sexta-feira, 19 de julho de 2024

Peregrinantes In Spem

Peregrinantes in Spem, trabalho da Cristina Jorge

O cântico espalha-se na nave, chegando aos ouvidos por camadas suaves, de  diferentes tessituras, acariciando os sentidos, relaxando-os, transportando-os para mundos distantes, onde só existe calma e paz. A acústica é extraordinária. O sítio, perfeito para ouvir música coral.

Não é a primeira vez que ouço o Coro do Mosteiro de Grijó, contudo,  esta impressiona mais. Não imaginava que um simples coro de músicos amadores tivesse tanta qualidade. Esta noite, interpretam músicas corais de várias épocas, de alguma forma ligadas aos caminhos de Santiago – o tema da exposição deste ano nos claustros do mosteiro: Peregrinantes in Spem - Peregrinos da Esperança.

Não sei se a música coral composta ao longo dos séculos teve somente caráter litúrgico. Não sei.

Sei que a música, como a ouvi esta noite, foi apaziguadora e enleante. Um som vindo das esferas cósmicas, celestial.

O coro foi fundado em 1989. O sítio na internet é este: (www.coromosteirogrijo.com)  

O maestro e diretor artístico, Joaquim Marçal, faz uma breve apresentação de cada um dos temas,  com boa disposição, humor, diplomacia. Assistem altos dignitários da igreja e da política local: o pároco, D. António Coelho, o Bispo do Porto, D. Manuel Linda, representantes da Junta de Freguesia e da Câmara Municipal.

O pároco diz que o número de obras expostas aumenta todos os anos, este ano são de 64 artistas plásticos.  O bispo do Porto alude ao papa.  As obras representam a diversidade de pessoas  e de pontos de vista, indo ao encontro das encíclicas de  Sua Santidade, o papa Francisco.

Na minha opinião, a arte deve ser absolutamente independente. Neste caso, apesar do empreendedorismo e contribuição da paróquia na divulgação de artistas locais pode haver, mesmo que inconscientemente, um certo cuidado em não ferir  suscetibilidades. Imagino um artista que resolve expor a imagem  de uma mulher nua, de cócoras, a beijar os pés do apóstolo, dificilmente seria aceite. A igreja continua a ter muita  influência e poder em Portugal, até na arte.

No entanto, também foi assim no passado.  Grandes obras ficaram para a posteridade, apoiadas pela  igreja. Artistas geniais tiveram como mecenas papas poderosos, que os protegeram  e lhes permitiram criar trabalhos esplendorosos. As pinturas da capela Sistina, de Miguel Ângelo – cujos nus escandalizaram a igreja, foram tapados com novas pinturas -, as decorações de Rafael Sânzio, nos aposentos do papa.

Passamos aos  claustros, para visitar a inauguração da XIII exposição anual.

Encontrei a Cristina Jorge. No seu trabalho,  as máscaras em argila representam as diferentes emoções expressas nas faces dos peregrinos ao chegar ao túmulo do apóstolo.  A base tem, no meio, um óculo para ser espreitado, ajoelhando-se e dobrando-se no chão. Os convidados, talvez por pudor e timidez, não o fazem. Observam as máscaras de frente, apenas,  perdendo uma parte do trabalho  e do   seu significado. A Cristina pede-me para espreitar o óculo: estendo-me no chão, olho pelo minúsculo círculo, vejo a cruz de Santiago iluminada. Ela quer representar  a prostração dos peregrinos na chegada a Santiago e ao túmulo. O conceito da obra não podia estar mais de acordo com o tema.

Vejo outros trabalhos à pressa, a pensar observá-los mais tarde, com calma. As inaugurações devem ser os piores dias, há mais visitantes e ruído.





quinta-feira, 18 de julho de 2024

Passeio a Vila Flor

 

Os morros, as montanhas, as aldeias dispersas lembram as personagens pícaras de alguns dos mais famosos romances de Camilo Castelo Branco. Apetece reler certas passagens. Talvez naquelas casas da A4, isoladas, aparentemente distantes do resto do mundo, se desenrolem dramas idênticos. Também o Zé do Telhado, em Cete,  de bandoleiros perigosos emboscando os viajantes, escondendo-se em lugarejos inacessíveis nas estepes  Transmontanas, em aldeias perdidas entre morros e fragas austeras.

