sábado, 8 de outubro de 2022

Valongo, terra do pão


 “Valongo é terra de pessoas supersticiosas”, diz Raquel, a guia na Oficina da Regueifa e do Biscoito. O centeio ganhava o esporão (Claviceps purpúrea), o fungo a partir do qual se começou a extrair o psicotrópico LSD.  Na idade média era o “pão das bruxas”, provocava alucinações e comportamentos bizarros, supostamente “fazia voar” quem o ingeria. Outra curiosidade surpreendente: a farinha é combustível. O atrito do rodízio na pedra podia faíscar e provocar uma grande explosão, havendo muita farinha no ar.  Gravava-se uma cruz na parede “para o diabo não entrar lá dentro”. Acreditava-se assim que o moinho nunca explodiria.

Fomos circulando pela oficina ouvindo a cativante Raquel e as suas histórias. No último piso estão expostos todos os tipos de biscoito fabricados na cidade: “estão aqui há dois anos e ainda não ganharam bolor”, diz-nos.  Os biscoitos eram desidratados e cozidos “duas vezes” (Bis – Coito?), não tinham sabor, aguentavam muito tempo, eram imprescindíveis nas grandes viagens marítimas. Mais tarde, com o advento das especiarias, os fabricantes começaram a introduzir os diversos sabores que os caracterizam atualmente, indo ao encontro do gosto mais refinado dos comerciantes Ingleses da cidade do Porto,   que os acompanhavam com o chá. 

Raquel mostra-nos “o percurso do pão” uma linha sinuosa que vai de Valongo ao Porto pela antiga estrada real, coincidente em parte com a atual EN 15. As padeiras percorriam descalças 14 km com a jiga na cabeça.  Subiam a serra de santa Justa, local isolado frequentado por assaltantes, atravessavam Baguim do Monte e Rio Tinto – aqui as saias compridas iludiam  os fiscais, escondendo-lhes os pés, caminhando  descalças mais alguns quilómetros. No Porto era  proibido andar descalço na rua. Vendiam o pão em Mijavelhas (?),  Corujeira, Praça de São Bento e Cedofeita. 

Vimos o holograma da Dona Teresa, uma das mais idosas padeiras da cidade, durante décadas foi de Valongo ao Porto vender  pão. Fala do pai, também padeiro,  que ia ao Porto e à feira dos Carvalhos. Saia de madrugada  e regressava  na camioneta das sete: “uma vida difícil!” 

No pequeno trajeto que fizemos da igreja matriz à capela da Boa-hora, pela rua Sousa Pinto, os cartazes colocados nas fachadas devolutas  com as fotografias dos antigos proprietários relembram as padarias que ali existiram.  Chegaram a funcionar em simultâneo 123 fornos. Em Cedofeita, no Porto, na mesma época, apenas três. Eram comuns os casamentos entre famílias de padeiros: a noiva transferia para o futuro marido  os clientes do pai. A nova família recebia assim, como dote, uma nova carteira de clientes. As mulheres estavam impedidas por lei de serem herdeiras. 

Visitamos a exposição Earth to Earth   no Museu e Arquivo Municipal, contando a origem dos principais cemitérios do  Porto, cujos jazigos eram construídos com lousa de Valongo.  

Terminamos na sede do Parque das Serras do Porto na companhia do Nelson Branco, nosso guia durante uma parte da visita.  Sempre prestável e um valonguense  orgulhoso da sua terra. No auditório alertou-nos para o problema da eucaliptização das serras, referiu o papel que a câmara de Valongo está a ter na mitigação do mesmo,  rescindindo contrato com a Navigator e plantando cerca de 2000 árvores autóctones nos terrenos sob a sua jurisdição. Os restantes continuam na alçada dos privados, sem dinheiro para proceder à limpeza e plantar espécies autóctones, sendo mais rentável alugá-los às empresas de celulose que exploram os eucaliptos e pagam renda. Outro problema na gestão do parque é o conflito de interesses com os veículos motorizados, que todos os fins de semana atravessam a serra, adulterando e abrindo novos trilhos, provocando desequilíbrios. Estabeleceu-se um diálogo interessante entre o José Rio Fernandes e o Nelson Branco analisando estes conflitos e os novos desafios que, no entanto, surgiram, como a possível colocação de eólicas nos cumes.    A gestão do parque “é como um puzzle que se vai montando”, concluiu o Nelson Branco.

No fim da visita foi-nos oferecido um  simpático lanche com típicos biscoitos de Valongo, confecionados na padaria Paupério: lenas de chocolate, fidalgos, milhos e torcidos.   


Rua de Sousa Paupério


Igreja matriz de Valongo, teve como modelo a igreja da Lapa



Fábrica e loja Paupério

Palácio de Bernardo Martins da Nova: Museu Municipal e Arquivo Histórico

Oficina da Regueifa e do Biscoito, praça do Centenário

Dona Teresa (Holograma), Oficina da regueifa e do Biscoito

Variedade de biscoitos de Valongo (ORB)

Sede do Parque das Serras do Porto

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