segunda-feira, 1 de julho de 2024

Por Este Rio Acima

 

Capa do álbum Por Este Rio Acima

Faleceu Fausto. Cresci a ouvi-lo. Foi sempre um dos meus músicos favoritos, português ou  estrangeiro. De manhã, antes de sair para a escola, ouvia na rádio “navegar, navegar, ir ao fundo e voltar”. Os acordes, o acordeão e os cavaquinhos, os ritmos do Minho, nunca mais os esqueci. Foi no início dos anos 80, o álbum “Por Este Rio Acima”  saiu  em 1982. Eu andava na escola primária ou a começar o 2.º ciclo.  Outras músicas me comoviam,  “O Romance de Diogo Soares”  punha-me com pele de galinha, fazia-me  chorar;  “Por este rio acima” levava-me à Índia, onde nunca estive, como se estivesse a viajar deitado num barco num rio de águas calmas, indolentemente levado. Foi  dos primeiros álbuns que comprei quando comecei a trabalhar. Continua em lugar de destaque, ciosamente guardado no estojo com outros CDs. Adquiri também o álbum “A Preto e Branco”, essencialmente por causa do tema  “Namoro”. Gostava do tom lamentoso da história, dos amores incorrespondidos e do final feliz. Conheço  trechos de outras músicas,  fáceis de ficar no ouvido: “coça, coça a barriga nicotina”, “Rosalinda se tu fores à praia, se tu fores ver o mar”, “ó rapariguinha leva a tua saia negra de cambraia”. O que é raro.

Fausto faz parte da constelação de intérpretes  extraordinários que ganharam relevância como músicos de intervenção no período antes e pós 25 de abril. Autoexcluiu-se desse  grupo ao enaltecer a história de Portugal da forma como o fez. Exaltando  a epopeia trágica e épica dos descobrimentos tocou num ponto sensível, num momento histórico  em que não era politicamente correto fazê-lo. As ex-colónias alcançaram a independência apenas 7 anos antes do lançamento do álbum,  as memórias da guerra colonial e do PREC  ainda estavam frescas. Acabou por se tornar incómodo para certos músicos conotados com a esquerda, é isso que deduzo das suas palavras na entrevista dada a Fátima Campos Ferreira, na RTP1,  recordada a propósito da sua morte.  Afastou-se, seguiu um rumo mais solitário, único e original, não tão conotado e engajado politicamente. Continuou  a ter sucesso, a lançar temas emblemáticos, como o hino ambientalista “Rosalinda”, contra a construção da central nuclear de  Ferrel,  cantada nos comícios e manifestações.  

Para Raquel Varela o álbum representa  "a epopeia do  povo, sem líderes, a subir o rio"  em contracorrente (Breve História de Portugal, pág. 400), numa alusão ao fim do período utópico que terminou  com a contrarrevolução do 25 de Novembro. Considero  que não foi esse o motivo. Na minha opinião era algo que vinha germinando,  intrínseco ao autor, à sua mundividência e experiência como filho de portugueses da diáspora. Um trabalho que  iria fazer de qualquer forma, independentemente do rumo da revolução. Outros álbuns abordam as descobertas, "Histórias de Viajeiros", "Crónicas da Terra Ardente" e "Em Busca das Montanhas Azuis", os dois últimos completam a trilogia iniciada com "Por Este Rio Acima" sobre a diáspora portuguesa. 

Nasceu num barco quando os seus pais viajavam para Angola, no ano de 1948, onde viveu 20 anos até entrar no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. Tinha raízes Beirãs, em Vila Franca das Naves.

Na entrevista a FCF referiu que queria entender a diáspora. Imagino o seu fascínio com  os milhares de portugueses - a maioria deles analfabetos e supersticiosos nunca tinha saído da sua aldeia e  serra - transplantados subitamente para novos territórios, em contacto com povos nunca antes vistos, o seu espanto com o que viam, inventando novas mestiçagens.  Fausto traduziu na sua obra esse contacto violento,  amoroso,  apaixonado, intenso, um dos motivos por que “Por Este Rio Acima” é dos mais extraordinários álbuns da música Portuguesa. Obra homenagem à "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, em que se baseou. Une o corridinho algarvio, o  vira minhoto, os fados lisboeta e coimbrão, ao exotismo  da música Indiana. Cítaras, tablas, tambouras, violinos, flautas de bambu, misturadas com ferrinhos, acordeões, bombos, cavaquinhos e guitarras portuguesas, harmoniosamente. A chamada World Music, de fusão, ou o que se quiser, antes de existir essa terminologia. Fausto estava muito à frente.  

Ele exprimiu como ninguém a grandiosidade e a tragédia dos descobrimentos,  incutindo através da  música o  fascínio  que sentia pela história de Portugal e a sua diáspora.  Uma parte significativa da obra  é o resultado do encontro das suas raízes, do seu talento artístico, intelectual e emocional, com o mundo.

O seu percurso não se resume ao álbum, outros referi ao de leve. Fausto seria na mesma um grande compositor com os restantes que compôs. Este, no entanto, extravasou a empolgante parte musical para se tornar marco incontornável da nossa cultura. 

Vi-o uma única vez ao vivo, no Porto em 2009, no espetáculo “Três Cantos”, com  José Mário Branco e Sérgio Godinho, no coliseu repleto, de lá de cima, da geral. Concerto memorável em que se respirou história, liberdade, portugalidade. Tive a  sensação de estar a  assistir a algo único e irrepetível. E assim foi, nunca mais voltaram a atuar juntos. Estavam já um pouco  velhotes, mas o seu talento continuava intacto. Interpretaram músicas conhecidas de todos, colocando três mil pessoas a cantar e a vibrar em uníssono temas do seu reportório, património emocional de Portugal. Três homens de vida cheia e de talento.

José Mário Branco  faleceu em 2019. Resta-nos apenas o Sérgio Godinho.

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