sábado, 30 de abril de 2022

Entre os Rios Tinto e Torto

 

O Ponto de encontro foi a marina do Freixo. Tivemos novamente a presença dos professores Ricardo Jorge Pinto e José Fernandes que nos falaram de uma parte da história e da geografia humana da zona oriental do Porto.  A professora Isabel Fernandes, diretora do Centro de Formação do Fapas,  deu alguns lamirés de geologia e biologia em contexto de campo.

Fica registada uma parte pequena  do muito que nos foi dito. Formação  destinada a professores, e não só,   que enriqueceu   o nosso conhecimento da freguesia de Campanhã e  surpreendeu  com a passagem  por  recantos da cidade que pareciam uma  aldeia recôndita do interior.   

A marina foi construída na foz do rio Torto,  na margem direita do  Douro, lado com a corrente mais forte  e vulnerável a cheias,  em contraste com a margem esquerda,   onde se formou uma praia natural, o “Areinho”, representando  mau urbanismo e gestão do território. 

O Palácio do Freixo é da autoria de Nicolau Nasoni, século XVIII, mandado construir por ordem da família Távora e Noronha, como quinta de veraneio fora da cidade. Esteve abandonado, foi incendiado e posteriormente vendido à Câmara Municipal.  O descendente da família, o arquiteto Fernando Távora, projetou o plano de recuperação no fim do século XX.   O município concessionou-o ao grupo Pestana, que fez dele um restaurante/ bar de luxo e apoio ao hotel de cinco estrelas em que foi reconvertida a fábrica de moagem ao lado.  

A zona oriental  sofreu os efeitos da industrialização do século XIX, o rio era um local privilegiado de escoamento por barco das fábricas locais (sabões, moagens, cerâmica) e que, posteriormente, se reconverteram em hotéis e apartamentos/ condomínios privados de gosto duvidoso, em leito de cheia e reserva natural que, apesar disso, foram licenciados.

Cruzámo-nos com a senhora Isaura, a proprietária da quinta de Allen, desenhada no século XVIII por um discípulo de Nasoni para o seu antepassado, o comerciante Inglês, João Allen. O vapor “Porto” naufragou em 1852 quando regressava de Lisboa. Um dos passageiros era o filho mais velho,  Alfredo, que viajava com as duas filhas. As pessoas assistiam em terra  impotentes ao drama que se desenrolava, os   passageiros tentavam chegar remando os  salva-vidas no meio das ondas alterosas da tempestade.  Alfredo tudo fez para as salvar. Morreram os três. Numa das paredes da quinta está embutida uma peça do barco como recordação desse episódio.  

Seguimos pela marginal  do rio até ao passadiço onde começa o concelho de Gondomar, separação que mostra o “desencontro” dos municípios: de um lado, o Porto, em que a marginal termina numa estrada poeirenta com passagem de carros,  do outro, Gondomar, em que continua por passadiço pedonal sobre o rio. O José Fernandes falou de conflitos:  as motas de água e os barcos de recreio que poluem a água, emitem ruídos e ondulação que  perturba as margens; as praias fluviais, os pescadores e os hotéis que apreciam o recato. Está ausente uma estrutura unificadora e mentalidade que zele por um interesse comum mais elevado. O exemplo é bastante característico do  país, em que geralmente cada um puxa para o seu lado.

A ponte do rio Torto fica situada na  estrada abandonada que foi antigamente uma das ligações do Porto a Gondomar - a estrada nacional 108 só foi projetada e construída no anos 40 do século passado pelo ministro das obras públicas do Estado Novo, Duarte Pacheco.  A partir deste ponto o Porto começa a parecer uma aldeia.  O rio não se vê, está escondido por uma vegetação densa e anárquica que provavelmente esconde lixo atirado à água. É um sítio de fronteira, esquecido pelos dois municípios.

