materiais como o mármore, através de rendilhados, dobras e pregas que só os artistas prodigiosos conseguem.

O Museu do Vaticano é visitado diariamente por milhares de pessoas. É uma experiência avassaladora e impossível de abarcar, tamanha a grandiosidade e variedade de artistas, obras e épocas expostas. Ou se é um grande apreciador de arte, conhece-se exatamente o que se quer ver e demora-se na observação, sendo necessários muitos dias e regressos. Ou então passa - se a correr pelas obras, como foi o meu caso e o da maioria dos visitantes. Vê-se sem conhecer. A fruição necessita de silêncio, tempo e conhecimento, algo pouco compatível com o turismo de massas. No entanto, estive sentado alguns minutos  na capela Sistina a olhar a abóbada e as paredes, noutras salas  vi uma Pieta  de Van Gogh - não fazia ideia que havia uma Pieta de Van Gogh! - Jesus Cristo é um autorretrato do pintor; observei a quietude dos objetos nas naturezas mortas de Giorgio Morandi. Tudo o resto parece trivial, o que é um paradoxo tratando-se de gigantes italianos que nem vale a pena dizer quem são. É como olhar para uma constelação de estrelas numa noite de Verão, são tantas.  

A Sala  dos Mapas empolgou. Um papa louco por geografia ordenou a pintura das cartas geográficas de Itália, com metros quadrados de área, nas paredes. Não há estradas e linhas de comboio, apenas os nomes de cidades isoladas umas das outras no cimo dos montes, linhas e manchas azuis que significam  rios e Lagos. O resto são  lugares a verde, sem humanos, ocupados por bestas, que causavam superstição e medo. Há uma sensação de antiguidade e de quietude, de um tempo em que o planeta era habitado por povos desconhecidos. Lembrei-me do Senhor dos Anéis, de combates épicos,  de mitos. O museu é tributário da loucura e excentricidade de sumos pontífices. Quem se lembrou de decorar a abóbada da capela e as paredes dos aposentos privados com frescos?

Georgio Morandi, Natureza-morta 

Van Gogh, Pieta

Museu do Vaticano, Sala dos Mapas

Museu do Vaticano, Sala dos Mapas

Museu do Vaticano, Sala dos Mapas

Museu do Vaticano 


Bernini, Fonte do Tritão, Piazza Bernini


Bernini, Fonte dos 4 rios, Piazza Navona 





Bernini no MV






Pier Paolo Pasolini na Piazza del Popolo

 

Piazza del Popolo

O Caffé Rosati, na Piazza del Populo, foi frequentado por Pier Paolo Pasolini nos anos 60 e 70 do século XX. Uma fotografia icónica mostra-o de gravata, como era habitual nele. Está na casa dos trinta, de pose elegante. As canecas  de água e a chávena do café estão na mesa. Outro homem com ele. A luz de néon brilha por trás. Vê - se o espaldar rendilhado das cadeiras livres, os empregados de mesa de fato branco, imaculado, atentos aos clientes. Estão bem vestidos, "à anos sessenta", convencionalmente. Estar na esplanada é um cerimonial, vive-se a indolência  das noites cálidas de verão, bebendo, conversando, fazendo parte da vida que também desfila na praça. Pasolini olha o interlocutor. 

Realizou a trilogia “Os contos de Canterbury”, “As Mil e Uma Noites” e “Decameron”. Neste último a igreja é satirizada, os padres e as freiras são lúbricos, há salteadores de túmulos e velhos decrépitos encornados. Pasolini não se coibiu de retratar as personagens tal como seriam na idade média, sem subterfúgios de maquilhagem, mostrando  o corpo nu, as  imperfeições e expressões grotescas, com uma honestidade tremenda, de que resultou um filme maravilhoso, humano, comovente e bem-disposto. Foi filmado em cidades e vilas medievais italianas, conferindo-lhe uma autenticidade próxima da realidade. O último filme que fez foi “Salo, ou os 120 dias de Sodoma e Gomorra”, muito diferente dos anteriores, perturbador e inquietante. A ação passa-se num palácio em Salo, localidade no norte de Itália, nos últimos dias da segunda guerra mundial. O fascismo acaba de ser derrubado, exceto aqui onde um grupo de pessoas é mantida refém. Há cenas de coprofagia. 

Pasolini quis transmitir a mensagem de que, depois da segunda guerra mundial, a arte já não tinha mais nada a dizer, ao ser incapaz de evitar uma tragédia humana como aquela. As críticas que lhe faziam de nada valiam perante isso. É como se disse-se:  

"Não me digam que ficam chocados com o meu filme por verem pessoas a comer merda, isso não é nada comparado com a imoralidade e a destruição da guerra."

Morreu em 1975, assassinado por um prostituto com quem tinha jantado horas antes. Atropelado  várias vezes numa praia em Ostia, arredores de Roma. A morte trágica e violenta, pouco depois de ter concluído o seu filme mais escandaloso e perturbador, contribuiu para alimentar a fama de artista marginal e maldito  que adquiriu ao longo da vida. 

Um filme sobre os seus últimos dias é de  Abel  Ferrara, com Willem Defoe no papel de Pasolini. 

Estando em Roma compreende-se por que motivo Itália deu ao mundo filmes e realizadores tão extraordinários como “Amacord” (Federico Fellini); “Feios, Porcos e Maus” (Ettore Scola) ou “A Grande Beleza” (Paolo Sorrentino). Nem todos se passam na cidade, mas há em comum o exagero intencional na interpretação das personagens, de lugares e de cenas que se tornam excessivas e bizarras. Os filmes levam o espetador ao deslumbramento pelo exagero das situações, como se a vida fosse vivida dentro de um sonho. Uma cidade ou um país com tantas camadas de história que coabitam e se sobrepõem cria o estado de espírito que predispõe à loucura e à euforia. O contacto direto com a amálgama de vestígios magnificentes e burlescos, a loucura de papas e imperadores egocêntricos que deixaram a sua marca, fazem relativizar tudo e encarar  a vida  como um sonho. Esta é a essência de alguns grandes filmes e mestres italianos.

PPP no Rosati

O Rosati, hoje 

Roma Vista dos jardins da Villa Borghese, ali próximo 




sexta-feira, 29 de julho de 2022

Coliseu de Roma


 

O fluxo de bens  em Roma, a cidade Eterna, era abundante: reféns de guerra, ouro da península Ibérica, joias, minerais, cereais. Só com mão de ferro e um exército poderoso foi possível construir monumentos colossais, manter a existência de milhares de escravos e um sistema político com profundas desigualdades sociais. 

Eram seguramente outro tipo de pessoas. Viviam para gáudio do povo Romano, exibidos nas arenas, lutando entre si como gladiadores, ou defrontando animais. São sobejamente conhecidos os filmes de Hollywood que retratam a época. No filme "Quo Vadis" , os Cristãos ficam cercados por feras no coliseu, o povo em delírio aplaude e vibra –  Panis et Circenses.

Ridley Scott retrata a história do patricio oriundo da Hispânia, interpretado por Russell Crowe, que, ao  cair nas desgraças do imperador Cómodo, torna-se  gladiador e  acaba na arena a lutar  heroicamente contra animais e homens - um dos momentos  mais memoráveis do  filme "Gladiator". 

Os primeiros cristãos ultrapassaram os traumas da perseguição e dos suplício acreditando que a intervenção divina iria destruir a velha ordem, dominada pela imoralidade do  império pagão. O texto apócrifo do Apocalipse de São João, o último do Novo testamento, escrito pouco depois da construção do coliseu (72 DC), alimentou a fé no início da nova ordem. O velho mundo seria destruído e sobre as suas cinzas surgiria a felicidade dos eleitos, dos que acreditavam na revelação de Jesus Cristo. 

Assuntos mais mundanos

O passe de 24 horas custa 7€. Preferi comprar o cartão BIT: 1,5€. Válido 100 minutos  a contar da passagem na primeira catraca, no metro (não se pode mudar de linha), elétrico e autocarro. Muito barato. Roma é uma cidade que deve ser desfrutada caminhando. Hoje gastei apenas 3€ a viajar pela cidade (1,5€ do aeroporto de Ciampino ao centro da cidade e mais 1,5 depois de ter caminhado bastante do Coliseu à Piazza Navona, no regresso ao Hotel). 

Deve-se contar com um valor extra ao preço dos artigos no menu dos restaurantes. Paga - se  taxa pelo serviço de mesa. 

A cidade  deixa-nos boquiabertos, depois de julgar que não há mais nada para ver, surgem outros lugares incríveis. Aos olhos de um erudito não faltam assuntos para contar e pesquisar, aos de um simples turista resta apenas o deslumbramento, a falta de palavras e as visitas mais ou menos previsíveis aos monumentos mais mediáticos e massificados. E tirar imensas fotografias. 

O  BIT 

Teatro di Marcello


Circo Massimo
 
Foro Romano


Arco de Constantino e  Coliseu


Termas de Caracalla