 Os montes, os vales,  as nuvens,  pairam no céu  em silêncio, indiferentes à tragédia humana, tal como no século XIX.

Como seria ir do Porto a Trás-os-Montes? Não havia A4, nem comboios. Subia-se o Douro bravio e traiçoeiro nos barcos rebelos. Uma aventura perigosa que matou pessoas célebres. O Barão Forrester morreu num naufrágio no Cachão da Valeira. Os penedos ingremes comprimiam o rio veloz, os rochedos escondidos na corrente rompiam o casco, era necessário contorná-los, descer rápidos. A Ferreirinha também naufragou,  mas teve mais sorte, salvou-se, diz-se que graças aos forros da saia que não a deixaram ir ao fundo. Viajava-se de liteira, no dorso de cavalos, a pé. Demoravam-se dias. Porém, seguramente, a maioria das pessoas raramente saia dos seus horizontes. Nunca atravessou o Marão.

A paisagem  deve ser idêntica à que era há 200 anos. Sinto o ambiente diferente, como se tivesse entrado num outro tempo, noutra época. Apesar dos carros que circulam rápidos,  do túnel de 5,7Km - o mais longo de Portugal -  e dos pilares de design moderno depois de Vila Real,  Trás-os-Montes continua mágico. “O Reino Maravilhoso”, de Miguel Torga.

Atravessávamos o Marão pela estrada nacional 15. Era uma aventura. A minha mãe conduzia a 4L, levando-me a mim e à minha irmã a visitar a amiga, Eunice, e o marido, Dinis, a Vila Flor. Por vezes, via-se aflita conduzindo por estradas com curvas e declives, passando em sítios ermos, andando quilómetros sem ver um único carro. Um dia inteiro de viagem. Hoje, pensa-se que era uma perda de tempo demorar um dia para chegar a um sítio. Na altura não se pensava assim, não se “sentia” assim. A viagem não era um dia perdido, era um dia ganho. Parava-se o carro para apreciar a paisagem, para respirar o ar puro, diferente  do lugar  de onde partíamos. Cheirava a flores, a rosmaninho, às ervas-de-são-roberto que cresciam nas bermas das estradas, a esteva,  às ervas secas dos dias quentes de verão. Parávamos para gritar nos miradouros, ouvir o nosso eco nos vales,  “EUNICE, ESTAMOS AQUI!!!  O som do iiiiii a alongar-se no horizonte.

Passávamos por pessoas que vendiam ao longo das estradas louça de barro preto de Bisalhães, fruta da época e queijos. Parávamos perto da  pousada de São Gonçalo, nas fontes de água fria que escorria das nascentes. O Marão tinha  encostas  verdejantes, majestosas,  opulentas, de pinheiros e abetos apontando a pique o céu azul, cobrindo de sombra a estrada estreita e sinuosa.  Subitamente,  no trágico incêndio de 1986, ardeu tudo.  A serra  nunca mais foi a mesma, até hoje. Sou testemunha.

A viagem a Vila Flor era um ritual anual, rica em experiências e peripécias, que a minha mãe gosta de recordar. Como aquela vez em que o carro foi abaixo em plena serra de Murça -  quase ninguém passava ali e os poucos carros que se cruzavam connosco não paravam com medo. Desconfiavam de uma senhora a pedir ajuda num sítio  isolado, com duas crianças dentro do carro. Devia haver alguém escondido para fazer um assalto. O tempo passou, até que um camião TIR começou a abrandar: “O que é que a senhora quer?”, perguntou o camionista sem sair, olhando desconfiado do alto da cabine. “O meu carro foi abaixo, não consigo arrancar”, “abra o capô!”. Observou-o de dentro do camião, “Já sei o que é!”. Por fim, saiu do lugar, inclinou-se sobre a 4L,   apertou o borne da bateria: “Entre e ligue o carro!”. A  mãe rodou a chave na ignição, ouviu o motor a arrancar. Ficou  aliviada e agradecida. Seguiu viagem para Vila Flor.