Subimos a rua da Granja num vale encaixado provocado pela erosão dos rios Tinto e Torto. Um lavrador vai sachando a terra nas margens. O ambiente é totalmente diferente, não há turismo, as pessoas são mais desconfiadas, é como se estivéssemos num sítio muito distante.  Olham-nos furtivamente. Chegamos ao bairro do Lagarteiro, que dizem ser “problemático”. Nele foram alojadas famílias de baixos rendimentos. As ruas estão limpas. Os prédios,  embora monótonos e densos, tem as paredes cuidadas. Passam por nós famílias ciganas. No ringue os miúdos jogam futebol e metem-se connosco.   Logo a seguir fica o parque oriental da cidade,  atravessado pelo rio Tinto. Foi desenhado pelo arquiteto paisagista Sidónio Pardal. Imita o rural, junta o autóctone e o exótico, tem um conceito “multiusos”, segundo o qual  os visitantes apropriam-se dele como entenderem, não há espaços específicos para crianças e atividades desportivas, como em muitos parques. Um caso de sucesso frequentado por todos os grupos sociais. Liga a rotunda do Freixo ao Parque Urbano de Rio Tinto, numa longa extensão verde percorrida  por ciclistas e caminhantes.

Esteva

Parque Oriental

Ponte medieval do Rego Lameiro



"Chegamos ao bairro do Lagarteiro, que dizem ser “problemático”. Nele foram alojadas famílias de baixos rendimentos. As ruas estão limpas. Os prédios,  embora monótonos e densos, tem as paredes cuidadas".

"A partir deste ponto o Porto começa a parecer uma aldeia". 


"Subimos a rua da Granja num vale encaixado provocado pela erosão dos rios Tinto e Torto. Um lavrador vai sachando a terra nas margens. O ambiente é totalmente diferente, não há turismo, as pessoas são mais desconfiadas, é como se estivéssemos num sítio muito distante".

Quinta de Allen: "Numa das paredes da quinta está embutida uma peça do barco como recordação desse episódio".  

"A zona oriental  sofreu os efeitos da industrialização do século XIX, o rio era um local privilegiado de escoamento por barco das fábricas locais (sabões, moagens, cerâmica) e que, posteriormente, se reconverteram em hotéis e apartamentos/ condomínios privados de gosto duvidoso"

"Seguimos pela marginal descaracterizada do rio até ao passadiço onde começa o concelho de Gondomar, uma separação que mostra o “desencontro” dos municípios"

"O Palácio do Freixo é da autoria de Nicolau Nasoni, século XVIII, mandado construir por ordem da família Távora e Noronha, como quinta de veraneio fora da cidade do Porto. Esteve abandonado, foi incendiado e posteriormente vendido à Câmara Municipal do Porto.  O descendente da família, o arquiteto Fernando Távora, projetou o plano de recuperação no fim do século XX.   O município concessionou-o ao grupo Pestana, que fez dele um restaurante/ bar de luxo e apoio ao hotel de cinco estrelas em que foi reconvertida a  fábrica de moagem ao lado."


Quinta da Revolta


sábado, 23 de abril de 2022

Caminhando na Foz Velha


Rua do Padre Luís Cabral


O ponto de encontro da primeira saída de campo da formação creditada pelo FAPAS foi o Jardim do Cálem, na foz da Ribeira do Lordelo, ou da Granja, tendo como formadores dois investigadores, seguramente das pessoas mais entendidas em história e geografia do Porto, o José Fernandes e o Ricardo Jorge Pinto, “Um grande conhecedor e apaixonado pelo porto do século XIX”, assim apresentado pelo primeiro.  Ambos tiveram o dom de nos transportar ao Porto de outros tempos, relacionando a hidrologia e o relevo dos locais que visitamos   com a respetiva evolução demográfica e económica, introduzindo detalhes e acontecimentos históricos, alguns verdadeiramente grandiosos e trágicos, que me fascinaram e anotei.

Tentarei resumir o que ouvi e talvez fantasiar um pouco a partir deles. Uma viagem é sempre uma tentativa de imersão, real e emocional no local, para a qual a literatura dos autores que o conheceram contribui.  Foi inevitável referir Camilo Castelo Branco, o seu livro “Cenas da Foz”, assim como Raúl Brandão, “neto e filho de pescadores”, que aqui nasceu e viveu.  As cartas, mapas geográficos e fotografias de diferentes períodos   que nos mostraram, as referências a outras personalidades da cidade, que através dos seus feitos a marcaram de alguma forma,  contribuíram para esta viagem “imersiva” (um termo muito na moda, agora).

