sábado, 31 de agosto de 2024

Sobre o Combate Contra a Mudança Climática (António Cândido Franco)

 


As situações de exceção, como foi o caso da pandemia de COVID,  tornar-se-ão mais  comuns  face ao agravamento dos problemas ambientais e sociais causados pelas alterações climáticas. A liberdade individual desaparecerá em nome da manutenção da segurança e da ordem social,  desígnio definido pelos Estados - nação autoritários, deixando intocável o sistema económico responsável pelo caos ambiental - o capitalismo tecno industrial. 

De forma a minimizar os danos sem alterar o sistema responsável pela escassez crescente de recursos e  o consequente colapso social,  prolongando ao máximo  a sua sobrevivência e os privilégios da minoria que dele beneficia,  os estados tenderão a garantir a gestão centralizada e autoritária da nova escassez – o ecofascismo. Apoiados por meios de controlo e vigilância massiva sobre as populações, cada vez mais sofisticados e subtis, criados pela inteligência artificial e a nanotecnologia: 

 Nunca a invisibilidade do poder foi tão absoluta como na era da informática – vigiar tudo sem sequer ser pressentido – mas também a vigilância nunca foi tão longe, atingindo os mais recônditos recantos da nossa privacidade e interioridade” (P. 61).

Antônio Cândido Franco defende que o controlo do estado sobre os cidadãos se processa por duas vias, ambas  em ação:  uma por meio  de uma coletivização dos meios de produção  e concentração de poderes num estado autoritário, a via Leninista, ou Chinesa, radicalizando o princípio da “obediência ao estado”; a outra,  pelo crescimento da extrema-direita, a qual,  por meios jurídicos, criará formas artificiosas dos países ricos garantirem o acesso privilegiado à  escassez crescente de recursos às suas populações autóctones.

Em ambos os casos assiste-se ao empoderamento da Megamáquina, conceito de Lewis Munford, segundo o qual o estado moderno controla todos os domínios da vida económica, social e privada. Uma roda dentada imparável num processo gigantesco de produção e extração planetária de recursos.

A alternativa é a democratização dos meios de produção, o  controlo pelos trabalhadores. A valorização das artes e dos ofícios é o modo mais adequado de preservar a vida no planeta, partilhando conhecimentos,   discutidos e acedidos por  todos – a convivialidade, de Ivan Illich. Ao contrário dos atuais  modelos de engenharia económica e social dispostos por uma minoria  de especialistas e  políticos profissionais ao serviço da elite privilegiada, tomando decisões insufragadas pelas populações. 

O ensaio está disponível na livraria Utopia.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Viagens com o Charley

 


A vida é feita de encontros casuais nos quais podem acontecer momentos de intensa comunhão, como que mística, entre pessoas que se vêem uma única vez. É o caso do Cognac partilhado ao fim da tarde com a família de Canadianos Franceses na carrinha Rocinante, batizada por John Steinbeck, em homenagem ao cavalo de Dom Quixote. 

O livro foi escrito em 1960, tinha o escritor 58 anos. Fez a viagem para “conhecer a América” numa carrinha adaptada por si, equipada com tudo o que necessitava para o seu conforto, tendo como companheiro o caniche azul acinzentado, Charley. Descrito  com humor e ironia, como um ser inteligente, revelador de sentimentos e opiniões, demonstradas nas  expressões do olhar, movimento das orelhas, posturas corporais e ruídos.

No início do périplo por alguns estados observa viaturas idênticas que encontra estacionadas nos parques e a circular nas autoestradas.

Em  Portugal não havia nada parecido. Quem viajava da mesma forma  vinha de fora. Um Francês que alguém conheceu aventurou-se nesses anos numa roulotte - vi as fotografias a cores de vinhedos e pessoas do Douro tiradas por ele.  Por outro lado, partia-se de carro de outros países europeus em direção ao Afeganistão e Índia. Estavam na moda,  eram mecas hippies. Países exóticos onde ainda se encontravam homens de sabre, a cavalo. Tudo muito distante.