Outra vez, paramos na berma da estrada para lanchar. Apareceu um sujeito estranho, vindo não se sabe de onde. Ficou especado a olhar para nós, sem dizer palavra. A mãe, incomodada: “O senhor quer uma maçã?”, “Se me der, como”. “O senhor quer uma bolacha?”, “Se me der, como.” O Homem não saia da nossa beira. “A senhora dá-me boleia?” A mãe ficou mais aflita. Sozinha, com dois filhos pequenos, como se iria desenvencilhar daquele sujeito duvidoso? “Não posso, estou à espera do meu marido que foi ali fazer chichi e já vem.” O Homem: “já percebi que não me quer dar boleia, vou-me embora, fique à vontade.”

Seguimos viagem pela A4, recordando estes episódios, filosofando sobre a rapidez com que hoje  se chega ao destino. A mãe, ao meu lado, eu, a conduzir o SMART. Sou mais velho do  que ela quando nos levava a Trás-os-Montes.  Vamos visitar a Eunice. O Dinis, faleceu há oito anos.

Deixo a mãe no restaurante e recolho a Eunice no lar, no centro de Vila Flor. O SMART de dois lugares obriga a esta logística. Vem  amparada pela auxiliar, agarrada à canadiana no braço esquerdo, a sorrir,  feliz. Vai sair da rotina entediante e sorumbática, almoçar fora com a amiga e o filho. Ter um dia especial.



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Encontro as duas octogenárias instaladas na esplanada do restaurante  com o terceiro lugar da mesa  vago, à minha espera.

Dividimos Bacalhau Espiritual. As amigas  comem devagar, conversam.  A Eunice diz que o lar às vezes parece um manicómio, há doentes que gritam alucinados, um deles pediu uma pistola para dar um tiro na cabeça. Tirando isso até se está bem, saem de vez em quando, fazem passeios, vão à igreja. Ela faz as palavras-cruzadas todas, preenche em poucos dias os livros que o filho  lhe leva. Descobriu os truques para encaixar as letras, é craque. Ganha a todos. É boa a fazer contas. Um dia estava a explicar a soma a uma das auxiliares que, com desdém, lhe disse que a conta estava errada. Para  lhe comprovar que não,  fez a conta na máquina de calcular. Quem é que está errado?! Nunca mais me peça para lhe explicar. Não faça pouco de mim, ouviu? Respondeu-lhe resoluta, orgulhosamente.

Perguntei à Eunice se havia algum problema em visitarmos a  aldeia. Ir a sua casa, ver Valbom da Trindade. Os olhos brilharam. Claro que não! Fomos levados por uma taxista Brasileira, filha de emigrantes de Vilarelhos.  Ela fez a emigração inversa regressando à terra dos pais, um caso raro. Braços tatuados, desenvolta a conversar. Transporta pessoas das aldeias mais isoladas às paragens de autocarros, aos hospitais e centros de saúde, vai buscá-las quando não há mais ninguém para o fazer, nem  transportes.  A Eunice foi sentada ao seu lado, conversando animadamente, conhecendo muitas pessoas em comum. A Brasileira, como se sempre tivesse ali vivido.

Paisagens amareladas e verdes, rochosas, austeras, olivais, pomares, vinhedos, aldeias dispersas com pouca gente, terrenos abandonados. O céu intensamente azul, ar quente e seco. Descemos até à aldeia pela  estrada de paralelos. Casas fechadas, roupa a secar.

A minha mãe estendeu-se imediatamente na  laje da granito  encostada ao  rés-do-chão da casa, a Eunice sentou-se ao seu lado, fruindo o sol.   Revivendo os momentos de quando ali se sentavam com outras pessoas da aldeia,  deleitadas, como se o tempo não tivesse passado.  Chegou a sobrinha para abrir a porta da casa. Entramos na sala. Os mesmos objetos que trouxe de França, onde esteve emigrada com o marido; as mesmas garrafas de vinhos licorosos, a mesma louça no mesmo armário. O mesmo sofá, a mesma cozinha, os mesmos quartos, as mesmas camas. A mesma varanda com a mesma vista para a aldeia de Vilares da Vilariça, do outro lado da barragem da Burga.  Nada mudou. Apenas o silêncio da ausência de pessoas se tornou maior. Agigantou-se.  Não se ouve, nem se vê ninguém. Não há carros a circular, nem crianças, nem idosos, nas ruas da aldeia.