Realizamos o seguinte trajeto,  para repetir mais vezes explorando outros caminhos e  desvios na zona: Foz da ribeira da Granja junto ao jardim do Cálem, subida pelas Ruas da Senhora da Ajuda,  Gaspar Correia e Paulo da Gama até ao parque da Pasteleira, descida pela rua Padre Luís Cabral até  ao “centro histórico” da Foz Velha – sim, a Foz tem um centro histórico e já foi concelho, mas lá irei – passagem pela ruas de Cadouços,  Largo Pinheiro Torres de Meireles,  Senhora da Luz e Alto da Vila, regresso ao Jardim do Calém pelo Passeio Alegre e Cantareira. Cerca de 5 km.

A ribeira da Lordelo é a maior do Porto, nasce em Paramos e desagua no rio Douro. Atualmente está quase toda entubada, coberta de cimento e estradas. Era por esta via aquática que no século XIX, o século da industrialização, corriam os detritos das fábricas de lanifícios do Lordelo e de Curtumes de Bessa Leite. Um cenário pouco aprazível e malcheiroso. A ribeira está despoluída e é um ponto de paragem para observar as aves que deambulam na sua foz e na “ilha” do Frade, o banco de areia e rochas em frente.   Conta a lenda que o clérigo foi humilhado neste local por uma mulher de quem gostava, deixando-o à espera até ficar isolado pela maré cheia.

A Pasteleira era designada nos séculos passados pelo “sítio do Pasteleiro”. O jardim foi construído no início deste século, num local onde sempre existiram pinheiros, os “pinhais da Foz”, referidos em diversa literatura, aludindo a um sítio ermo e despovoado.  Tem um relvado bem cuidado, trilhos, um lago, muitos pinheiros e sobreiros.  Espaço agradável, rodeado de bairros sociais e vivendas  onde coexistem extratos sociais diversos, resultantes de um urbanismo que permitiu a construção de diferentes tipologias habitacionais, característica realçada com um certo orgulho pelo José Fernandes,  tornando a cidade num caso raro a nível mundial.  O Reservatório pertence ao Museu da Cidade, possui, no exterior, dois chafarizes de três patamares –  no de cima, uma torneira destinada ao consumo de água pelos humanos,  nos dois mais baixos duas pias para dar de beber aos animais – colocados pela Sociedade Protetora, no século XIX -, demonstrando que a preocupação com o bem estar animal não é exclusiva destes novos tempos.   A este largo ocorriam vendedores com os seus animais domésticos, feirando e regateando artigos. Um local que já foi buliçoso e caótico, contrastando com a atual mudez e limpeza. 

A rua do Padre Luís Cabral foi a principal via de ligação do  Porto medieval ao arrabalde da Foz, o chamado “caminho velho”, por oposição ao “caminho novo”. Este último ficou completo no ano de 1860, após a demolição de uma parte da escarpa da Arrábida, que permitiu a ligação pela margem do rio. Desta rua radiavam caminhos importantes   para Bouças (atual Matosinhos), pela estrada de  Serralves e da Vilarinha  e para as localidades piscatórias e de construção naval nas margens do rio.

Próximo da capela da Nossa Senhora da Conceição, no cruzamento com a rua Diogo Botelho e o que resta do aqueduto de Montebelo,  o Jorge Pinto mostrou-nos uma fotografia de cerca  1850:  uma ruela passa estreita ao lado da capela,   parece isolada e distante. Uma imagem bucólica da atual rua. Olhando no mesmo enquadramento ainda se vislumbram alguns desses vestígios na estrada de paralelos e no muro de granito. O aqueduto transportava água de uma nascente aqui próxima até à igreja de São João.

Seguimos até ao largo do Rio da Bica, na “parte alta” da Foz, onde se realizava antigamente uma feira ao pé das alminhas. A pesca e a agricultura foram durante séculos as principais atividades económicas, sustentadas pelos abundantes recursos de água doce e salgada. 

