sábado, 8 de abril de 2023

Deambulando por Valladolid



Nas paredes da igreja de Santa Ana e São Joaquim estão expostos quadros de Santos, dois deles pintados por Francisco Goya. Entramos, principalmente, para os ver. De fundo sombrio, cores esbatidas, faces realçadas pelo halo luminoso, ao estilo do autor. A igreja é arquitetonicamente modesta, pequena e despojada, pouco interessante numa cidade com muito mais para ver.


A Plaza de Zorrilla tem uma certa  imponência, conferida pela  fachada do museu da cavalaria, contígua a um dos lados. No pórtico, o mote:

"Todo Por La Patria."

As torres simétricas  parecem duas sentinelas vigiando a praça. Sente-se a exaltação da guerra e o orgulho militar. Valladolid é a capital da região de Castilla-y-Leon, berço da expansão espanhola na Europa e no mundo,   apoiada pelo fervor religioso dos reis e imperadores católicos, muito homenageados na toponímia local.

A Igreja, o Estado e o Exército: a trilogia que fez a história do império e continua a marcar o carácter cultural do país.

O mosteiro dos Agostinhos Filipinos, do outro lado do Campo Grande, é igualmente imponente. Alberga o Museu do Oriente (não é só Lisboa que tem o seu).

Da praça pública partem  avenidas retilíneas e largas. Os portões abertos do jardim do Campo Grande mostram uma alameda arborizada que o atravessa, cenário idílico e aprazível no meio da cidade. Lá dentro, um lago com um barco a remos, patinhos, faisões deambulando pela relva, aves engaioladas, sombras, bancos de madeira. Famílias com crianças.


Em direção à Plaza de España encontramos a  Casa de Cervantes,  habitação alugada pelo escritor no início do século XVII, para si, as duas  irmãs, a filha, a sobrinha e a criada, um homem entre  cinco mulheres. Aqui preparou a edição da sua monumental obra,  D. Quixote de la Mancha. Nas paredes,  citações   de outros grandes escritores sobre o livro e a personagem. As aventuras do cavaleiro da triste figura continuam a comover leitores de todo o mundo. Livro  genial que faz rir, sonhar, chorar. Não pensem que é um livro maçudo, apesar das seus dois volumes de  700 páginas cada, na tradução do Aquilino Ribeiro. As descrições são muito visuais e cinematográficas. As onomatopeias descrevem os ruídos nas abundantes cenas de pancadaria em que o herói constantemente se envolve. 

Pela hora do almoço seguimos em direção à catedral, as esplanadas estavam repletas  de gente a tapear con su copa de vino en la mesa. Em Roma sê romano e nós fizemos a mesma coisa. Sentamo-nos numa esplanada  da plaza Mayor, comendo pinchos e bocadillos, acompanhados com vinho branco de Valduero

Reparamos num  fulano  segurando na mão um guarda-chuva vermelho, fechado, junto da estátua de Pedro Ansúrez e algumas pessoas com ele. Era uma visita guiada à cidade. Um free walking tour, em Castelhano, que estava a começar. Perguntei se nos podíamos juntar. Sim. Apontou o meu nome no telemóvel e nas duas horas seguintes acompanhamos o grupo por algumas  ruas e locais históricos. Entendi pouca coisa, o jovem guia falava muito rápido e não criava empatia. Os espanhóis  que o acompanhavam não pareciam particularmente entusiasmados, mesmo quando  comentava um facto mais  curioso e divertido que os fazia rir e que a mim escapava o sentido. Descreveu-nos a história da Fonte de Agua Dorada, do Passeo de Gutierrez (com as suas galerias chiques ao estilo de Milão), da calle serpe (de serpente), pôs - nos a olhar para o chão, a ver a estilização do réptil com   30 metros de comprimento. 

Paramos em algumas igrejas e conventos. 

Entramos no palácio de Pimentel, onde nasceu o rei D. Felipe II. No átrio, os painéis coloridos de azulejo retratam episódios da sua vida, idênticos aos da estação de São Bento no Porto, contudo num local mais discreto. O guia  comparou-os aos de "Oporto". 

Terminamos no museu nacional de escultura a observar detalhes do gótico tardio na moldura do portão. 

Quem seriam aqueles três homens barbudos: estariam nus e seriam homens selvagens muito peludos, 

Ou aqueles pelos seriam apenas  as malhas finas metálicas  dos gibões que vestiam? 

A mim, pareciam-me pijamas. 


Por recomendação do guia, visitamos o museu. Algumas  vezes ouvi-o dizer “é um Garcia Fernandez“, “um Berruguete", "um Juni", referindo-se a escultores famosos de santos. 

O Museu é rico em estatuária e pintura religiosa medieval, renascentista e barroca. São profusos os detalhes e o realismo com que foram trabalhados os corpos dos santos, o relevo dos músculos, o esgar de sofrimento na cara. Fiquei impressionado. Valeu a pena a visita, ainda por cima gratuita por ser sábado. 

Depois disso fomos para a iglesia de Santa Ana e São Joaquim assistir à procissão da confraria. As mulheres vestidas de preto com lenço e mantilha, geralmente elegantes, muito espanholitas  Os miúdos com a batina e o incenseiro espalhando o fumo e o cheiro nas ruas. Os confrades com o capirote. Música solene, "Miserere Mei, Deus", de Allegri. A escultura de Cristo deitado no leito da morte. 


Vimos outra procissão noutra zona, mais intensa ainda. Pela primeira vez, assistimos ao transporte do andor, que pesa  centenas de quilos, nos ombros de dezenas de homens. Baloiçava de um lado para o outro com o movimento e o esforço dos confrades, dando mais dramatismo ao momento. 

Do sagrado passamos ao profano. Tinham-nos recomendado a taperia "La tasquita". Sempre que passávamos na entrada víamos fila, desta vez  era mais pequena e resolvemos arriscar. Esperamos pouco tempo e de facto as tapas que  comemos eram muito saborosas. Não apontei os nomes. 

Considero que não é caro comer em Espanha, se formos num modo mais informal, sem estar a pensar "à Português" e em  ter uma refeição completa,  à moda de Portugal. Assim seria caro. Escolhendo tapas variadas, partilhadas pelo grupo, pode-se comer bem sem pagar muito.


As pinturas de Goya no painel informativo

Museu de La Caballeria

Paragem de autobus


Campo Grande

Exterior da Casa de Cervantes

Pátio interior da casa
Outros detalhes da Casa de Cervantes







Catedral, da rua Cascajares








Museu Nacional de Escultura











Plaza de Zorrilla e Museu de la Caballeria






Museu Nacional de Escultura

"a mim, pareciam-me pijamas..."

Palácio de Pimentel

Estátua de Cervantes, universidade de Valladolid

Catedral

Estátua de Pedro Ansúrez, fundador da cidade. Plaza Mayor

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Sexta-feira Santa em Valladolid



Entramos na cidade, circulamos pelas largas avenidas sem trânsito, limpas e organizadas. Os edifícios modernos harmonizam com outros mais antigos, denota-se um urbanismo cuidado, com os espaços verdes e os parques de lazer a quebrar a monotonia do cimento e do alcatrão, dando um ar  acolhedor e agradável à cidade. A impressão de que é um sítio onde se vive bem. 

É sexta-feira santa, ninguém trabalha. Por outro lado talvez seja ainda a hora de la siesta. Esta pacatez e silêncio com que a cidade nos recebe é, porventura, ilusória. Noutros dias será mais buliçosa. 

Estacionamos e seguimos a pé para o outro lado do rio Pisuerga, em direcção à Plaza Mayor. Não há trânsito nas ruas, mas os estacionamentos estão lotados. Vários grupos seguem para o centro. Famílias espanholas com elementos  de todas as gerações, dos avós aos bebés transportados nos carrinhos. Apesar do calor vão agasalhados. A amplitude térmica é grande, as temperaturas arrefecem acentuadamente ao fim do dia. E será uma noite longa. A procissão começa  às 19:30 e depois da meia noite haverá outra cerimónia religiosa noutras ruas da cidade. 

O trânsito está cortado nas ruas adjacentes ao centro histórico. 

Entramos na iglesia del Santo Entierro, os confrades vendem licores e bolos caseiros. Na iglesia de Santiago um enorme andor com três Jesus Cristos crucificados, padres, acólitos,  a banda filarmónica da confraria e miúdos de traje embuçado, preparam-se para iniciar a procissão. O centro da plaza está vedado com grades, só entram os convidados especiais ou quem pagou, para assistir confortavelmente sentado nas bancadas, ao desfile das 20 confrarias da cidade. Fomos circundado o perímetro, procurando o melhor lugar para ver. 

As vinte confrarias da Procession General de la Sagrada Pasion del Redentor representam por ordem  cronológica 33 episódios da paixão de Cristo, desde a última  ceia até ao enterro no santo sepulcro. Os andores  são peças valiosas, construídas a partir do século XVI, denotam a religiosidade e a importância da semana santa na cultura espanhola. 

Numa  das confrarias iniciais desfilam o que parecem ser ex-combatentes, homens idosos de ar sério e marcial, marcham ao som de tambores. Usam uma boina com um capachinho a lembrar os falangistas, ao seu lado vão padres com as batinas, os cirios e as relíquias. Na guerra civil espanhola a igreja e o exército apoiaram o golpe de estado nacionalista do general Franco. O Vox, partido da extrema-direita, tem  20% de votantes. Apesar de ser um país moderno e liberal, é igualmente conservador. É admirável a coexistência destas duas Espanhas, duas forças e ideologias altamente contrastantes que tiveram o seu momento trágico nos anos de 1936-1939. Observando esta intensa religiosidade e união entre a igreja e o exército, parece-me que o que acontececeu nesses anos era inevitável. O sangue dos padres, da Igreja, de milhões de espanhóis católicos devotos, deve ter gelado  com um governo de esquerda, que para eles devia representar o anticristo.

Fomos tapear e regressamos para assistir às últimas confrarias.