domingo, 6 de fevereiro de 2022

Vale de Batuecas

Novamente as lendas. Esta diz que os Batuecas eram um povo selvagem que vivia escondido e livre neste vale profundo, longe do mundo, das convulsões das guerras, dos horrores da morte violenta e das trevas da superstição que assolavam a Europa. Colhiam os frutos selvagens, o mel silvestre, apanhavam esporadicamente um animal que descia dos contrafortes da serra para saciar a sede nas águas cristalinas do rio: ursos pardos, lobos e outros de grande porte que hoje são apenas uma miragem. Protegiam-se nas grutas das intempéries e do frio da noite, desenhavam nas paredes gravuras que representavam cenas de caça, mulheres de peitos grandes e ventres largos, simbolizando a fertilidade, e homens de falos eretos. Figuras rupestres que hoje se podem ver em algumas rochas. Viviam seminus, sem hierarquias, uma vida pagã, adorando a natureza e o seu panteão de deuses animistas. Tudo era sagrado: o sol, a lua, a água do rio, os animais, o bosque. Mas esta vida pagã e sacrílega tinha de acabar. Os monges Carmelitas chegaram e construíram no vale do rio o mosteiro de San José del Desierto.  Para mostrar que a santidade e a beatitude podia ser alcançada de outra forma, pela renúncia e oração, tentaram convencer os Batuecas de que, o que faziam, era errado, assustando-os e coagindo-os com o fogo dos infernos, convencendo-os a converterem-se à fé cristã, forçando-os a aceitar novas dogmas. O certo é que no século XXI ainda existe o convento, onde seis monges vivem isolados do mundo, cercados por um alto muro de xisto que contorna o mosteiro e a respetiva quinta. De fora são apenas visíveis  gigantescos ciprestes e, se espreitarmos por uma frincha, conseguimos ver o barraco que serve de arrecadação às alfaias agrícolas e as janelas fechadas das selas. Dos Batuecas resta apenas a lenda e o mito de um misterioso povo pagão que habitava o vale. 
Os monges organizam retiros espirituais. No mínimo duas noites. Aceitam reservas apenas pelo WhatsApp.
Já não me lembrava de como era descer uma serra com estradas estreitas e precipícios vertiginosos. Fomos na camioneta de La Alberca até ao início do trilho no Vale do Batuecas, sete quilómetros com a respiração suspensa em cada curva que fazia, muito lentamente, travando a fundo, entrando em contramão com o chassis completamente fora do eixo. A prova cabal de como o local para onde nos dirigimos é um ermo  isolado e de difícil acesso. 
Caminhamos sempre pelas margens do rio até à cascata de El Chorro, numa distância aproximada, de ida e volta, de 12 km. No início seguimos ao longo do convento, num caminho de terra coberto de raízes e debaixo da sombra de teixos centenários. Um trilho encantado, misterioso e mágico, num isolamento perfeito para a contemplação e os retiros espirituais que os monges organizam.
 No muro do convento uma laje de ardósia com um poema eloquente de São João da Cruz: 

“Buscando mis amores 
Iré por esos montes y riberas; 
Ni cogeré las flores
Ni temeré las fieras, 
Y pasaré los fuertes
y Fronteras.” 

Há algo de que só agora me apercebo e que já ontem havia estranhado. A natureza no estado,    dito “selvagem”, está, em muitos locais, repleta de postes de eletricidade com fios condutores, estradas, antenas de telecomunicações e torres eólicas, mesmo nos parques naturais e zonas protegidas. É cada vez mais difícil olharmos  o horizonte e não vermos a intervenção humana em toda a parte. A nossa mente está habituada a determinadas imagens e na ausência delas não se apercebe imediatamente que elas não estão lá. Não me lembro de ter visto estes artefactos humanos na Peña de Francia e hoje, definitivamente, não há nada disto. De facto, é um privilégio ainda encontrar sítios assim. Estarmos por momentos e durante algumas horas num estado verdadeiramente primitivo. Não há rede móvel no trilho. Para onde olhamos vemos apenas as arestas rochosas das fragas que rodeiam o vale, o manto verde por onde o rio corre escondido, os arbustos que crescem nas rochas. Só exemplares autóctones: medronheiros, azinheiras, sobreiros, pinheiros mansos, gilbardeiras, carquejas. Sim, aqui posso dizer: a natureza ainda é verdadeiramente selvagem. Talvez ainda hajam lobos. 

A cascata de El Chorro é uma queda com 15 metros de altura de difícil acesso, águas gélidas e translúcidas. Fizemos o nosso almoço volante ao redor da lagoa. Um dos caminheiros tem um bastão verdadeiramente espetacular e artístico, parece uma tuba. No entanto, ele desmonta-se. Quando é para comer, o Miguel desarticula o bastão em quatro pernas e encaixa o tampo que leva na mochila, montando uma pequena mesa, onde coloca uma toalha com enchidos e queijo. Os outros companheiros levam vinho e o respetivo copo para a festa. Uma das frases que me ficou na memória destes dias é esta: “não venho para caminhar, venho para comer”. Fazia-me alguma confusão que uma pessoa que vem caminhar 15 km, disse-se isto. Percebo, agora, o seu autêntico significado. Considero uma arte este estilo de caminhada e de fruição da vida, que não está ao alcance de qualquer um. 

 Visitamos no regresso a Portugal a aldeia de Mogarraz, um belo Pueblo tradicional de casas de madeira e varandas floridas, que se distingue pela exposição permanente de retratos dos seus habitantes pintados nas paredes por um artista local. Tudo começou quando ele acedeu ao arquivo fotográfico da aldeia, onde constavam muitas fotografias, tipo passe, tiradas nos anos 60, de forma a evitar a deslocação dos habitantes a localidades mais afastadas para tirar o equivalente ao nosso bilhete de identidade. Hoje existem mais de quinhentos retratos pintados por si, dispersos pelas paredes das casas, dando um aspeto muito sofisticado ao pueblo.
Convento Carmelita de San José del Desierto


As raízes a atapetar o chão no vale encantado

O Vale Encantado ao longo da margem do Batuecas

O rio Batuecas






 El Chorro y El Guapo



Pueblo de Mogarraz

Mogarraz

Mogarraz

Mogarraz


Sem comentários: