sábado, 15 de outubro de 2022

Fojos da Serra de Valongo

Fojo das Pombas

Nos dias frios de Inverno  as neblinas evolavam dos buracos escavados nas encostas da serra. Diziam as gentes de então que eram os cozidos das mouras. Na realidade, trata-se apenas de um simples fenómeno atmosférico: o calor do solo em contacto com o ar frio provoca a condensação da humidade. A serra fica envolvida num ambiente de brumas, propícias ao misticismo. Assim, surgiu mais este mito de mouras encantadas, que cozinhavam escondidas nas entranhas da serra, cujos fumos chegavam cá fora. 

Os inúmeros fojos espalhados na  serra de Valongo são túneis escavados no tempo dos romanos, para oxigenar o interior das minas. Muitos estão sinalizados e vedados por cordas e arames. Outros continuam ocultos entre as silvas e as rochas. É perigoso caminhar fora dos trilhos. Este foi provavelmente o maior complexo mineiro do império romano. "Tratava-se de um sistema produtivo brutal", diz o José Rio Fernandes. Era um sítio pouco habitado, como continua a ser atualmente (comparativamente com outras zonas do grande Porto), dedicado exclusivamente à extração e transporte do ouro e à alimentação dos escravos. O ouro partia depois de Crestuma para Roma. 

No fojo das Pombas, onde terminamos a nossa visita, o microclima húmido e quente permitiu o desenvolvimento de fetos, plantas raras e o estabelecimento de colonias de morcegos-de-ferradura que se alimentam de insectos. 

Antes havíamos parado na aldeia de Couce e junto de formações rochosas nas quais a Isabel Fernandes explicou a origem do relevo dos locais que visitamos. O V invertido da anticlinal de Valongo é o resultado dos movimentos tectónicos que dobraram a crusta e do posterior desgaste provocado pela erosão dos xistos, onde os rios Sousa e Ferreira foram escavando  os seus vales. Restaram as cristas quartziticas, muito mais resistentes à erosão, que hoje formam a anticlinal, constituída, entre outras, pelas serras de Pias e de Santa Justa.  



Umbilicus rupestris (Umbigo-de-Vénus)

Couce, Valongo



Linária




sábado, 8 de outubro de 2022

Valongo, terra do pão


 “Valongo é terra de pessoas supersticiosas”, diz Raquel, a guia na Oficina da Regueifa e do Biscoito. O centeio ganhava o esporão (Claviceps purpúrea), o fungo a partir do qual se começou a extrair o psicotrópico LSD.  Na idade média era o “pão das bruxas”, provocava alucinações e comportamentos bizarros, supostamente “fazia voar” quem o ingeria. Outra curiosidade surpreendente: a farinha é combustível. O atrito do rodízio na pedra podia faíscar e provocar uma grande explosão, havendo muita farinha no ar.  Gravava-se uma cruz na parede “para o diabo não entrar lá dentro”. Acreditava-se assim que o moinho nunca explodiria.

Fomos circulando pela oficina ouvindo a cativante Raquel e as suas histórias. No último piso estão expostos todos os tipos de biscoito fabricados na cidade: “estão aqui há dois anos e ainda não ganharam bolor”, diz-nos.  Os biscoitos eram desidratados e cozidos “duas vezes” (Bis – Coito?), não tinham sabor, aguentavam muito tempo, eram imprescindíveis nas grandes viagens marítimas. Mais tarde, com o advento das especiarias, os fabricantes começaram a introduzir os diversos sabores que os caracterizam atualmente, indo ao encontro do gosto mais refinado dos comerciantes Ingleses da cidade do Porto,   que os acompanhavam com o chá. 

