quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Miradouros do Douro

 

Miradouro de São Leonardo de Galafura

Os cachorritos catam-se um ao outro no jardim, deitados à sombra, consolados. Ando ali a tirar fotografias, um deles aproxima-se a farejar-me, parece simpático. Volta para o pé da cadela.

Veremos muitos outros cães pachorrentos nas estradas e aldeias onde  passaremos. Em São João da Pesqueira, um deles estava estendido no meio da rua, a arfar, aproveitando o calor aprazível do asfalto ao fim da tarde. Não saía, mesmo depois de buzinarmos, indiferente ao perigo do automóvel. Tivemos de o contornar: “olá, amigo, isso é que é vida!”

Entramos no Maria Rita, o classicismo das salas assoberbou-nos imediatamente. De repente, estávamos no século XIX. Nem mesmo o prévio deambular pela aldeia vazia, quase abandonada, de prédios rústicos devolutos, que já foram senhoriais, nos preparou para o ambiente que encontraríamos ali dentro. Os clientes falavam em surdina, o som do piano espalhava-se pelo interior. Mesas de madeira sólida, candelabros e quadros antigos nas paredes; talheres cintilantes colocados ordenadamente em volta dos pratos de porcelana com o nome do restaurante, os copos pesados de vidro e os  flutes de cristal  ao redor, conforme a etiqueta;  a lareira ao fundo da sala com cadeirões de estofo acetinado. O restaurante Maria Rita é um clássico. Inicialmente foi uma pensão construída na freguesia de Romeu de Jerusalém, no concelho de Mirandela. O único local da aldeia  que atrai visitantes, a aldeia, essa, denota um passado com  história, o ter sido um local bem mais animado do que é hoje. Atualmente, é um retrato fiel do país: envelhecido, com tanta história e motivos de interesse, completamente desprezados e abandalhados, em prol de uma pseudomodernidade que privilegia  o urbanismo desenfreado, a autoestrada e o centro comercial.

Compramos azeite na loja e soubemos que o museu das curiosidades está encerrado há muito tempo. Mais tarde, em Tabuaço, uma das mais valiosas peças do museu - o RIJOMAX – o relógio mais completo do mundo - também teve de ser transferida para o posto de turismo, por falta de condições no edifício.

Construído por um ourives local, o senhor Amândio José Pinheiro, é uma peça rara que denota a minúcia e a precisão do autor, como também os seus conhecimentos exaustivos de astronomia. Indica os anos bissextos, horóscopos, ciclos da lua, datas do carnaval e páscoa até 2113, o calendário Grego. Muita informação num simples aparelho de rodas. Demorou 28 anos a ser construído.

O mais curioso é que quando o seu construtor morreu, pouco tempo depois, o relógio deixou de funcionar e nem mesmo os melhores relojoeiros do mundo o conseguiram por a trabalhar: como se com a morte do pai, o filho fosse incapaz de sobreviver sozinho.  

Fomos sem destino definido conhecendo alguns dos miradouros do Douro, de Carrazeda de Ansiães descemos à aldeia de Seixo e dali ao miradouro do Douro.  As estradas tinham pouca sinalização,  não havia ninguém nas ruas para nos esclarecer.  

No miradouro de São Leonardo de Galafura vemos escritos nas paredes das ermidas os inevitáveis poemas e prosas do Transmontano mais famoso de todos: Miguel Torga.  Muitas quintas nas margens, mas emerge uma questão: aonde está a mão de obra para estes socalcos?

Romeu de Jerusalém

Romeu de Jerusalém

Romeu de Jerusalém

Restaurante Maria Rita, Romeu de Jerusalém

Restaurante Maria Rita, Romeu de Jerusalém

Romeu de Jerusalém


Romeu de Jerusalém


Romeu de Jerusalém


Restaurante Maria Rita, Romeu de Jersusalém

Miradouro do Douro, Seixo de Ansiães


Miradouro de São Salvador do Mundo, São João da Pesqueira

Miradouro de São Salvador do Mundo, São João da Pesqueira

Quinta do Cidrô, São João da Pesqueira


Rijomax - Tabuaço

Rijomax - Tabuaço

Rijomax - Tabuaço

Tabuaço

Rio Távora




domingo, 27 de agosto de 2023

Caminho Português de Santiago (Variante Espiritual), Etapa 3: Vilanova de Arousa - Santiago de Compustela


Drakars Vikings em Catoira


 Traslatio

Dirigimo-nos à estação marítima para fazer o traslatio, a única etapa dos caminhos de Santiago realizada de barco. Cerca de 25 km, ria de Arosa e rio Ulla acima, entre Vilanova e Pontecesures.   