Deambulo pelas ruelas de paralelos, encontro apenas uma pessoa,  a  Dona Guiomar. Apresento-me, digo-lhe para ir à casa da D. Eunice, fazer-lhe uma surpresa. Caminho até à barragem pela estrada municipal, alcatroada. Vejo apenas os passageiros dos únicos três carros que passam por mim. Está um calor insuportável, não levo água. Sigo pela sombra de velhas oliveiras, de troncos carcomidos, de nogueiras e sobreiros, escutando a minha respiração e os meus passos pisando as ervas ressequidas  da berma da estrada.  Ouço as cigarras e o pi pi pi  das andorinhas sobrevoando rasantes as águas da albufeira. O Vale da Vilariça alonga-se repleto de pomares entre os cabeços suaves da serras, os canais de irrigação levam a água aos terrenos que ainda são cultivados.  

Regresso. Encontro quatro mulheres em amena cavaqueira. A Eunice fala, soberana, novamente dona do destino da sua casa, parecendo que regressou  às lides, confiante e generosa, como a conheci em miúdo, recordando os vizinhos, as mortes mais recentes,  fazendo-nos esquecer que está num lar, que não tem autonomia para viver sozinha, que já teve um AVC e esteve internada às portas da morte. A sobrinha e a D. Guiomar tem ambas três filhos. Três vivem em Lisboa, dois em Mirandela e um em Viana do Castelo. Nenhum quer regressar à aldeia. A Dona Guiomar é viúva, cultiva o que pode dos terrenos que ficaram para os filhos. A sobrinha trabalha para o irmão a apanhar fruta nos pomares do vale da Vilariça. Uma das terras mais férteis de Portugal. O vale dá todo o tipo de fruta, todo o ano. Agora, anda na apanha do pêssego. Vai-se levantar às quatro da manhã para ir de carrinha com outros trabalhadores. O irmão vende os pêssegos a uma superfície comercial e a um empresário de Viseu para fazer compotas.

Onde é que há gente para trabalhar nos terrenos? Pergunto.

“São  pessoas da terra, mas também há nas aldeias daqui Paquistaneses, Indianos, do Bangladesh. O meu irmão tem dois Timorenses, arranjou-lhes  casa. Chegaram há pouco tempo. Pediram para lhes pagar à semana, é assim no seu país.  Querem enviar dinheiro para a família todas as semanas.”

Uns partem e não querem regressar, outros chegam de longe para trabalhar e fazer o que muitos portugueses não querem. Valbom da Trindade tem vinte e uma pessoas. Quando era miúdo perguntei  ao filho da Eunice quantos habitantes tinha a aldeia. Talvez cinquenta, disse ele. O seu único filho vive em Lisboa, está reformado. Visita a mãe regularmente. É quem arranja pessoas para apanhar as azeitonas dos terrenos. Depois, envia-as para a cooperativa  que fabrica o afamado azeite de Vila Flor. Em troca, a cooperativa dá-lhe garrafões de cinco litros, consoante os quilos que enviou. A Eunice oferece-nos uma garrafa. O teu filho não se vai chatear? Perguntou a minha mãe. O meu filho ainda me obedece, respondeu perentória.

Levo no regresso ao Porto um garrafão de cinco litros de azeite caseiro de Vila Flor, puro ouro líquido. Vou ansioso por prová-lo. Irei-me lembrar da Eunice, das férias em Trás-os-Montes, da generosidade da terra e das pessoas.  Vou  contente por ter propiciado o encontro e momentos de alegria de  duas amigas de longa data,  desde há 60 anos.

Valbom da Trindade

Barragem da Burga

Valbom da Trindade

A caminho da barragem da Burga



segunda-feira, 15 de julho de 2024

Breve História de Portugal

 


Uma visão diferente da história de Portugal, a partir de "baixo", dos movimentos sociais e das dinâmicas revolucionárias, do povo em ação, procurando  a melhoria da sua condição material, afirmando-se como sujeito do seu destino.

As narrativas históricas  vigentes são contadas pelos vencedores - as classes detentoras do poder económico e político. Raquel Varela e Roberto Della Santa desfazem o mito do Estado-Nação benévolo, criação "burguesa" que reprime os movimentos  utópicos e solidários dos povos, oferecendo uma visão internacionalista da história, dos trabalhadores e operários,  unidos contra a opressão de um estado que não os representa,  mas sim ao capital transnacional,  contra a competição do mercado que os descarta com maus salários, precariedade e a ameaça constante do despedimento.