Raquel mostra-nos “o percurso do pão” uma linha sinuosa que vai de Valongo ao Porto pela antiga estrada real, coincidente em parte com a atual EN 15. As padeiras percorriam descalças 14 km com a jiga na cabeça.  Subiam a serra de santa Justa, local isolado frequentado por assaltantes, atravessavam Baguim do Monte e Rio Tinto – aqui as saias compridas iludiam  os fiscais, escondendo-lhes os pés, caminhando  descalças mais alguns quilómetros. No Porto era  proibido andar descalço na rua. Vendiam o pão em Mijavelhas (?),  Corujeira, Praça de São Bento e Cedofeita. 

Vimos o holograma da Dona Teresa, uma das mais idosas padeiras da cidade, durante décadas foi de Valongo ao Porto vender  pão. Fala do pai, também padeiro,  que ia ao Porto e à feira dos Carvalhos. Saia de madrugada  e regressava  na camioneta das sete: “uma vida difícil!” 

No pequeno trajeto que fizemos da igreja matriz à capela da Boa-hora, pela rua Sousa Pinto, os cartazes colocados nas fachadas devolutas  com as fotografias dos antigos proprietários relembram as padarias que ali existiram.  Chegaram a funcionar em simultâneo 123 fornos. Em Cedofeita, no Porto, na mesma época, apenas três. Eram comuns os casamentos entre famílias de padeiros: a noiva transferia para o futuro marido  os clientes do pai. A nova família recebia assim, como dote, uma nova carteira de clientes. As mulheres estavam impedidas por lei de serem herdeiras. 

Visitamos a exposição Earth to Earth   no Museu e Arquivo Municipal, contando a origem dos principais cemitérios do  Porto, cujos jazigos eram construídos com lousa de Valongo.  

Terminamos na sede do Parque das Serras do Porto na companhia do Nelson Branco, nosso guia durante uma parte da visita.  Sempre prestável e um valonguense  orgulhoso da sua terra. No auditório alertou-nos para o problema da eucaliptização das serras, referiu o papel que a câmara de Valongo está a ter na mitigação do mesmo,  rescindindo contrato com a Navigator e plantando cerca de 2000 árvores autóctones nos terrenos sob a sua jurisdição. Os restantes continuam na alçada dos privados, sem dinheiro para proceder à limpeza e plantar espécies autóctones, sendo mais rentável alugá-los às empresas de celulose que exploram os eucaliptos e pagam renda. Outro problema na gestão do parque é o conflito de interesses com os veículos motorizados, que todos os fins de semana atravessam a serra, adulterando e abrindo novos trilhos, provocando desequilíbrios. Estabeleceu-se um diálogo interessante entre o José Rio Fernandes e o Nelson Branco analisando estes conflitos e os novos desafios que, no entanto, surgiram, como a possível colocação de eólicas nos cumes.    A gestão do parque “é como um puzzle que se vai montando”, concluiu o Nelson Branco.

No fim da visita foi-nos oferecido um  simpático lanche com típicos biscoitos de Valongo, confecionados na padaria Paupério: lenas de chocolate, fidalgos, milhos e torcidos.   


Rua de Sousa Paupério


Igreja matriz de Valongo, teve como modelo a igreja da Lapa



Fábrica e loja Paupério

Palácio de Bernardo Martins da Nova: Museu Municipal e Arquivo Histórico

Oficina da Regueifa e do Biscoito, praça do Centenário

Dona Teresa (Holograma), Oficina da regueifa e do Biscoito

Variedade de biscoitos de Valongo (ORB)

Sede do Parque das Serras do Porto

sábado, 1 de outubro de 2022

Soajo

Mais uma caminhada da ADALE. Saída da praça Velásquez às 7h 30 em direção ao Soajo. A camioneta não vai totalmente cheia. A maior parte dos companheiros são professores na reforma e outros com muitos anos de serviço, na casa dos  cinquenta e sessenta. Sou o segundo mais novo, atrás de mim só um ex- aluno do Jorge Ferreira, há quase trinta anos. 