A lancha, da companhia Amare, partiu às oito da manhã em ponto, levando 15 passageiros, peregrinos de vários países.  Foi uma viagem onírica, estava longe de imaginar que observaria cores e momentos que pareciam irreais, de um mundo só possível nos filmes do Senhor dos Anéis e nos quadros dos pintores pré-Rafaelitas.  O dia estava a romper, os raios do sol projetavam-se na ria, conferindo-lhe tonalidades difusas de luz; fios de água evaporavam-se no ar, formando finos lençóis de nuvens brancas, movendo-se suspensas e delicadamente sobre a água do rio.  O guia ia parando a lancha e descrevendo o que víamos: as torres vikings,  duas sentinelas abandonadas que vigiavam a costa; o Drakar, ancorado no porto de Catoira, onde, em Agosto, se recriam combates vikings; a Via Crucis, 17 cruzeiros medievais transpostos das aldeias vizinhas no ano de 1969; o pântano do rio Ulla, naquele momento envolvido numa luz fantasmagórica, criando uma atmosfera misteriosa; o parque nacional da ilha de Catoira, importante reserva biológica; os viveiros de moluscos, a mais importante atividade económica da região.

Íamos no barco em silêncio, tolhidos pelo frio da manhã, inebriados com a paisagem e cores surreais que víamos.

Desembarcamos em Pontecesures, seguimos para Padron, atravessando a ponte sobre o rio Sar. No mercado de Domingo, como estava na terra deles, fotografei muitas bancas de pimentos.

Na igreja de Santiago fotografamos a pedra, pedron, em que foi atracada a barca que transportou o apóstolo da terra santa.

Chegamos a Santiago. Ao contrário do que se poderia esperar senti alguma tristeza. O que interessa é o caminho, conhecer pessoas, ver as paisagens, ter novidades todos os dias, chegar nunca teve muito significado.

Encontramos Emanuela sentada na praça em frente da Catedral, acena-nos: “desfrutem o momento.”

Mais tarde, cruzar-nos-emos na rua com Jéssica, sorri para nós. Diz-nos olá e adeus.

Viveiro de Moluscos, Ria de Arousa



Drakar 

Torres Vikings








Pimentos padrón em Padrón

O pedron onde foi amarrada a barca do apóstolo


A caminho de Santiago


Santiago!!

Lá Esclavitud 

sábado, 26 de agosto de 2023

Caminho Português de Santiago (Variante Espiritual), Etapa 2: Armenteira - Vilanova de Arousa

 

Rota da Pedra e da Água

Na manhã seguinte juntamo-nos os cinco na cozinha a tomar o pequeno almoço. Vejo Samuel de forma totalmente diferente: chapéu de santiago, colar e t-shirt havaiana, pulseiras garridas, trombeta e um pequeno mastro com a bandeira de Itália, preso na mochila. Jéssica muito admirada, diz: “É ele!!!!”, mostra-me um vídeo a circular nas redes sociais do Samuel a cantar eufórico, vestido de peregrino extravagante, a fazer o caminho. 

Apanhamos boleia do companheiro de Ester, Seso. Viúvo, o proprietário da casa. Tem filhos adultos, que preferem viver noutro lado. A casa está vazia, rentabilizam-na, alugando-a a peregrinos. 

Falamos da Galiza, de Rosalia de Castro, declama de cor:

“Adios ríos, adios fontes;

Adios, regatos pequenos,

Miña terra, miña terra,

Terra donde me eu criei

…”

Na viagem para o albergue, onde iniciaremos a segunda etapa, conta-nos a lenda de Santo Ero, o fundador do mosteiro de Armenteira:

O monge foi para o bosque ouvir o som das aves, encontrou uma cujo canto o encantou tanto que só ao fim de trezentos anos voltou a si.

Peregrino não empata peregrino e cedo nos separamos, continuei apenas com o meu primo ao longo do rio Armenteira, seguindo a rota da Pedra e da Água. Trajeto de oito quilómetros, coincidente com o caminho de Santiago.

