quinta-feira, 6 de julho de 2023

Trilho dos Amiais - PR6 Sever do Vouga



A bengala estava pousada nas ervas onde a água do regato se desviava em direção ao milheiral. Ao fundo do trilho estreito, entre o murete e as espigas altas, a senhora idosa, recurvada com a enxada na mão, construía a pequena levada que irrigava o campo.  Perguntou: “não viu por aí uma bengala?”, “sim, está aqui pousada. Quer que a leve?”.

A água descia rumorejante, vivificante, pela picada de terra batida e de ervas ressequidas, ao longo da qual a idosa a foi encaminhando com o seu esforço.

Uma octogenária, de bengala e enxada, elevando muretes de terra, encaminhando a água pela levada provisória. Insólito, pelo menos para quem chega da cidade, pouco habituado a ver pessoas a trabalhar nos campos, muito menos idosos de bengala.

Um dos momentos encantadores da caminhada em Couto de Esteves, ocorrido na última localidade, Couto de Baixo, antes de terminar o percurso circular, o PR6 de Sever do Vouga - Trilho dos Amiais. 

Freguesia charmosa, antiga, de casas  de granito recuperadas, convertidas em Alojamento Local e Serviços Culturais. A igreja de Santo Estevão e o pelourinho demonstram a importância que teve no passado. Foi sede de concelho. Hoje é uma localidade pacata de população maioritariamente idosa. Poucos carros e pessoas circulam na calçada cuidada das ruelas, cruzadas por trilhos pedestres, a partir dos quais se podem explorar as encostas montanhosas da serra. 

Nelas correm regatos que desaguam no rio Vouga, aproveitados desde a antiguidade para construir  inúmeros moinhos ao longo das margens, usados para moer os cereais que abundavam nestas terras férteis e prazerosas. Os mais importantes referenciados nas placas do trilho, quase todos devolutos, velhos, escondidos e tomados pela vegetação selvagem. 

Os espigueiros, ou canastros, são outro elemento paisagístico característico, relacionado com a cultura dos cereais. Dispersos pelas aldeias, isolados ou agrupados em eiras comunitárias, de que o melhor exemplo é o conjunto dos Amiais, sete espigueiros recuperados dispostos numa eira solarenga, também acessíveis pelo pequeno passadiço junto ao rio Vouga e com parque de merendas. Outro local aprazível que nos surpreendeu pela  beleza e enquadramento harmonioso com a natureza envolvente.  

Caminhamos por calçadas antigas que ligavam as aldeolas, percorridas quando havia  funeral ou romaria, sinalizadas com alminhas e cruzes de pedra,  entre bosques de pinheiros, eucaliptos, carvalhos, quintais repletos de árvores de fruto e flores em todo o seu esplendor estival.  Natureza prodigiosa de que os habitantes fizeram uso ao longo dos tempos nas suas atividades económicas, com potencial para o desenvolvimento do turismo sustentável, aliado à riqueza histórica e patrimonial da região. Aos poucos,  pessoas com  espírito empreendedor, vão materializando a ideia, recuperando espigueiros, moinhos e casas rústicas para projetos turísticos ou, simplesmente, como segunda habitação. Vimos camas-rede penduradas indolentemente em eiras e varandas com  vistas soberbas sobre a montanha e o rio,  espanta-espíritos nas paredes,  objetos e decorações em sintonia  com a paz, o sossego e o isolamento que encontramos, apelando a estadias demoradas e tranquilas. 

O rio Gresso acompanhou-nos ao longo de partes do trajeto, oferecendo recantos idílicos de águas cristalinas,  correndo em pequenos rápidos sobre seixos  e rochas lisas esculpidas pela corrente,  uma lagoa translúcida onde paramos para relaxar, molhar os pés e mergulhar. Água pura e fria que energizou o corpo para o resto da caminhada e a subida íngreme até ao restaurante Cantinho da Eira, em Couto de Baixo.

As refeições tem de ser marcadas com antecedência. Restaurante familiar gerido pela Dona Alice e o marido, o Sr. José, o simpático casal que confeciona as refeições e sobremesas no forno-a-lenha. São feitas só por encomenda, geralmente vitela de Lafões e leite-creme.  Tudo caseiro. Utilizam ingredientes da terra disponíveis sazonalmente.  No inverno colocam na mesa laranjas deliciosas do seu quintal. Casa rural recuperada, com esplanada na eira e sala de refeições envidraçada.  Espaçosa e confortável. Pratos servidos em louça de barro vidrado artesanal. Guardanapos de algodão, toalha de linho.

A Sandra encomendou por telefone sete vitelas, ressalvando que duas pessoas não comiam carne. O Sr. José admirado: “Não comem carne?! Comem o quê, então?!”.

“Bacalhau!”

“Vem para aqui comer bacalhau?!”

A deliciosa conversa telefónica revela o quão tradicionalista é o Sr. José e o orgulho que coloca na confeção do que de melhor tem a região. Não obstante, o bacalhau estava primoroso. As entradas foram lascas de presunto, broa de milho e redenho. Quem o provou disse que era estaladiço. Pela descrição que fizeram fiquei com a impressão de que provavelmente foi o melhor redenho que comeram até hoje.

Pelourinho de Couto de Esteves

Início do trilho em Couto de Esteves



Rio Gresso


Rio Vouga



Mergulho refrescante na água límpida e fria do rio Gresso






Eira comunitária dos Amiais



Figueira-do-diabo

Redenho

Vitela de Lafões


A simpática Dona Alice, proprietária do restaurante Cantinho da Eira




A  subida final para Couto de Esteves

Altar da igreja de Santo Estevão, Couto de Esteves

Couto de Esteves


sábado, 1 de julho de 2023

São Pedro da Afurada



O acesso à Afurada é mais curto do que julgava. Descemos pela rua do Monte da Luz, de paralelos, invisível a quem passa pela via de acesso à  autoestrada e ao Arrábida Shopping.  A quantidade de carros estacionados nos parques das superfícies retalhistas e as centenas de pessoas que se deslocavam para a festa fazia prever demasiada gente. Assim foi. Via-se uma enorme multidão compacta pelas ruas principais e ruelas do centro da vila. Filas para entrar na casa de banho, nos restaurantes e tasquinhas. Talvez fosse mais fácil nos restaurantes habituais. Não aceitavam mais clientes. No Madureira´s uma senhora marcou lugar às 18h00 para jantar às 21h30.

Não comemos a sardinhada que almejávamos. Iludimos o desconsolo com os biscoitos de amendoim comprados numa barraquinha de doces tradicionais, das poucas que não tinha fila.

As pessoas são gregárias, estão com saudades das festas populares. É uma loucura a quantidade de gente sequiosa de diversão. A pandemia despoletou essa vontade latente.

Não é por acaso que as principais festas populares se comemoram próximas umas das outras e encostadas ao solstício de verão. A celebração do dia mais longo do ano é pagã. Era impossível impedir as comunidades primitivas de celebrar o sol e a noite, rituais animistas entranhados nos ciclos da terra e do homem, em comunhão entre si. A igreja substituiu os velhos ritos de acordo com os seus dogmas.  Foi ardilosa: em vez de os reprimir deu-lhes um novo revestimento, associou-lhes personalidades e eventos da nova religião, emergente na europa.

O Natal celebra-se próximo do solstício de Inverno, a Páscoa do equinócio da primavera e o Dia de Todos os Santos do equinócio do outono. Celebrações cristãs que adquiriram e adotaram rituais que se praticavam anteriormente. Existem estudos sobre o tema, seguramente. Não tenho mais elementos do que estes. Mas faz todo o sentido que assim seja. 

Gosto de pensar nas festividades como um ritual que vem de uma tradição mais antiga e primitiva, mais próxima da loucura e do irracional. De algo que ainda não estava dominado pelos cânones cristãos, que não tinha de ser sancionado por entidades político-religiosas, formatadoras da moralidade e dos costumes.