As revoluções liberais do século XIX não foram mais do que a substituição do ancient regime, de uma velha aristocracia latifundiária, por um regime burguês que representava uma nova forma de acumulação do lucro. A implantação da República foi uma revolução que surgiu no contexto do "capitalismo tardio" português,  incapaz de solucionar a permanente crise social do país. Mudou o regime mas manteve inalteradas as relações intrínsecas e estruturais de domínio de uma classe minoritária sobre a maioria miserável da população. Raquel Varela e Roberto Della Santa dão-nos uma perspetiva muito diferente dos discursos oficiais e da ensinada nas escolas.  As tensões e os conflitos sociais crescentes viriam a ser reprimidas com o "pacto" entre proprietários, monopólios económicos, igreja, polícia e exército no Estado Novo. O Fascismo.

De realçar a emoção com que Raquel Varela narra o período revolucionário pós 25 de abril. É evidente a sua simpatia  com o povo que tomou o destino nas suas mãos.

Gostei das constantes referências  a livros, filmes, autores,  contextualizando os diferentes períodos retratados no livro com os movimentos artísticos, demonstrando que arte, política e cultura são indissociáveis.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Por Este Rio Acima

 

Capa do álbum Por Este Rio Acima

Faleceu Fausto. Cresci a ouvi-lo. Foi sempre um dos meus músicos favoritos, português ou  estrangeiro. De manhã, antes de sair para a escola, ouvia na rádio “navegar, navegar, ir ao fundo e voltar”. Os acordes, o acordeão e os cavaquinhos, os ritmos do Minho, nunca mais os esqueci. Foi no início dos anos 80, o álbum “Por Este Rio Acima”  saiu  em 1982. Eu andava na escola primária ou a começar o 2.º ciclo.  Outras músicas me comoviam,  “O Romance de Diogo Soares”  punha-me com pele de galinha, fazia-me  chorar;  “Por este rio acima” levava-me à Índia, onde nunca estive, como se estivesse a viajar deitado num barco num rio de águas calmas, indolentemente levado. Foi  dos primeiros álbuns que comprei quando comecei a trabalhar. Continua em lugar de destaque, ciosamente guardado no estojo com outros CDs. Adquiri também o álbum “A Preto e Branco”, essencialmente por causa do tema  “Namoro”. Gostava do tom lamentoso da história, dos amores incorrespondidos e do final feliz. Conheço  trechos de outras músicas,  fáceis de ficar no ouvido: “coça, coça a barriga nicotina”, “Rosalinda se tu fores à praia, se tu fores ver o mar”, “ó rapariguinha leva a tua saia negra de cambraia”. O que é raro.

Fausto faz parte da constelação de intérpretes  extraordinários que ganharam relevância como músicos de intervenção no período antes e pós 25 de abril. Autoexcluiu-se desse  grupo ao enaltecer a história de Portugal da forma como o fez. Exaltando  a epopeia trágica e épica dos descobrimentos tocou num ponto sensível, num momento histórico  em que não era politicamente correto fazê-lo. As ex-colónias alcançaram a independência apenas 7 anos antes do lançamento do álbum,  as memórias da guerra colonial e do PREC  ainda estavam frescas. Acabou por se tornar incómodo para certos músicos conotados com a esquerda, é isso que deduzo das suas palavras na entrevista dada a Fátima Campos Ferreira, na RTP1,  recordada a propósito da sua morte.  Afastou-se, seguiu um rumo mais solitário, único e original, não tão conotado e engajado politicamente. Continuou  a ter sucesso, a lançar temas emblemáticos, como o hino ambientalista “Rosalinda”, contra a construção da central nuclear de  Ferrel,  cantada nos comícios e manifestações.  