A Rota da Pedra e da Água

O nome deve-se à existência dos moinhos, a pedra, ao longo do curso de água. Entramos num bosque encantado, caminhando debaixo de copas frondosas e de sombras misteriosas, pela margem do rio, repleto de moinhos abandonados, pequenas cascatas, rochas escorregadias e musgos.   Ambiente silencioso e ameno que nos transporta para os contos de fadas, a história do capuchinho vermelho perdido na floresta, o lobo mau e outras personagens fantásticas.  

Saímos do mundo encantado da rota e seguimos por campos de milho, vinhas floridas, oferecendo uma sombra permanente à terra debaixo delas. Vimos aldeias com  espigueiros tradicionais, casas rústicas de granito, igrejas e cruzeiros medievais de Santiago.  Almoçamos numa tasca,  a melhor que encontramos no caminho, no lugar de Mouzos. Vinho albariño servido em malgas de porcelana, acompanhado com entradas de fabada galega, em doses suficientes para não ser necessário pedir o prato principal.  

Fomo-nos aproximando do fim da segunda etapa, de 23 km, em Vilanova de Arosa. Encontramos no bar do parque de campismo a Jéssica e a Emanuela. Que alegria! Juntàmo-nos elas. Mandámos vir mais cerveja. 

Por que razão decidiram fazer o caminho de Santiago sozinhas?

Jéssica: para ver as estrelas e estar sozinha.

Emanuela: para descobrir-me e estar sozinha.

Eu: Vocês são muito corajosas. Estão de parabéns.

Elas: na realidade acabamos por não estar sozinhas muito tempo, estamos sempre a encontrar pessoas e a andar acompanhadas.

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O meu primo queria conhecer o verdadeiro espírito dos caminhos de Santiago, dormindo num albergue de peregrinos. A noite anterior não contou, tínhamos ficado num sítio demasiadamente confortável. Neste sentido, o albergue de peregrinos de Vilanova de Arosa correspondeu inteiramente às expetativas: desconfortável, apertado, com cheiros esquisitos, repleto de peregrinos barulhentos.  

Jéssica e  Emanuela, que chegaram depois de nós, só conseguiram lugar numa sala em que teriam de dormir no chão. Não quiseram, foram procurar outro sítio. O albergue ocupa uma ala do pavilhão desportivo municipal. A camarata mista tem 28 lugares em 14 beliches e apenas uma casa de banho, com chuveiros e sanitas. Estavam disponíveis, contudo, os balneários do pavilhão, onde tomei o meu duche. O hospitaleiro deu-nos as fronhas para a almofada e o colchão, carimbou as nossas credenciais, pagamos   10€ por pessoa. Deixamos as sapatilhas num banco fora da camarata, entramos, deparamo-nos com uma algazarra de italianos, homens e mulheres, mochilas e roupas espalhadas no chão, nas cadeiras, dispostas nos colchões dos beliches. Por sermos os últimos, ficamos com os piores lugares, na parte de cima do beliche, e eu ao lado da porta, por onde todos entravam e saiam.

Deitei-me no colchão, tentando descansar, abstraindo-me do ruído das conversas animadas e dos cheiros esquisitos, quando uma italiana bonita  entra na camarata  e passa ao meu lado, apenas com a toalha de banho enrolada no corpo: “scusa”, disse-me.

A noite foi uma autêntica sinfonia de ressonadelas, umas mais graves do que outras. Por vezes ouvia uma solitária e longa, imediatamente acompanhada por outras fazendo coro. Pensei: são italianos, vou imaginar que são o Pavarotti e os ruídos áreas de Verdi. Acho que consegui dormir alguma coisa. Às cinco da manhã o colchão ao meu lado já estava desocupado. Lentamente os peregrinos foram acordando, com algumas risadas femininas, colocando os objetos nas mochilas, indo à casa de banho. Às sete de manhã quase todos tinham abandonado a camarata.

É impossível dormir mais tempo, por muito cansado que se esteja. No entanto, há peregrinos que dormem que nem uma porta, abstraindo-se completamente dos barulhos.

- Como é que há gajos que conseguem isso? – perguntou o meu primo com uma certa inveja.




Rota da Pedra e da Água

Rota da Pedra e da Água


Rota da Pedra e da Água


Rota da Pedra e da Água


Rota da Pedra e da Água


Rota da Pedra e da Água


Rota da Pedra e da Água


Rota da Pedra e da Água







Tasca em Mouzos, a melhor do caminho


Chegada a Vilanova de Arousa


Vilanova de Arousa

Vilanova de Arousa

No albergue de Vilanova de Arousa

Ainda a rota da Pedra e da Água