“As raízes estavam na propriedade da terra, nos bens tangíveis e imóveis”,  reflete o autor  sobre a ambição dos colonos americanos e o seu avanço para oeste.

E se o homem nunca tivesse tomado posse de qualquer terra, quais seriam as suas raízes? Seriam, porventura, o planeta. Não existiriam países, lugares fixos. O planeta seria o seu lugar. Todos os homens teriam a mesma casa e a mesma raiz – a Terra. Não haveria o sentimento de posse, não existiriam guerras e os problemas ambientais seriam sentidos por todos da mesma forma, em qualquer lugar.  

A viagem é um pretexto para falar da história do país, refletir, divagar e filosofar ao sabor dos quilómetros, das paisagens e das pessoas que encontra.

sábado, 17 de agosto de 2024

Balsa, Cidade Romana

 

Ânfora

O hall de entrada do Museu Municipal de Tavira confronta imediatamente  o visitante com a história e antiguidade da cidade: o buraco fundo e circular, protegido pelo vidro no chão, cozinha fenícia onde os marinheiros chegados de Cartago e Trípoli faziam libações a Baal, deus dos ventos e das tempestades. 

As ruínas atestam a antiguidade e a sobreposição de povos e culturas que passaram pelo Algarve,  milenares e ricas que  deixaram vestígios e influências na região. 

Outro povo que se estabeleceu posteriormente na península Ibérica foi o Romano. No museu está a decorrer  a exposição sobre  Balsa, a mais importante cidade Romana do Algarve. As ruínas foram encontradas na freguesia de Luz de Tavira, tinha vários hectares de dimensão,  templos em que as  famílias  ricas faziam oferendas aos deuses da fortuna e anfiteatros onde se davam combates de pugilistas, oferecidos para entreter o povo.  

Ânforas, aras e pequenos objetos do quotidiano, desenterrados nas escavações arqueológicas, desvendam pormenores e histórias de Balsa, os seus contatos e relações comerciais com outras cidades e povos do império,  assim como aspetos da vida intima dos  habitantes, alimentação, religiosidade e higiene.  

No edifício decorre outra exposição, esta dedicada à Dieta Mediterrânica. Tavira foi a representante de Portugal na UNESCO, entre outras cidades europeias,  no comité de atribuição de Património Imaterial da Humanidade. Composta essencialmente  por fotografias de comunidades em convívio e atividades agrícolas, expostas em salas com os utensílios mais comuns nas cozinhas tradicionais.

A dieta representa uma alimentação  saudável, baseada nos produtos locais, obtidos ciclicamente, assim como um modo de vida lento, de acordo com as estações do ano e aquilo que a terra e o mar oferecem em cada período. 

A atribuição do título de património imaterial da humanidade representa não só a importância da dieta Mediterrânica na saúde e hábitos das pessoas, mas também o reconhecimento de  práticas e atividades económicas  ancestrais que moldaram  comunidades e estilos de vida responsáveis pela coesão do território e pela permanência de tradições sociais ao longo de séculos. 

Museu Municipal de Tavira




Cardeal no Castelo

Pormenores de Tavira



sábado, 10 de agosto de 2024

Malmo

Turning Torso

Fico sempre nervoso quando atravesso as fronteiras e tenho de fazer check-in nos aeroportos, apesar de ter tudo em ordem. Faz parte de mim: penso que vão implicar com qualquer coisa, que os vasilhames não tem o volume adequado, que me esqueci de algum documento. Ouvi no comboio a informação sonora para preparar o documento de identificação. Iria entrar noutro país. Nada me foi pedido, tudo correu tranquilamente ao atravessar a ponte de Oresund.

A Suécia e a Dinamarca são países do espaço Schengen, cada qual com a sua unidade monetária. Ambos integrados na União Europeia, fora da zona Euro. Mais uma demonstração de que a UE é um espaço de  vulnerabilidades e desigualdades, dando a falsa ilusão de igualdade económica e social  entre os países por fazerem parte do mesmo espaço. Portugal está numa situação de grande atraso económico. É visível, sente-se. De que serve a UE se as desigualdades continuam a acentuar-se? Se existem países dentro da UE com moeda própria e não se regulam pelas mesmas regras e apertos bancários?