Para Raquel Varela o álbum representa  "a epopeia do  povo, sem líderes, a subir o rio"  em contracorrente (Breve História de Portugal, pág. 400), numa alusão ao fim do período utópico que terminou  com a contrarrevolução do 25 de Novembro. Considero  que não foi esse o motivo. Na minha opinião era algo que vinha germinando,  intrínseco ao autor, à sua mundividência e experiência como filho de portugueses da diáspora. Um trabalho que  iria fazer de qualquer forma, independentemente do rumo da revolução. Outros álbuns abordam as descobertas, "Histórias de Viajeiros", "Crónicas da Terra Ardente" e "Em Busca das Montanhas Azuis", os dois últimos completam a trilogia iniciada com "Por Este Rio Acima" sobre a diáspora portuguesa. 

Nasceu num barco quando os seus pais viajavam para Angola, no ano de 1948, onde viveu 20 anos até entrar no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. Tinha raízes Beirãs, em Vila Franca das Naves.

Na entrevista a FCF referiu que queria entender a diáspora. Imagino o seu fascínio com  os milhares de portugueses - a maioria deles analfabetos e supersticiosos nunca tinha saído da sua aldeia e  serra - transplantados subitamente para novos territórios, em contacto com povos nunca antes vistos, o seu espanto com o que viam, inventando novas mestiçagens.  Fausto traduziu na sua obra esse contacto violento,  amoroso,  apaixonado, intenso, um dos motivos por que “Por Este Rio Acima” é dos mais extraordinários álbuns da música Portuguesa. Obra homenagem à "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, em que se baseou. Une o corridinho algarvio, o  vira minhoto, os fados lisboeta e coimbrão, ao exotismo  da música Indiana. Cítaras, tablas, tambouras, violinos, flautas de bambu, misturadas com ferrinhos, acordeões, bombos, cavaquinhos e guitarras portuguesas, harmoniosamente. A chamada World Music, de fusão, ou o que se quiser, antes de existir essa terminologia. Fausto estava muito à frente.  

Ele exprimiu como ninguém a grandiosidade e a tragédia dos descobrimentos,  incutindo através da  música o  fascínio  que sentia pela história de Portugal e a sua diáspora.  Uma parte significativa da obra  é o resultado do encontro das suas raízes, do seu talento artístico, intelectual e emocional, com o mundo.

O seu percurso não se resume ao álbum, outros referi ao de leve. Fausto seria na mesma um grande compositor com os restantes que compôs. Este, no entanto, extravasou a empolgante parte musical para se tornar marco incontornável da nossa cultura. 

Vi-o uma única vez ao vivo, no Porto em 2009, no espetáculo “Três Cantos”, com  José Mário Branco e Sérgio Godinho, no coliseu repleto, de lá de cima, da geral. Concerto memorável em que se respirou história, liberdade, portugalidade. Tive a  sensação de estar a  assistir a algo único e irrepetível. E assim foi, nunca mais voltaram a atuar juntos. Estavam já um pouco  velhotes, mas o seu talento continuava intacto. Interpretaram músicas conhecidas de todos, colocando três mil pessoas a cantar e a vibrar em uníssono temas do seu reportório, património emocional de Portugal. Três homens de vida cheia e de talento.

José Mário Branco  faleceu em 2019. Resta-nos apenas o Sérgio Godinho.

sábado, 22 de junho de 2024

A Rota das Cegonhas

O idoso está sozinho sobre a ponte do rio Cértima, na estrada que liga Murta a Oliveira do Bairro. O que faz ali observando  a translucidez da água, o fundo arenoso do leito baixo, as cegonhas voando rasantes aos arrozais irrigados pelas águas do rio?

Esporadicamente passa um  carro na estrada estreita e alcatroada, interrompendo a quietude do local.

Entretém-se a ver as enguias  enfiarem-se na areia e os lavagantes de pinças retráteis em riste, em autodefesa.

Fala dos arrozais. Cada lote é explorado por uma empresa diferente, cultivados com tratores que semeiam e mondam mecanicamente. O painel mais à frente informa  que a cultura foi introduzida na península  ibérica pelos muçulmanos no século XII.

Um bando de minúsculos  bicos-de-lacre pressente  a nossa aproximação e subitamente levanta voo dos arbustos.

