Combarro |
O meu primo convidou-me para
fazer o Caminho de Santiago, um qualquer. Escolhi a variante espiritual, entre
Pontevedra e Pontecesures, e seguir para Santiago. Por serem poucos dias, não estarmos
fisicamente preparados para caminhadas longas e ser próximo do mar, detalhe
importante no Verão, período de temperaturas altas.
Talvez três ou quatro dias fossem suficientes.
Apanhamos às três da manhã o autocarro da Flixbus na Estação Intermodal de
Campanhã e três horas mais tarde estávamos em Pontevedra, preparados para
iniciar o caminho. Não reservamos albergue, nem hotel, nem viagem de regresso, fomos
à descoberta, ao improviso, recetivos ao que o caminho nos tinha para oferecer e
foram muitas as dádivas e surpresas que tivemos.
Logo em Pontevedra o que mais
surpreendeu foi a quantidade de albergues, hotéis e lojas que proliferam com o
caminho, vendendo dormida, comida, recuerdos.
Entramos na igreja da Virgem
Peregrina, compramos duas vieiras, que penduramos visíveis na mochila para
sermos identificados como peregrinos. A hospitaleira fez o primeiro carimbo da caminhada
na nossa credencial.
O caminho é coincidente nos
primeiros quilómetros com o trajeto principal. Atravessamos a ponte, seguimos
para norte alguns quilómetros.
A quantidade de caminhantes que
passavam por nós! Amigos e casais que resolveram fazer a sua caminhada matinal com
os filhos, levando quase nada nas costas; grupos de peregrinos que começaram o
caminho muitas etapas antes, facilmente identificados pelas mochilas maiores,
os bastões e as vieiras, caminhando uns mais vigorosamente do que outros, mas
todos em passo regular, já com muitos quilómetros nas pernas. Centenas que todos
os dias, seguramente, fazem o trajeto no verão. Uma romaria em direção a
Santiago, de mochilas às costas, bastões e roupa desportiva, que também me
surpreendeu, não eram ainda nove horas da manhã.
Quatro quilómetros após o inicio, fizemos o desvio à esquerda pela variante espiritual.
Antes de Combarro, tivemos o troço mais duro de toda a variante, uma subida ingreme até ao mosteiro do Poio. Caminho de terra entre pinhais e prados, onde nos cruzamos com manadas de cavalos selvagens, pastando tranquilamente, indiferentes à nossa passagem. No miradouro do Loureiro usufruímos de uma magnífica vista sobre a ria e o mar. Cruzamo-nos com uma peregrina jovem que caminhava sozinha no meio da floresta. Seguiu sem dizer palavra, apenas a troca de olhares e o sorriso normal entre peregrinos que se cruzam em lugares ermos. Caminhou alguns quilómetros à nossa frente. Por vezes, perdíamo-la de vista. Pensamos o quão corajosa era por estar sozinha, em atravessar lugares como aquele, onde facilmente podia haver um perigo oculto à espreita. Disse o meu primo: “deve ter uma metralhadora na mochila!”.
Chegamos ao mosteiro do Poio e carimbamos a credencial na Casa Consistorial. Conjunto harmonioso de edifícios antigos em granito, construídos na idade média, com pousada, habitado por monges Beneditinos. Imperava o silêncio, os jardins envolventes estavam cuidados, via-se o mar. Ficamos alguns minutos a desfrutar o local, percebemos que um grupo de peregrinas americanas tentava reservar por telefone o albergue para a noite. Entramos no mosteiro, visitamos os claustros, as salas laterais, de tetos ogivais, com quadros e esculturas de santos, a igreja de estilo românico e as capelas. Ambiente tranquilo e aconchegante, onde imediatamente se sente paz interior. Independentemente da fé de cada um, é impossível ficar-se indiferente num sítio assim.