A Dinamarca vai exercer maior controlo sobre as entradas vindas da Suécia. Os problemas com os gangues aumentaram, existe o receio de atravessarem a fronteira e extravasarem as suas lutas violentas. A Suécia é um país cosmopolita conhecido pelas políticas de asilo, por receber milhares de refugiados – um dos países mais acolhedores do mundo. Mas com problemas graves de integração: milhares de jovens, filhos de emigrantes, organizaram-se em bandos marginais. São recorrentes as notícias de conflitos e erupções de violência nas principais cidades. Algumas destas notícias surgiram no meu telemóvel e não foi necessário ligar o  GPS, bastam os dados móveis e o servidor do país para aceder à localização. É medonha a falta de privacidade e o que as empresas podem fazer sabendo onde se está. Neste caso, foram apenas notícias, podiam ter sido lojas, produtos, restaurantes. Tudo com  intuito comercial, de induzir comportamentos.

Não me senti inseguro, pelo contrário, vi um ambiente multicultural descontraído, pessoas de várias religiões e etnias passeando nas ruas pedonais e jardins, usufruindo o dia de sol, a animação que decorria no centro, almoçando nas inúmeras barraquinhas de streetfood de muitos países.  Uma cidade mais informal  do que Copenhaga, igualmente limpa, organizada, com lago e esplanadas dentro  de um imenso jardim. Pessoas na relva deitadas ao  sol, a remar. Fruindo a vida.  

Estávamos a consultar o mapa e de imediato uma senhora Sueca perguntou se precisávamos de ajuda. Foi simpática e prestável, deu-nos indicações úteis. A ideia pré-concebida de que as pessoas do Norte são antipáticas caiu ainda mais por terra, o ambiente era familiar e descontraído,  sentia-me bem.  

Ao pagar a garrafa de água mineral na caixa registadora o  preço foi  duas coroas mais alto  do que o indicado na prateleira da marca. Como estava a sentir as pessoas mais calorosas e abertas atrevi-me a perguntar ao caixeiro a razão da diferença: - É a reciclagem – disse ele – quando entregar a garrafa no local de recolha devolvem a diferença.

Percebi então o motivo de ter visto em Copenhaga, e agora em Malmo, pessoas de aspeto andrajoso, mendigos ou perto disso, estrangeiros, com enormes sacos às costas, tipo pais natais,  a remexer o lixo nos contentores -  procuram  latas e garrafas de plástico para fazer dinheiro.    Uma medida ambiental que contribui para manter as cidades limpas e incentiva a reciclagem.

Os pagamentos nas barraquinhas só podiam ser feitos exclusivamente em cartão bancário, ingenuamente tínhamos levantado dinheiro e notas que não podíamos usar. Procuramos um restaurante mais afastado que as aceitasse. Encontramos um vietnamita com bom aspeto, vazio. Pedimos sopa, Pho. Habitualmente comemos mal. Tirando a prodigalidade do pequeno-almoço incluído na estadia, em que nos empanturrávamos, passávamos muito tempo sem comer, fazíamos uma refeição ligeira ao fim do dia com as sandes, fruta e salada que comprávamos nos supermercados. Comer fora, em restaurantes, é exorbitante – fiz a conversão mental do menu por pessoa num restaurante no centro de Copenhaga, deu 160 Euros. Estava-nos a saber pela vida a sopa quentinha com massas suculentas e os pedaços de legumes soltos na tigela. Apenas nós na sala.  Entrou um casal e dois filhos. Não tive dúvidas – eram tugas! É incrível como a nossa fisionomia nos pode identificar. Em Portugal, não nos apercebemos, mas no estrangeiro, entre outras nacionalidades,  os nossos traços tornam-se muito distintivos. Não havia dúvidas, eram Portugueses. Sentaram-se atrás de nós a falar baixinho. Nós também falávamos baixinho, não querendo nada com os nossos compatriotas, evitando identificarmo-nos. Era confrangedor, pensava: O que vou dizer a estes tugas?  Uma situação bizarra: em Malmo, os dois únicos grupos de  clientes no restaurante vietnamita, que não se conheciam de lado nenhum, eram tugas. Por fim, ganhei coragem, virei-me para trás e perguntei: - Desculpem estar a interromper, percebi que são portugueses. Chegamos hoje a Malmo, andamos a visitar a cidade, talvez nos possam indicar algum sítio interessante que conheçam…. – olharam para mim boquiabertos, de olhos esbugalhados, ainda mais surpreendidos do que eu quando os vi a entrar. Palavra puxa palavra,  descobrimos que estávamos no mesmo hotel de Copenhaga. Há cada coincidência!

