quinta-feira, 18 de julho de 2024

Passeio a Vila Flor

 

Os morros, as montanhas, as aldeias dispersas lembram as personagens pícaras de alguns dos mais famosos romances de Camilo Castelo Branco. Apetece reler certas passagens. Talvez naquelas casas da A4, isoladas, aparentemente distantes do resto do mundo, se desenrolem dramas idênticos. Também o Zé do Telhado, em Cete,  bandoleiros perigosos emboscando os viajantes, escondendo-se em lugarejos inacessíveis nas estepes  Transmontanas, em aldeias perdidas entre morros e fragas austeras.

Os montes, os vales,  as nuvens no céu  pairando em silêncio, indiferentes à tragédia humana, tal como no século XIX.

Como seria ir do Porto a Trás-os-Montes? Não havia A4, nem comboios. Subia-se o Douro bravio e traiçoeiro nos barcos rebelos. Uma aventura perigosa que matou pessoas célebres. O Barão Forrester morreu num naufrágio no Cachão da Valeira. Os penedos ingremes comprimiam o rio veloz, os rochedos escondidos na corrente rompiam o casco, era necessário contorná-los, descer rápidos. A Ferreirinha também naufragou,  mas teve mais sorte, salvou-se, diz-se que graças aos forros da saia que não a deixaram ir ao fundo. Viajava-se de liteira, no dorso de cavalos, a pé. Demoravam-se dias. Porém, seguramente, a maioria das pessoas raramente saia dos seus horizontes. Nunca atravessou o Marão.

A paisagem  deve ser idêntica à que era há 200 anos. Sinto o ambiente diferente, como se tivesse entrado num outro tempo, noutra época. Apesar dos carros que circulam rápidos,  do túnel de 5,7Km - o mais longo de Portugal -  e dos pilares de design moderno depois de Vila Real,  Trás-os-Montes continua mágico. “O Reino Maravilhoso”, de Miguel Torga.

Atravessávamos o Marão pela estrada nacional 15. Era uma aventura. A minha mãe conduzia a 4L, levando-me a mim e à minha irmã a visitar a amiga, Eunice, e o marido, Dinis, a Vila Flor. Por vezes, via-se aflita conduzindo por estradas com curvas e declives, passando em sítios ermos, andando quilómetros sem ver um único carro. Um dia inteiro de viagem. Hoje, pensa-se que era uma perda de tempo demorar um dia para chegar a um sítio. Na altura não se pensava assim, não se “sentia” assim. A viagem não era um dia perdido, era um dia ganho. Parava-se o carro para apreciar a paisagem, para respirar o ar puro, diferente  do lugar  de onde partíamos. Cheirava a flores, a rosmaninho, às ervas-de-são-roberto que cresciam nas bermas das estradas, a esteva,  às ervas secas dos dias quentes de verão. Parávamos para gritar nos miradouros, ouvir o nosso eco nos vales,  “EUNICE, ESTAMOS AQUI!!!  O som do iiiiii a alongar-se no horizonte.

Passávamos por pessoas que vendiam ao longo das estradas louça de barro preto de Bisalhães, fruta da época e queijos. Parávamos perto da  pousada de São Gonçalo, nas fontes de água fria que escorria das nascentes. O Marão tinha  encostas  verdejantes, majestosas,  opulentas, de pinheiros e abetos apontando a pique o céu azul, cobrindo de sombra a estrada estreita e sinuosa.  Subitamente,  no trágico incêndio de 1986, ardeu tudo.  A serra  nunca mais foi a mesma, até hoje. Sou testemunha.

A viagem a Vila Flor era um ritual anual, rica em experiências e peripécias, que a minha mãe gosta de recordar. Como aquela vez em que o carro foi abaixo em plena serra de Murça -  quase ninguém passava ali e os poucos carros que se cruzavam connosco não paravam com medo. Desconfiavam de uma senhora a pedir ajuda num sítio  isolado, com duas crianças dentro do carro. Devia haver alguém escondido para fazer um assalto. O tempo passou, até que um camião TIR começou a abrandar: “O que é que a senhora quer?”, perguntou o camionista sem sair, olhando desconfiado do alto da cabine. “O meu carro foi abaixo, não consigo arrancar”, “abra o capô!”. Observou-o de dentro do camião, “Já sei o que é!”. Por fim, saiu do lugar, inclinou-se sobre a 4L,   apertou o borne da bateria: “Entre e ligue o carro!”. A  mãe rodou a chave na ignição, ouviu o motor a arrancar. Ficou  aliviada e agradecida. Seguiu viagem para Vila Flor.