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Combarro é uma pequena vila turística encostada à ria de Pontevedra. Sítio aprazível onde nos demoramos, deambulando pelas ruelas estreitas, tirando fotografias aos
espigueiros e eiras tradicionais, vendo as pequenas lojas de recordações,
procurando um local para nos sentarmos e comer. Tínhamos o estômago a
dar horas. Encontramos um snack-bar na estrada de Sanxenxo, o único sítio do
caminho onde fomos mal servidos, mas no momento não sabíamos isso, ainda. Na
mesa ao lado, um grupo de cinco peregrinos de nacionalidades diferentes conversava
entre si em Inglês, misturando palavras de Espanhol e outros idiomas que não
identifiquei. O meu primo disse que uma das peregrinas devia ser Grega.
- Porquê ?
- Pelo sotaque.
Pedimos duas tostadas de queijo e
manteiga, uma caña (fino) e um copo de vinho branco Albariño. Passaram vários
minutos sem que viesse a comida, perguntamos porque demorava tanto. Era sexta-feira, havia pouca gente, mas estava quase. Pensamos que viria uma grande
tostada, como as que temos em Portugal, feitas com pão alentejano, de fatias
de queijo tradicional meio derretidas a escorrer para fora. Veio uma fatia pequena,
mal torrada, e dois pacotinhos de manteiga e queijo para barrar. Ficamos
desapontados com o serviço e pagamos tanto ou mais como o que viríamos a pagar
noutros locais, mais bem servidos. Ainda por cima tivemos de ser nós a barrar o
pão!
Enganamo-nos duas vezes no
caminho, logo de imediato as pessoas que nos viram seguir na direção errada
chamaram-nos à atenção. Na primeira vez,
um grupo de peregrinos, que se encontrava a descansar na sombra das árvores, disse-nos
com humor: “estávamos aqui de propósito para vos ajudar”. Na segunda vez, passamos por um indivíduo sentado
na rua a ouvir música do rádio. Alguns metros mais à
frente, um senhor veio à janela dizer-nos: “não é por aí, voltem atrás”; ao mesmo tempo, o sujeito do rádio já se tinha levantado da cadeira e vinha atrás de nós para
nos corrigir. Agradecemos a ambos.
O caminho está sinalizado com
setas amarelas, vieiras em azulejos azuis, placas metálicas e cruzeiros antigos de granito, com Jesus Cristo
ou Santiago no topo da coluna, indicando a direção correta, que só mesmo dois
peregrinos, completamente distraídos e cegos com a conversa, como era o nosso
caso, se poderiam perder.
Seguimos até Armenteira para
terminar a última parte dos 24 km da primeira etapa. Dezenas de peregrinos
conviviam nas esplanadas da pequena alameda que dá acesso ao mosteiro de
monjas. Visitamos os claustros com o seu chafariz e os salões laterais,
novamente o mesmo tipo de arquitetura e objetos religiosos. A mesma paz,
silêncio e aconchego.
A oficina de turismo, dentro do
mosteiro, abriria às quatro da tarde. No momento em que eu consultava o horário
de funcionamento, a funcionária abriu a porta e mandou-me entrar. Assim fiz. Perguntei
se havia vagas no mosteiro – as monjas alugam quartos aos peregrinos. Estava esgotado.
Pedi os contactos de outros
albergues e residências próximas. Escreveu o número de telefone e o nome das
casas onde podia encontrar dormida.
Enquanto falava com a
funcionária, sempre simpática e solícita, respondendo demoradamente e dando
mais informações do que as pedidas por mim, o tempo passou. Pressenti que atrás
de mim alguém me fulminava com os olhos, apercebi-me então que, inadvertidamente,
passei à frente de um casal de peregrinos que já ali estava à espera de ser
atendido. O mal estava feito, passei por
eles sem dizer palavra, com o ar mais ingénuo que podia, e sai para a rua.
Ligamos para os números. Tudo
esgotado!
- Não te preocupes. Fica “tranquilo!”,
como dizem os espanhóis – disse ao meu primo.
Fomos para a esplanada comer
pimentos padron, beber cañas e copas de vinho branco, descansar as pernas,
ponderar o que fazer. O pior que podia acontecer era dormir na rua, o tempo
estava agradável, tínhamos água da fonte perto de nós para nos lavarmos às
escondidas.
