Os morros, as montanhas, as
aldeias dispersas lembram as personagens pícaras de alguns dos mais famosos
romances de Camilo Castelo Branco. Apetece reler certas passagens. Talvez
naquelas casas da A4, isoladas, aparentemente distantes do resto do
mundo, se desenrolem dramas idênticos. Também o Zé do Telhado, em Cete, bandoleiros perigosos emboscando os viajantes,
escondendo-se em lugarejos inacessíveis nas estepes Transmontanas, em aldeias perdidas entre
morros e fragas austeras.
Os montes, os vales, as nuvens no céu pairando em silêncio,
indiferentes à tragédia humana, tal como no século XIX.
Como seria ir do Porto a
Trás-os-Montes? Não havia A4, nem comboios. Subia-se o Douro bravio e traiçoeiro
nos barcos rebelos. Uma aventura perigosa que matou pessoas célebres. O Barão
Forrester morreu num naufrágio no Cachão da Valeira. Os penedos ingremes
comprimiam o rio veloz, os rochedos escondidos na corrente rompiam o casco, era
necessário contorná-los, descer rápidos. A Ferreirinha também naufragou, mas teve mais sorte, salvou-se, diz-se que
graças aos forros da saia que não a deixaram ir ao fundo. Viajava-se de liteira,
no dorso de cavalos, a pé. Demoravam-se dias. Porém, seguramente, a maioria das
pessoas raramente saia dos seus horizontes. Nunca atravessou o Marão.
A paisagem deve ser idêntica à que era há 200 anos.
Sinto o ambiente diferente, como se tivesse entrado num outro tempo, noutra
época. Apesar dos carros que circulam rápidos, do túnel de 5,7Km - o mais longo de Portugal -
e dos pilares de design moderno depois
de Vila Real, Trás-os-Montes continua mágico.
“O Reino Maravilhoso”, de Miguel Torga.
Atravessávamos o Marão pela
estrada nacional 15. Era uma aventura. A minha mãe conduzia a 4L, levando-me a
mim e à minha irmã a visitar a amiga, Eunice, e o marido, Dinis, a Vila Flor. Por
vezes, via-se aflita conduzindo por estradas com curvas e declives, passando em
sítios ermos, andando quilómetros sem ver um único carro. Um dia inteiro de
viagem. Hoje, pensa-se que era uma perda de tempo demorar um dia para chegar a
um sítio. Na altura não se pensava assim, não se “sentia” assim. A viagem não
era um dia perdido, era um dia ganho. Parava-se o carro para apreciar a
paisagem, para respirar o ar puro, diferente
do lugar de onde partíamos. Cheirava
a flores, a rosmaninho, às ervas-de-são-roberto que cresciam nas bermas das
estradas, a esteva, às ervas secas dos
dias quentes de verão. Parávamos para gritar nos miradouros, ouvir o nosso eco nos
vales, “EUNICE, ESTAMOS AQUI!!! O som do iiiiii a alongar-se no horizonte.
Passávamos por pessoas que
vendiam ao longo das estradas louça de barro preto de Bisalhães, fruta da época
e queijos. Parávamos perto da pousada de
São Gonçalo, nas fontes de água fria que escorria das nascentes. O Marão tinha encostas verdejantes, majestosas, opulentas, de pinheiros e abetos apontando a
pique o céu azul, cobrindo de sombra a estrada estreita e sinuosa. Subitamente, no trágico incêndio de 1986, ardeu tudo. A serra nunca mais foi a mesma, até hoje. Sou
testemunha.
A viagem a Vila Flor era um
ritual anual, rica em experiências e peripécias, que a minha mãe gosta de
recordar. Como aquela vez em que o carro foi abaixo em plena serra de Murça - quase ninguém passava ali e os poucos carros
que se cruzavam connosco não paravam com medo. Desconfiavam de uma senhora a
pedir ajuda num sítio isolado, com duas
crianças dentro do carro. Devia haver alguém escondido para fazer um assalto. O
tempo passou, até que um camião TIR começou a abrandar: “O que é que a senhora
quer?”, perguntou o camionista sem sair, olhando desconfiado do alto da cabine.