Não nos esclareceram muito. Tal como nós, tinham saído de Copenhaga e estavam na cidade pela primeira vez. Foram simpáticos. Desejamos-lhes a continuação de umas boas férias, saímos do restaurante e caminhamos em direção ao mar, seguindo a orientação do Turning Torso. Um edifício moderno de 50 andares  que víamos ao longe, despontando mais alto do que todos os outros.









quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Roskilde

 


Apesar de gostar da minha condição de turista sou sempre um estranho onde quer que vá, por esse motivo a necessidade de deambulação permanente, de encontrar constantemente  sítios novos para esquecer a estranheza e o desconforto de não estar na minha terra. Ao fim de dois dias em Copenhaga soube bem sair da cidade e ver outra Dinamarca, mais genuína porventura. Conhecer os meios de transporte para outros lugares e  verificar com agrado que  continuam a ser eficientes e confortáveis. O comboio tinha “Carruagens de Silêncio” anunciadas por  um cartaz na porta de entrada que exorta os passageiros a fazer silêncio absoluto, a não usar telemóvel, ouvir música e conversar com os colegas do lado. Como se as restantes carruagens  não fossem já suficientemente silenciosas! Viajamos numa dessas carruagens, os passageiros liam, mantinham-se calados e  nós, mais uma vez, tivemos de cochichar - o estritamente necessário - movendo-nos o mínimo possível no banco, com receio de fazer ruídos perturbadores.

Saímos da camioneta numa paragem  afastada da entrada no museu, caminhamos ao lado do jardim onde se  realiza o festival de música de Roskilde, dos mais antigos e importantes da Europa.  Sentia-se o ambiente  pesado, heavy, fulanos de roupa preta e casacos de cabedal moviam-se furtivamente, bebendo cerveja nas mesas como se estivessem num evento clandestino.  Mal os ouvíamos.  A Dinamarca é assim: as pessoas fazem silêncio. Eu, que aprecio o silêncio, penso que começaria a achar monótono tanto silêncio.  

O museu do Rock, Ragnarock, foi dos mais loucos e divertidos que visitei até hoje. Fica num edifício bizarro, visível ao longe, de cores garridas. Ao entrar no elevador para o segundo piso, a musica psicadélica começa imediatamente a tocar preparando os visitantes  para a viagem alucinante prestes a começar. O primeiro encontro, após a abertura do elevador, é a sala de luzes fluorescentes, dedicada à influência das drogas e  ácidos no mundo da música. Interagimos com o painel eletrónico, escolhemos  cores e  padrões geométricos, brancos e verdes fluorescentes, que põem a cabeça zonza. Vimos a história da música moderna, do jazz ao rock, da musica POP à techno, as principais bandas da Dinamarca e fora dela, acompanhamos interactivamente as exposições nas várias salas.

Tive a oportunidade de fazer uma gravação em estúdio e de enviar o filme para o meu email, que guardo como testemunho de um momento que  me dá vontade de rir sempre que o vejo.