O trajeto circular de 6,9 km desvia-se  da estrada municipal,  decorre quase sempre  em  estradões planos, de terra  batida, ao longo das margens do Cértima, por terrenos alagados, pejados de tabuas e caniços. Na aproximação à igreja da Murta, onde começa e termina, voltam a aparecer casas dispersas com quintais, terrenos agrícolas e matas abandonadas.  Bem delimitado, sinalizado, com sombra q.b. e painéis  interpretativos em alguns pontos. Fácil, bonito e agradável. 

O Link do percurso está aqui: PR1– OLB (Rota das Cegonhas)

Próximo de Oliveira do Bairro fica o restaurante Pompeu dos Frangos, já escrevi sobre ele neste BLOG. Excelente local para comer. A especialidade é o “Arroz de miúdos”, prato antigo que mantém o sabor tradicional e caseiro. Provei a sobremesa de “Arroz doce do Baixo Mondego”, achei uma forma interessante de valorizar a cultura local colocando no nome do prato a origem do produto.









Tabuas. 




Sobremesa de “Arroz doce do Baixo Mondego”

Bicos-de-lacre, Wikipedia

sábado, 15 de junho de 2024

River Trekking no Bestança

 


O Bestança nasce na serra de Montemuro, a 1220 metros de altitude. Corre rumoroso entre desfiladeiros apertados, rochas de xisto e uma vegetação magnífica, luxuriante, em direção ao Douro. 13 Km, apenas. De deslumbramento.

O ponto de encontro é a praça Velasquez, encontro habitual de grupos de caminheiros e excursionistas diversos aos sábados de manhã. Os participantes no river trekking da Wildest conhecem-se de anteriores passeios, tratam-se por tu e você. Pessoas habituadas a este tipo de saídas, com poder de compra. “Andei de  balão na Califórnia”, “Inscrevi duas amigas na viagem à Lapónia.” A conversa segue animada entre reformados e outros ansiando pela reforma, contando os feriados e as pontes para se inscreverem no maior número possível de saídas da agência. “A partir de Setembro, só temos o 1 de Novembro a uma sexta-feira. Os outros feriados calham ao fim-de-semana", diz uma professora farta de dar aulas. Na carrinha de 9 lugares apenas um passageiro segue calado, vai encostado à porta, reservado. Foi o único que se manteve em silêncio, à margem dos restantes caminheiros, enquanto aguardavam a chegada do transporte.

Paragem em Marco de Canaveses para o café da manhã. Decorre a feira concorrida no parque da cidade.  Vendedores com os artigos expostos na relva da berma da estrada, de aspeto improvisado. Idosos  e emigrantes chegados de França vestidos com a sua melhor roupa, ciclistas e motoqueiros de fim-de-semana, clientes a entrar e a sair do café. Homens de pele tisnada pelas muitas horas de trabalho em contacto com o sol inclemente nas obras e no campo. O camião debita música alta dos  Coldplay, circula na  avenida a fazer publicidade no painel eletrónico  à  oculista da terra.  Rebuliço.  

A estrada sinuosa, alcatroada,  passa perto de Baião. Segue através de colinas verdejantes de vinhedos, matas e socalcos que descem até ao Rio Douro, por casas e aldeias de xisto dispersas ao longo do trajeto. Vivendas imponentes abandonadas. Hoteis. A linha do Douro.  Portugal.

Chegamos a Ferreiros de Tendais. Mudamos de roupa, vestimos calção de banho,  calçamos os botins de água. Levamos uma pequena mochila às costas. O resto do material fica numa das carrinhas. Descemos por caminhos rurais, ao lado de casas rústicas de granito,  quintais, arvoredo frondoso, evitando as caganitas  de cabra nas pedras da calçada. Finalmente o rio Bestança.  A água límpida corre  entre as gargantas apertadas, sobre rochedos escorregadios alisados pela corrente e fendas xistosas. Loureiros selvagens emanam das folhas rasgadas um intenso cheiro aromático, sem comparação com o comprado nas lojas. Natureza esplendorosa, generosa. Caminhamos com a água pela cintura, contornando rochas, colocando as mãos nas pedras para não escorregar, com cuidado, devagar.  O Inácio amarra a corda ao tronco do amieiro para ajudar os caminhantes nas passagens mais íngremes. Sinto-me um Tarzan, balouçando-me, dando lanço com as pernas contra o penhasco.  Cruzamos moinhos abandonados, cobertos de musgo e fetos nas telhas partidas, sem portas e janelas.