“O meu carro foi abaixo, não consigo arrancar”, “abra o capô!”. Observou-o de
dentro do camião, “Já sei o que é!”. Por fim, saiu do lugar, inclinou-se sobre a
4L, apertou o borne da bateria: “Entre e ligue o
carro!”. A mãe rodou a chave na ignição,
ouviu o motor a arrancar. Ficou aliviada
e agradecida. Seguiu viagem para Vila Flor.
Outra vez, paramos na berma da
estrada para lanchar. Apareceu um sujeito estranho, vindo não se sabe de onde.
Ficou especado a olhar para nós, sem dizer palavra. A mãe, incomodada: “O
senhor quer uma maçã?”, “Se me der, como”. “O senhor quer uma bolacha?”, “Se me
der, como.” O Homem não saia da nossa beira. “A senhora dá-me boleia?” A mãe
ficou mais aflita. Sozinha, com dois filhos pequenos, como se iria
desenvencilhar daquele sujeito duvidoso? “Não posso, estou à espera do meu
marido que foi ali fazer chichi e já vem.” O Homem: “já percebi que não me quer
dar boleia, vou-me embora, fique à vontade.”
Seguimos viagem pela A4,
recordando estes episódios, filosofando sobre a rapidez com que hoje se chega ao destino. A mãe, ao meu lado, eu, a
conduzir o SMART. Sou mais velho do que
ela quando nos levava a Trás-os-Montes. Vamos visitar a Eunice. O Dinis, faleceu há
oito anos.
Deixo a mãe no restaurante e
recolho a Eunice no lar, no centro de Vila Flor. O SMART de dois lugares obriga
a esta logística. Vem amparada pela
auxiliar, agarrada à canadiana no braço esquerdo, a sorrir, feliz. Vai sair da rotina entediante e sorumbática,
almoçar fora com a amiga e o filho. Ter um dia especial.
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Encontro as duas octogenárias
instaladas na esplanada do restaurante com o terceiro lugar da mesa vago, à minha espera.
Dividimos Bacalhau Espiritual. As
amigas comem devagar, conversam. A Eunice diz que o lar às vezes parece um
manicómio, há doentes que gritam alucinados, um deles pediu uma pistola para
dar um tiro na cabeça. Tirando isso até se está bem, saem de vez em quando, fazem
passeios, vão à igreja. Ela faz as palavras-cruzadas todas, preenche em poucos
dias os livros que o filho lhe leva. Descobriu
os truques para encaixar as letras, é craque. Ganha a todos. É boa a fazer
contas. Um dia estava a explicar a soma a uma das auxiliares que, com desdém,
lhe disse que a conta estava errada. Para lhe comprovar que não, fez a conta na máquina de calcular. Quem é que
está errado?! Nunca mais me peça para lhe explicar. Não faça pouco de mim,
ouviu? Respondeu-lhe resoluta, orgulhosamente.
Perguntei à Eunice se havia algum
problema em visitarmos a aldeia. Ir a
sua casa, ver Valbom da Trindade. Os olhos brilharam. Claro que não! Fomos
levados por uma taxista Brasileira, filha de emigrantes de Vilarelhos. Ela fez a emigração inversa regressando à
terra dos pais, um caso raro. Braços tatuados, desenvolta a conversar. Transporta
pessoas das aldeias mais isoladas às paragens de autocarros, aos hospitais e
centros de saúde, vai buscá-las quando não há mais ninguém para o fazer,
nem transportes. A Eunice foi sentada ao seu lado, conversando
animadamente, conhecendo muitas pessoas em comum. A Brasileira, como se sempre
tivesse ali vivido.
Paisagens amareladas e verdes,
rochosas, austeras, olivais, pomares, vinhedos, aldeias dispersas com pouca
gente, terrenos abandonados. O céu intensamente azul, ar quente e seco. Descemos
até à aldeia pela estrada de paralelos. Casas
fechadas, roupa a secar.