Uma gentrificação inicial ocorreu no século XIX, quando os comerciantes ingleses do Porto,  por motivos higiénicos,  resolveram estar mais próximos do mar, começando a construir vivendas nas redondezas, seguidos pelos burgueses Portugueses.   Apareceram fachadas neo-revivalistas góticas e medievais, características do Romantismo, os  telhados de duas águas, a imitar os chalés Suíços e as termas  de Baden Baden, que frequentavam. A Foz denota essa fusão de influências culturais e de movimentos sociais que foram afastando os pescadores e agricultores originais para  periferias como a Cantareira. O Jorge Pinto foi-nos chamando à atenção para os detalhes arquitetónicos, a profusão e a mistura de fachadas visíveis na mesma rua. O  José Fernandes para o pastiche, a imitação de estilos,  e a gentrificação do lugar.

Ainda na rua do Padre Luís Cabral paramos na antiga Câmara Municipal do Concelho da Foz do Douro. Teve uma existência breve, de 1834 a 1836. Antes de ser concelho foi  couto, território administrado pelo clero,  dos monges Beneditinos de Santo Tirso. O Porto tinha uma história tensa e conflituosa com a igreja. Habitantes da cidade, acusados de liberalismo, foram enforcados na praça da liberdade com o clero a assistir das varandas do convento dos Loios, a beber vinho do porto e a comer pão de ló. Não bastando, foram seguidamente decapitados e as cabeças espetadas em postes nas ruas onde moravam.  Após a vitória do movimento Liberal na guerra civil, todos os bens do clero foram expropriados pelo estado e a Foz do Douro tornou-se município independente, passando pouco depois para a administração do Porto. O convento dos Loios foi vendido em hasta pública e comprado por um burguês de apelido Cardoso, cujas filhas herdeiras, as “Cardosas”, estão na origem do nome atual – hoje, o hotel intercontinental.

A Foz mantem o caráter individual que a caracterizou durante séculos, pela sua distância em relação ao núcleo original da cidade e por ter sido uma entidade quase sempre administrativamente autónoma.  Ainda hoje se diz “ir à Foz”, como se tratasse de uma outra cidade.  

Jardim do Cálem

Observatório de Aves do FAPAS, foz da ribeira da Granja


Foz da Ribeira da Granja e a "ilha" do Frade. 

Conta a lenda que o clérigo foi humilhado neste local por uma mulher de quem gostava, deixando-o à espera até ficar isolado pela maré cheia. 


A Pasteleira era designada nos séculos passados pelo “sítio do Pasteleiro”

Hoje tem um relvado bem cuidado, trilhos, um lago, muitos pinheiros e sobreiros


A este largo ocorriam vendedores com os seus animais domésticos, feirando e regateando artigos. Um local que já foi buliçoso e caótico, contrastando com a atual mudez e frieza.  


O Reservatório pertence ao Museu da Cidade, possui, no exterior, dois chafarizes de três patamares –  no de cima, uma torneira destinada ao consumo de água pelos humanos,  nos dois mais baixos duas pias para dar de beber aos animais – colocados pela Sociedade Protetora do Porto, no século XIX. Neste período já existiam preocupações com o bem-estar dos animais e certos estratos da sociedade Portuense revelavam ideais muito progressistas.

A rua do Padre Luís Cabral foi a principal via de ligação do  Porto medieval ao arrabalde da Foz

uma ruela passa estreita ao lado da capela,   parece isolada e distante.  Olhando no mesmo enquadramento, ainda se vislumbram alguns desses vestígios

Seguimos pela estrada de paralelos até ao largo do Rio da Bica, na parte alta da vila, onde se realizava a feira.  

O Jorge Pinto foi-nos chamando à atenção para os detalhes arquitetónicos, a profusão e a mistura de fachadas visíveis na mesma rua. 

O Jardim do Passeio do Passeio Alegre foi construído num aterro, sobre o rio Douro. Construído a partir de um muro, inicialmente projetado pelo engenheiro militar Reginaldo Oudinot, no fim do séc. XVIII. Inaugurado em 1888.

Os obeliscos são da autoria de Nicolau Nasoni. Transferidos da quinta da prelada para o jardim do Passeio Alegre.

O chalet Suisso tem no topo do telhado a escultura de um carneiro que representa o apelido do seu primeiro proprietário. 

O rio Douro junto ao lugar da Cantareira

Cais da Cantareira





resultantes de um urbanismo que permitiu a construção na mesma zona de diferentes tipologias de habitação, destinadas aos vários grupos sociais