O grupo senta-se na levada, repousa  as pernas dentro da água fria. Apetece mergulhar na poça translúcida. O Inácio diz que  no fim do percurso há uma praia fluvial com cascata para tomar banho.  

Mulheres maduras tiram selfies, posam em cima das rochas com lagoas  por trás, colocam os dedos em forma de V deitado, sorriem para a câmara e fazem beicinho com os lábios, como adolescentes. Eu também tiro muitas fotografias, não me canso de tirar, as panorâmicas são sempre surpreendentes. Até que me farto. Pareço os miúdos sempre a tirar fotografias, sem apreciar a paisagem, viciados em imagens digitais.  A partir de agora vou tentar apreciar a realidade, imbuir-me na natureza, no seu espírito, esquecer o vício de pegar no telemóvel  por tudo e por nada.

Chegamos ao fim, à praia fluvial de Pias. O acesso ao rio por uma das margens está vedado por um particular e na outra margem o parque de lazer não tem acesso direto à água. Desce-se por uma escada, contornam-se rochas e o caminho para a cascata está cheio de ervas altas.  Não é fácil mergulhar, o único senão deste trajeto esplendoroso.

O grupo reúne-se na esplanada do Snack-bar “Refúgio do Bestança”. O Homem calado senta-se na mesa ao lado a beber um fino, meto conversa com ele. Diz-me: Não conheço mais nenhum sítio assim. Venho muitas vezes, já fiz a caminhada desde a nascente. Gosto de ficar em silêncio a apreciar a paisagem, sento-me  debaixo da vegetação nas rochas do rio, molhando os pés, dando mergulhos quando há mais água. O Bestança varia com a época do ano e a hora, cada dia é diferente. As neblinas dão-lhe um ar encantado, parece um conto de fadas, misterioso. Por vezes, venho sozinho, de camioneta e à boleia, não conduzo e não gosto de grupos grandes. Estar em contacto com a natureza, sair de casa, é uma necessidade imperiosa para mim.

O Homem, que ao início da manhã parecia rude e  pouco sociável, revelou-se uma pessoa bastante delicada. Como as impressões iniciais e o aspeto enganam.





















sábado, 1 de junho de 2024

Ensemble Resonet (no mosteiro de Grijó)

Programa do 30.º FIMGPrograma do 30.º FIMG


O alaudista Fernando Reyes, fundador do Ensemble Resonet, apresenta a  origem, contexto musical e histórico dos temas tocados. O nome do apóstolo nas  diversas línguas europeias, Giacomo, Jaques, James, Tiago,  deriva da raiz comum: Xaco, Jaco, Yago, originando o termo “Chaconas”: as Cantigas de Santiago.

Levadas pelos peregrinos aos respetivos países, adquiriram caráter sagrado e litúrgico. Representadas em  cerimónias religiosas e profanas, improvisadas nos convívios e celebrações espontâneas dos peregrinos que se encontravam no caminho. Tematicamente diversas, o Ensemble agrupou-as em cinco séries: A Canção do Bom Camiño; A Canção da Boa Vida; A Canção do Amor e da Morte; A Canção do Paraíso; A Canção de Santiago.

Grandes compositores europeus do  renascimento compuseram  Chaconas, baseando-se nos seus ritmos e melodias características.  Ouviram-se temas de Cláudio Monteverdi e de outros autores menos famosos. Destaco a Canção do Amor e da Morte, da autoria de Robert de Visée, 1699, cantada na língua original, o Francês,  pela soprano Mercedes Hernandéz. Entendi partes da letra: falava do amor absoluto e incondicional, de paixões trágicas  marcadas pela morte. Foi o momento mais arrebatador. Pesquisei no Youtube e o mais parecido que encontrei foi este instrumental.  Não me atrevi a fazer a gravação durante o concerto.

Concerto de abertura do 30.º Festival Internacional de Música de Gaia, de entrada gratuita. Realizado no majestoso cenário da nave do mosteiro de Grijó, perante um público que não a encheu. Cerimónia bem diferente das missas habituais realizadas na nave,  elevando a mente e o espírito a níveis próximos do divino, alcançando o que as epístolas não conseguem. 

Fotografias retiradas do Facebook do FIMG (Aqui)