O meu primo: se tivéssemos um
saco cama até era fixe!
- No te preocupes, hombre,
tranquilo!
O casal saiu da oficina com ar de
quem também não tinha sítio. Sentou-se na esplanada próximo de nós. Aquela que
o meu primo julgava ser Grega foi ter com eles, percebi que o casal era francês
e que ela tinha outra nacionalidade, pois falavam em Inglês entre si, mas que dominava
o espanhol melhor do que eles. Foi quem fez as chamadas telefónicas,
provavelmente para os mesmos sítios. Vi
a cara desalentada que faziam depois de cada chamada.
Íamos pensando nas possibilidades
que tínhamos: dormir na rua, chamar táxi e procurar hotel numa cidade maior,
continuar a caminhar até encontrar um local com dormida. É nos momentos de
relaxamento, tendo o estômago satisfeito e a sede saciada, que as melhores
ideias, as mais simples, aparecem.
- E se formos ao albergue
municipal perguntar, como se não soubéssemos de nada, se tem dormida para nós?
Não nos podem deixar na rua, somos peregrinos! – disse o meu primo.
Celebramos a brilhante ideia com
mais uma tapa de pimentos padron e bebida, vendo chegar mais peregrinos à
pequena alameda, descendo da montanha. O meu primo comentou: “olha aquela
peregrina, tem um ar mesmo derreado, mal pode andar!” Apesar de jovem e elegante,
devia ser a primeira vez que fazia os caminhos.
Tal como estávamos à espera, não
havia vagas no albergue. O hospitaleiro, contudo, disse-nos: “Vou ligar a um pessoa, a perguntar se ainda há lugar para vocês em casa dela. Está lá fora uma
peregrina portuguesa à espera que a venham buscar.” Havia lugar. Juntámo-nos à peregrina, era quem tínhamos
visto chegar derreada a Armenteira. Jéssica, natural de Alenquer.
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Clara chegou num KIA branco,
levou-nos a Barrantes, 5 km mais à frente.
Ficamos deslumbrados com o que
vimos. A casa estava cercada por um relvado com pinheiros bravos que faziam uma
sombrinha agradável no jardim. Fomos recebidos pela irmã de Clara, Ester. Mostrou
os quartos, a máquina de lavar roupa, a cozinha onde tomaríamos o pequeno-almoço
gratuito na manhã seguinte. Tudo novo, espaçoso e limpo. Emprestou as chaves
para sairmos e entrarmos à hora que quiséssemos, indicou os restaurantes e
caixas multibanco mais próximos. Mostramos a intenção de retomarmos no dia
seguinte o percurso no sítio onde terminamos. Combinaram apanhar-nos às oito e trinta da
manhã para nos levarem ao local. Pagamos 25 € por pessoa pela estadia.
Tomei um duche refrescante, pus a
máquina a lavar roupa, sentámo-nos nas espreguiçadeiras do jardim conversando
com Jéssica. Dissemos que a vimos chegar derreada a Armenteira. Acertamos, é a
primeira vez que faz o caminho. Começou em Valença.
Fomos jantar a um restaurante
próximo: la Peneira. Sem ela.
Quando regressamos vimos um
peregrino que ainda não conhecíamos, refastelado na espreguiçadeira, fumando um
cigarro.
- vocês devem ser os peregrinos
portugueses – disse ele.
Samuel. Siciliano, adepto
fervoroso do Messina. A trabalhar em Paris na restauração, com muitos colegas
Portugueses. Foi para a torre Eiffel gozar
a vitória de Portugal no Euro 2016. Arranha um pouco o Português: “Tenho
família em São Paulo."
Veio ter connosco outra peregrina
que chegou com Samuel: conhecíamo-la de vista. Afinal, a Grega é uma Italiana que domina o
espanhol e fala inglês com sotaque: Emanuela.
Durante a conversa tratei-a algumas por Ângela. Às tantas, diz-me ela com alguma impaciência:
- tu sempre a tratares-me por Ângela!
- Desculpa, é porque pareces um anjo.
- Estás perdoado.
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