Os estudantes saiam da escola politécnica em pequenos grupos, envergando macacões, fatos  de trabalho das oficinas, sujos de tinta e poeira. Passaram ordeiramente à nossa frente, indiferentes aos estrangeiros. Conversavam pouco entre si, e baixo. Estes adolescentes  seriam o equivalente aos nossos CEFs: problemáticos, avessos à escola. Em Portugal, o normal seria ouvi-los a berrar e a gesticular, encavalitando-se e dando tabefes uns nos outros. Aguardávamos o autocarro, eles entraram na paragem anterior. Quando parou,  vinha apinhado. Ocupavam todos os lugares sentados e o corredor, pareciam pilhas de legos encaixados na caixa, bonecos estáticos. A minha filha chamou-lhes NPC – O que significa isso? – perguntei – No Playable Characters, – disse ela - personagens dos videojogos sem qualquer intervenção na ação, ocupam o espaço, são cenário. -  Não entramos, preferimos caminhar 45 minutos  até ao centro da cidade e ao Museu Viking.

Comecei a ouvir uma melodia francesa conhecida, fiquei encantado com o ambiente sonoro, espontâneo e tranquilo que saia do piano no centro da praça, do lado da catedral. Lamentei em Portugal não haver pianos nos centros das cidades disponíveis para serem tocados por todos. Ouço falar Português e não é que quem toca é uma Portuguesa?!

Não há um único carro estacionado ao redor da catedral. Espaços amplos e abertos para serem caminhados tranquilamente.  Casas medievais de paredes garridas e varandins de madeira. Chão de tijoleira. A luz do sol a incidir no fiorde por trás das chaminés. Tudo calmo, o tempo parado.

Entramos no museu Viking. O esqueleto de um dos barcos no grande salão pertenceu a um chefe, ao mesmo tempo líder  religioso e militar. O barco foi enviado numa expedição às costas da Irlanda, onde naufragou e  foi encontrado séculos mais tarde,  perto de Dublin.

Os Vikings eram guerreiros, mercenários, piratas e saqueadores.  A maioria das pessoas nos seus aldeamentos  dedicava-se, porém,  à agricultura, pesca, artesanato. Viviam em autossubsistência, isolados nos fiordes, protegendo-se dos inimigos com barcaças e postes que colocavam a unir as margens, impedindo-lhes a entrada. Quando os bens escasseavam, a  fertilidade da terra e do mar era insuficiente, os chefes organizavam expedições, raziando costas longínquas. Chegaram ao mar Negro, a Itália, à península Ibérica, estabeleceram colónias na Ásia Central, criaram a base das futuras  nações Russa e  Ucraniana. Estabeleceram-se na América do Norte, Groenlândia, Islândia. Estavam divididos em 4 grandes grupos, falando uma língua parecida com o Dinamarquês: Suecos, Dinamarqueses, Noruegueses e Gautos. Eram politeístas, os deuses comportavam-se como os humanos,  irascíveis e vingativos. Adoravam seres sobrenaturais que  fazem parte da mitologia e do imaginário de romances como “O Senhor dos Anéis”: elfos, anões, gigantes,  valquírias. Não foram romanizados como os outros povos germânicos por se encontraram mais distantes do centro do império, mais a norte. Foram os últimos a ser cristianizados, mantiveram os rituais pagãos até  tarde, até ao dealbar do primeiro milénio.

Era um navio de guerra, Skeid, levava 60 a 70 remadores, permitiam-lhe avançar no mar sem vento e  vela desfraldada. Navegadores intrépidos e temíveis,  atacavam as costas, raptavam e violavam mulheres – li algures que a predominância de pessoas loiras em muitos lugares da costa portuguesa deve-se ao contacto com os Vikings.

O chefe foi sepultado com 11 cavalos, os cães de estimação, as suas mais finas peças de roupa, feitas dos melhores tecidos importados de Bizâncio, o tabuleiro de madeira do seu jogo favorito. Uma mulher velha, o anjo da morte, empilhou os pertences sobre a sepultura, serviu cerveja sagrada à tribo, que velou o corpo dias seguidos. Ela própria matou a jovem escrava que se voluntariou para acompanhar o chefe na vida do além. Ao fim de alguns dias os bens do morto foram soterrados sob uma meda de terra onde permanecerem até serem saqueados pelos ladrões de túmulos. 