A camioneta deixou-nos no centro do Soajo, junto à estátua de pedra  que homenageia o cão sabujo - raça que eu desconhecia. Importante no passado: daqui eram enviados anualmente  "cinco valentes cães"  para os reis de Portugal, por esta razão os soajeiros beneficiaram de isenção de impostos e de outros privilegios concedidos no tempo da monarquia. Outro monumento homenageia um episódio que deu boa  fama aos juízes da terra:

"Juiz do Soajo, cadeira em  que se sentou, nunca consigo a levou" - e os heróis da guerra da restauração. 

Vejo roulotes de matrículas estrangeiras  estacionadas no largo, alguns turistas e percursos pedestres sinalizados. Percebo que estou numa terra com história e motivos de interesse, para além da beleza natural que a envolve. 

Descemos ao  ex-libris, capa de revistas turísticas do alto Minho e nacionais: o conjunto dos espigueiros tradicionais. Percorremos a eira sobre a rocha granítica e não foi fácil encontrar um ângulo sem pessoas para fotografá-los. 

Na padaria de outra rua comprei uma fatia de  pão-de-ló do Soajo para conhecer mais este doce tradicional, estava saboroso e fresco. Bastante  delicioso. Ficou aprovado! 

O Jorge Ferreira sobe os degraus do pelourinho e dá-nos a conhecer um pouco da história do extinto concelho do Soajo.  No ensaio "Ibéria Esvaziada", Carlos Taibo considera que estamos na eminência do colapso económico, neste cenário muitos  optarão pelo retorno às pequenas comunidades descentralizadas, autónomas e autossuficientes. O Soajo esteve séculos isolado do mundo, rodeado de serras difíceis de transpor, desenvolveram-se  fortes traços comunais que deixaram a sua marca na cultura local e no espírito das pessoas mais velhas que viveram sempre aqui. Gostei de ver as idosas com o cajado e o lenço na cabeça. Não as fotografei, seria mais um a intrometer-se e a assedia-las. Devem estar fartas de ser fotografadas por turistas de fim-de-semana como eu. Alguns companheiros meteram conversa com elas, mostraram-se solicitas e contentes por poderem falar de si. Se Paul Theroux estivesse aqui talvez escrevesse um livro de viagens com as suas histórias.

Seguimos em direção  ao rio Lima, atravessamos a ponte romana e fomos pela margem direita até ao lugar de Ermelo. Possui uma bela igreja românica restaurada, com  a rosácea um pouco escondida pela aresta do telhado.  Lá dentro a curiosa estatueta do São Bento:  tem  cartolinha na cabeça  e  fisionomia de criança. Contrasta com as representações  austeras e sofridas  de muitos   santos. Este é inocente, naive, pueril. 

Passamos debaixo de um frondoso carvalhal por uma calçada de muros cobertos de musgo,  o troço genuinamente mais natural do percurso, inalterado há centenas de anos. Do nosso lado esquerdo o rio Lima forma um extenso corpo de água, devido à barragem de Touvedo, a jusante. 

Uma parte do trilho segue pela ecovia. 

Por fim, paramos para o pic-nic no parque de merendas da  capela de São João. Dispersamos-nos pelas mesas. Partilhamos  frango de churrasco, bolinhos de bacalhau, empadas de atum e de frango, azeitonas, rissóis, uvas americanas apanhadas esta manhã, pão-de-ló, laranja descascada  para desenjoar. Outras mesas oferecem-nos  vinho, salada de bacalhau, pizza, bolo e doces para a sobremesa. Duas vacas cachenas observam-nos do  prado. 

Depois descansamos, vamos ao miradouro, vemos o rio, a  serra amarela, as localidades de Ermida e de Entre-ambos-os-rios. Silêncio. Sol. Tranquilidade. O cheiro da hortelã que os nossos pés foram pisando segue-nos desde o início do caminho, misturado agora com o da  bosta ressequida na terra. 

No regresso, dentro da camioneta, duas companheiras cantam  melodias simples, apenas as suas vozes afinadas e a vontade de cantar, indolentemente, maravilhosamente. Começo a fechar os olhos de sono. O mais simples é o mais belo.