A bengala estava pousada nas
ervas onde a água do regato se desviava em direção ao milheiral. Ao
fundo do trilho estreito, entre o murete e as espigas altas, a senhora idosa, recurvada
com a enxada na mão, construía a pequena levada que irrigava o campo. Perguntou: “não viu por aí uma bengala?”,
“sim, está aqui pousada. Quer que a leve?”.
A água descia rumorejante,
vivificante, pela picada de terra batida e de ervas ressequidas, ao longo da qual
a idosa a foi encaminhando com o seu esforço.
Uma octogenária, de bengala e
enxada, elevando muretes de terra, encaminhando a água pela levada provisória. Insólito, pelo menos para quem chega da cidade, pouco habituado a ver
pessoas a trabalhar nos campos, muito menos idosos de bengala.
Um dos momentos encantadores da
caminhada em Couto de Esteves, ocorrido na última localidade, Couto de Baixo, antes de terminar o percurso
circular, o PR6 de Sever do Vouga - Trilho dos Amiais.
Freguesia charmosa, antiga, de casas de granito recuperadas, convertidas em Alojamento Local e Serviços Culturais. A igreja de Santo Estevão e o pelourinho demonstram a importância que teve no passado. Foi sede de concelho. Hoje é uma localidade pacata de população maioritariamente idosa. Poucos carros e pessoas circulam na calçada cuidada das ruelas, cruzadas por trilhos pedestres, a partir dos quais se podem explorar as encostas montanhosas da serra.
Nelas correm regatos que desaguam no rio Vouga, aproveitados desde a antiguidade para construir inúmeros moinhos ao longo das margens, usados para moer os cereais que abundavam nestas terras férteis e prazerosas. Os mais importantes referenciados nas placas do trilho, quase todos devolutos, velhos, escondidos e tomados pela vegetação selvagem.
Os espigueiros, ou canastros, são
outro elemento paisagístico característico, relacionado com a cultura dos
cereais. Dispersos pelas aldeias, isolados
ou agrupados em eiras comunitárias, de que o melhor exemplo é o conjunto dos Amiais,
sete espigueiros recuperados dispostos numa eira solarenga, também acessíveis pelo
pequeno passadiço junto ao rio Vouga e com parque de merendas. Outro local aprazível
que nos surpreendeu pela beleza e enquadramento harmonioso com a natureza
envolvente.
Caminhamos por calçadas antigas que ligavam as aldeolas, percorridas quando havia funeral ou romaria, sinalizadas com alminhas e cruzes de pedra, entre bosques de pinheiros, eucaliptos, carvalhos, quintais repletos de árvores de fruto e flores em todo o seu esplendor estival. Natureza prodigiosa de que os habitantes fizeram uso ao longo dos tempos nas suas atividades económicas, com potencial para o desenvolvimento do turismo sustentável, aliado à riqueza histórica e patrimonial da região. Aos poucos, pessoas com espírito empreendedor, vão materializando a ideia, recuperando espigueiros, moinhos e casas rústicas para projetos turísticos ou, simplesmente, como segunda habitação. Vimos camas-rede penduradas indolentemente em eiras e varandas com vistas soberbas sobre a montanha e o rio, espanta-espíritos nas paredes, objetos e decorações em sintonia com a paz, o sossego e o isolamento que encontramos, apelando a estadias demoradas e tranquilas.
O rio Gresso acompanhou-nos ao
longo de partes do trajeto, oferecendo recantos idílicos de águas cristalinas, correndo em pequenos rápidos sobre seixos e rochas lisas esculpidas pela corrente, uma
lagoa translúcida onde paramos para relaxar, molhar os pés e mergulhar. Água pura
e fria que energizou o corpo para o resto da caminhada e a subida íngreme até ao
restaurante Cantinho da Eira, em Couto de Baixo.
As refeições tem de ser marcadas com antecedência. Restaurante familiar gerido pela Dona Alice e o marido, o Sr. José, o simpático casal que confeciona as refeições e sobremesas no forno-a-lenha. São feitas só por encomenda, geralmente vitela de Lafões e leite-creme. Tudo caseiro. Utilizam ingredientes da terra disponíveis sazonalmente. No inverno colocam na mesa laranjas deliciosas do seu quintal. Casa rural recuperada, com esplanada na eira e sala de refeições envidraçada. Espaçosa e confortável. Pratos servidos em louça de barro vidrado artesanal. Guardanapos de algodão, toalha de linho.
A Sandra encomendou por telefone sete
vitelas, ressalvando que duas pessoas não comiam carne. O Sr. José admirado: “Não
comem carne?! Comem o quê, então?!”.
“Bacalhau!”
“Vem para aqui comer bacalhau?!”
A deliciosa conversa
telefónica revela o quão tradicionalista é o Sr. José e o orgulho que coloca na
confeção do que de melhor tem a região. Não obstante, o bacalhau estava primoroso.
As entradas foram lascas de presunto, broa de milho e redenho. Quem o provou disse que era estaladiço. Pela descrição que
fizeram fiquei com a impressão de que provavelmente foi o melhor redenho que
comeram até hoje.
Pelourinho de Couto de Esteves |
Início do trilho em Couto de Esteves |
Rio Gresso |
Rio Vouga |
Mergulho refrescante na água límpida e fria do rio Gresso |
Eira comunitária dos Amiais |
Figueira-do-diabo |
Redenho |
Vitela de Lafões |
A simpática Dona Alice, proprietária do restaurante Cantinho da Eira |
A subida final para Couto de Esteves |
Altar da igreja de Santo Estevão, Couto de Esteves |
Couto de Esteves |
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