Catedral


Museu Viking

Ragnarock




quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Copenhaga

 

A Pequena Sereia


Decorria na Radhuspladsen a  semana Gay Pride. No palco montado em frente da Câmara Municipal  atuariam  drag queens burlescas,  DJs, haveriam concertos noturnos de música eletrónica com feixes de luzes psicadélicas, em ambiente rave.  Estavam programadas atividades e jogos para famílias com  crianças, debates, mostra de filmes,  exposições de livros e encontros com escritores e artistas. Viam-se por toda a cidade cartazes alusivos ao evento, promovendo a inclusão, o orgulho, a tolerância. À exceção de alguns casais gay e de um fulano quase nú com faixas de cabedal a cobrir o corpo, o ambiente era bastante convencional.  Casais idosos, hétero,  muçulmanas de hijab, pessoas indiferentes  passavam na praça como quem vai beber cerveja ao café  do lado ou ver o jogo de futebol.  Mendigos de ambos os sexos, andrajosos,  sentados no chão duro de granito,  alheados,  semiescondidos atrás das colunas e dos tapumes que delimitam o espaço.  Diria que a semana do orgulho gay é promovida por uma cidade que pretende  estar na vanguarda  da tolerância e do progresso, porque é fino, fica bem e vende. Tudo tranquilo e normal, como deve ser.

Pela Frederiksbgade,  longa rua pedonal, animada de lojas, restaurantes, monumentos e museus, chega-se ao  Christiansborg.   Se tivesse de conhecer a história da cidade por ordem cronológica, este seria o primeiro palácio a visitar. É o mais antigo, construído no local onde o bispo-guerreiro, Absalom, edificou, por ordem do rei Valdemar, a primeira fortaleza no século XII, que daria origem à cidade. A história do palácio e da cidade está disponível na internet,  informação extensa, repleta de acontecimentos empolgantes e momentos trágicos, ao longo de 900 anos. É imprescindível fazer a visita, ver as catacumbas, as cavalarias reais, os coches, a igreja, os salões cerimoniais. Fiquei entusiasmado e por outro lado senti-me um  ignorante em relação à rica história da Dinamarca.  Portugal é apenas mais um país com uma história interessante, entre outros.

Seguindo a mesma ordem cronológica visitaria de seguida o Rosenborg, obra do rei Frederico IV, observaria os esplendores do absolutismo, salões imponentes, tesouros reais, coroas, joias, armamento. Por fim, o Amalienborg, onde decorre a exposição dedicada ao rei Frederico X. Subitamente entronado por abdicação da mãe, a rainha Margarida II. Retratado como  estrela POP:  jovem, culto, desportista, humanitário, com a esposa e os quatro filhos, em visitas de estado aos súbditos inuit da gronelândia, esquiando, dançando. Em dezenas de fotografias a preto-e-branco, grandes planos do nascimento à coroação, em janeiro de 2024, aos 56 anos. Em  filmes: a gala dos 18 anos, em 1986; o discurso de aceitação na varanda do Christiansborg, com a primeira-ministra, Mette Frederiksen, ao lado.

Considero uma idolatria exagerada. Não seria possível fazer algo do género em Portugal, primeiro, porque não é uma monarquia, segundo, porque o país não tem o hábito de celebrar e glorificar da mesma forma as suas figuras públicas, nem em vida nem em morte. Os Dinamarqueses não são  complexados a este respeito como os Portugueses,  mostram-se mais orgulhosos dos seus símbolos e, ao que parece, bastante fervorosos da monarquia. Dezenas de milhares de pessoas ovacionaram da rua o novo rei em Janeiro de 2024.

O monumento à Pequena Sereia, homenagem ao escritor Hans Christian Anderson, baseada num conto com o mesmo nome. Esculpida em bronze em 1913, colocada em cima da rocha ao pé dos jardins do kastelet. Depois de ter visto edifícios imponentes e conhecer uma cidade diversificada, colorida e rica em história,  intrigava-me o facto de uma pequena escultura ser o ex-libris da  cidade, provavelmente o mais conhecido e visitado. Talvez fosse exagero causado pelo turismo de massas, amplificando o número de visitas, ignorando monumentos  mais merecedores e representativos da história da cidade. 