A minha mãe estendeu-se
imediatamente na laje da granito encostada ao rés-do-chão da casa, a Eunice sentou-se ao seu
lado, fruindo o sol. Revivendo os momentos de quando ali se
sentavam com outras pessoas da aldeia, deleitadas, como se o tempo não tivesse
passado. Chegou a sobrinha para abrir a
porta da casa. Entramos na sala. Os mesmos objetos que trouxe de França, onde esteve
emigrada com o marido; as mesmas garrafas de vinhos licorosos, a mesma louça no
mesmo armário. O mesmo sofá, a mesma cozinha, os mesmos quartos, as mesmas
camas. A mesma varanda com a mesma vista para a aldeia de Vilares da Vilariça,
do outro lado da barragem da Burga. Nada
mudou. Apenas o silêncio da ausência de pessoas se tornou maior. Agigantou-se. Não se ouve, nem se vê ninguém. Não há carros
a circular, nem crianças, nem idosos, nas ruas da aldeia.
Deambulo pelas ruelas de paralelos,
encontro apenas uma pessoa, a Dona Guiomar. Apresento-me, digo-lhe para ir à
casa da D. Eunice, fazer-lhe uma surpresa. Caminho até à barragem pela estrada
municipal, alcatroada. Vejo apenas os passageiros dos únicos três carros que
passam por mim. Está um calor insuportável, não levo água. Sigo pela sombra de
velhas oliveiras, de troncos carcomidos, de nogueiras e sobreiros, escutando a
minha respiração e os meus passos pisando as ervas ressequidas da berma da estrada. Ouço as cigarras e o pi pi pi das andorinhas sobrevoando rasantes as águas
da albufeira. O Vale da Vilariça alonga-se repleto de pomares entre os cabeços
suaves da serras, os canais de irrigação levam a água aos terrenos que ainda são
cultivados.
Regresso. Encontro quatro
mulheres em amena cavaqueira. A Eunice fala, soberana, novamente dona do
destino da sua casa, parecendo que regressou às lides, confiante e generosa, como a conheci
em miúdo, recordando os vizinhos, as mortes mais recentes, fazendo-nos esquecer que está num lar, que não
tem autonomia para viver sozinha, que já teve um AVC e esteve internada às
portas da morte. A sobrinha e a D. Guiomar tem ambas três filhos. Três vivem em
Lisboa, dois em Mirandela e um em Viana do Castelo. Nenhum quer regressar à
aldeia. A Dona Guiomar é viúva, cultiva o que pode dos terrenos que ficaram
para os filhos. A sobrinha trabalha para o irmão a apanhar fruta nos pomares do vale da Vilariça. Uma das terras mais férteis de Portugal. O vale dá todo o
tipo de fruta, todo o ano. Agora, anda na apanha do pêssego. Vai-se levantar às
quatro da manhã para ir de carrinha com outros trabalhadores. O irmão vende os
pêssegos a uma superfície comercial e a um empresário de Viseu para fazer
compotas.
Os trabalhadores são pessoas das aldeias vizinhas, pouca gente. Começam a aparecer do Bangladesh, Índia, Paquistão, Timor. O irmão emprega dois timorenses, oferece casa e paga semanalmente, a pedido deles. Ambos na casa do vinte anos.
Uns partem e não querem
regressar, outros chegam de longe para trabalhar e fazer o que muitos
portugueses não querem. Valbom da Trindade tem vinte e uma pessoas. Quando era
miúdo perguntei ao filho da Eunice
quantos habitantes tinha a aldeia. Talvez cinquenta, disse ele. O seu único
filho vive em Lisboa, está reformado. Visita a mãe regularmente. É quem arranja
pessoas para apanhar as azeitonas dos terrenos. Depois, envia-as para a cooperativa
que fabrica o afamado azeite de Vila
Flor. Em troca, a cooperativa dá-lhe garrafões de cinco litros, consoante os
quilos que enviou. A Eunice oferece-nos uma garrafa. O teu filho não se vai
chatear? Perguntou a minha mãe. O meu filho ainda me obedece, respondeu
perentória.
Levo no regresso ao Porto um
garrafão de cinco litros de azeite caseiro de Vila Flor, puro ouro líquido. Vou
ansioso por prová-lo. Irei-me lembrar da Eunice, das férias em Trás-os-Montes,
da generosidade da terra e das pessoas. Vou
contente por ter propiciado o encontro e
momentos de alegria de duas amigas de
longa data, desde há 60 anos.
Valbom da Trindade |
Barragem da Burga |
Valbom da Trindade |
A caminho da barragem da Burga |
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