A escultura não tem nada a ver com Copenhaga, podia ter sido colocada noutro local, conquanto  fosse na Dinamarca, país natal de H.C.A., ou em Odense, cidade onde nasceu. Li alguns contos do escritor quando era miúdo, vi filmes animados inspirados neles. As crianças são as principais personagens, aquelas que pela sua ingenuidade e pureza descobrem as malfeitorias dos adultos, como no conto “O fato do rei”. Cujas histórias, esperançosas e redentoras, comovem leitores em todo o mundo, que  inspiraram o bailado clássico “O quebra-nozes”. A estatueta é singela e suave, delicada, distante do rebuliço dos locais centrais,  solitária e nostálgica  como muitas  personagens. Vê-la trouxe-me a emoção dos contos infantis, compreendi o motivo de ser tão visitada, de se ter tornado num símbolo da cidade e do país. Contudo, a relação da estátua com a cidade e os turistas tem sido tumultuosa, várias vezes lhe deceparam a cabeça e os braços, a vandalizaram com tinta. Diz-nos a bela  Pernille.

Fomos recebidos por ela à entrada do barco. Sorridente, loira,  olhos azuis – I, welcome! -  Nos  museus e visitas que fizemos, jovens bem-dispostos, minuciosos e atentos, receberam-nos com  gestos ensaiados, repetidos centenas de vezes com profissionalismo. Foi dos momentos mais relaxantes passado em Copenhaga – confortavelmente sentado no convés, sentindo a brisa suave da água, contemplando a cidade a partir dos seus canais, ouvindo as explicações da cativante Pernille. Desfilavam perante os nossos olhos combinações harmoniosas de edifícios de design moderno e torres centenárias de igrejas, praças antigas e  fachadas clássicas. Pessoas mergulhavam nos canais dos cais  de madeira suspensos sobre a água, passavam tranquilamente ao lado do barco a remar  e apoiados nas pranchas de  padelboard.  Grupos de amigos, com mulheres elegantes e sedutoras, conviviam  em lanchas, bebendo cocktails e vinho branco, intencionalmente indiferentes aos turistas do barco. Nas margens mais distantes e abertas do bairro de Christiania  faziam-se picnics em toalhas sobre a relva. 

Copenhaga gaba-se de ser uma das cidades mais sustentáveis do planeta. Mergulhei em Kalvebod Brygge na última tarde. Cais delimitado por redes, de águas profundas, sem fundo à vista. Mistura de água doce e salgada, temperatura aceitável. Depois de mais um intenso dia de visitas foi  agradável encontrar no centro da cidade um sítio para mergulhar, dar braçadas, ficar sentado na plataforma de madeira com a toalha de praia pelos ombros a conversar, a ver a vida urbana a desfilar tranquilamente  nos canal, pontes e edifícios modernos que circundam a área. 

Kastelet é uma fortaleza renascentista, construída  em forma de estrela, como as de Elvas, Valença do Minho ou  Almeida. Relvada, rodeada de água e,  como é apanágio na  cidade, mais um local perfeito e tranquilo  para  caminhar. Tive o prazer  de percorrer  o  perímetro de terra sob nuances de luz e cores esbatidas, apreciando quadros naturais de aquarelas diversas que ia encontrando nos reflexos da água, vendo diversas projeções da torre da igreja e dos choupos, das aspas do moinho voltadas para o céu, do quartel e respetivas arrecadações.  Havia   a ilusão de que tudo se manteve igual nos últimos séculos, que o tempo não se mexeu, propositadamente parado para apreciar o seu encanto.

Kalvebod Brygge



Kastelet

Museu do Design Dinamarquês



Christiansborg



Tivoli



Rosenborg


Rosenborg





Caminhada pelo perímetro do Kastelet

Caminhada pelo perímetro do Kastelet



Caminhada pelo perímetro do Kastelet

Caminhada pelo perímetro do Kastelet

Caminhada pelo perímetro do Kastelet

Interior da fortaleza do Kastelet

Museu do design 

Christiansborg


Estátua de Absalom, fundador da cidade

Nyhavn

Nyhavn


Amalienborg

A igreja de mármore


Rosenborg




Christiansborg