Outra vez, paramos na berma da estrada para lanchar. Apareceu um sujeito estranho, vindo não se sabe de onde. Ficou especado a olhar para nós, sem dizer palavra. A mãe, incomodada: “O senhor quer uma maçã?”, “Se me der, como”. “O senhor quer uma bolacha?”, “Se me der, como.” O Homem não saia da nossa beira. “A senhora dá-me boleia?” A mãe ficou mais aflita. Sozinha, com dois filhos pequenos, como se iria desenvencilhar daquele sujeito duvidoso? “Não posso, estou à espera do meu marido que foi ali fazer chichi e já vem.” O Homem: “já percebi que não me quer dar boleia, vou-me embora, fique à vontade.”

Seguimos viagem pela A4, recordando estes episódios, filosofando sobre a rapidez com que hoje  se chega ao destino. A mãe, ao meu lado, eu, a conduzir o SMART. Sou mais velho do  que ela quando nos levava a Trás-os-Montes.  Vamos visitar a Eunice. O Dinis, faleceu há oito anos.

Deixo a mãe no restaurante e recolho a Eunice no lar, no centro de Vila Flor. O SMART de dois lugares obriga a esta logística. Vem  amparada pela auxiliar, agarrada à canadiana no braço esquerdo, a sorrir,  feliz. Vai sair da rotina entediante e sorumbática, almoçar fora com a amiga e o filho. Ter um dia especial.



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Encontro as duas octogenárias instaladas na esplanada do restaurante  com o terceiro lugar da mesa  vago, à minha espera.

Dividimos Bacalhau Espiritual. As amigas  comem devagar, conversam.  A Eunice diz que o lar às vezes parece um manicómio, há doentes que gritam alucinados, um deles pediu uma pistola para dar um tiro na cabeça. Tirando isso até se está bem, saem de vez em quando, fazem passeios, vão à igreja. Ela faz as palavras-cruzadas todas, preenche em poucos dias os livros que o filho  lhe leva. Descobriu os truques para encaixar as letras, é craque. Ganha a todos. É boa a fazer contas. Um dia estava a explicar a soma a uma das auxiliares que, com desdém, lhe disse que a conta estava errada. Para  lhe comprovar que não,  fez a conta na máquina de calcular. Quem é que está errado?! Nunca mais me peça para lhe explicar. Não faça pouco de mim, ouviu? Respondeu-lhe resoluta, orgulhosamente.

Perguntei à Eunice se havia algum problema em visitarmos a  aldeia. Ir a sua casa, ver Valbom da Trindade. Os olhos brilharam. Claro que não! Fomos levados por uma taxista Brasileira, filha de emigrantes de Vilarelhos.  Ela fez a emigração inversa regressando à terra dos pais, um caso raro. Braços tatuados, desenvolta a conversar. Transporta pessoas das aldeias mais isoladas às paragens de autocarros, aos hospitais e centros de saúde, vai buscá-las quando não há mais ninguém para o fazer, nem  transportes.  A Eunice foi sentada ao seu lado, conversando animadamente, conhecendo muitas pessoas em comum. A Brasileira, como se sempre tivesse ali vivido.

Paisagens amareladas e verdes, rochosas, austeras, olivais, pomares, vinhedos, aldeias dispersas com pouca gente, terrenos abandonados. O céu intensamente azul, ar quente e seco. Descemos até à aldeia pela  estrada de paralelos. Casas fechadas, roupa a secar.

A minha mãe estendeu-se imediatamente na  laje da granito  encostada ao  rés-do-chão da casa, a Eunice sentou-se ao seu lado, fruindo o sol.   Revivendo os momentos de quando ali se sentavam com outras pessoas da aldeia,  deleitadas, como se o tempo não tivesse passado.  Chegou a sobrinha para abrir a porta da casa. Entramos na sala. Os mesmos objetos que trouxe de França, onde esteve emigrada com o marido; as mesmas garrafas de vinhos licorosos, a mesma louça no mesmo armário. O mesmo sofá, a mesma cozinha, os mesmos quartos, as mesmas camas. A mesma varanda com a mesma vista para a aldeia de Vilares da Vilariça, do outro lado da barragem da Burga.  Nada mudou. Apenas o silêncio da ausência de pessoas se tornou maior. Agigantou-se.  Não se ouve, nem se vê ninguém. Não há carros a circular, nem crianças, nem idosos, nas ruas da aldeia.

Deambulo pelas ruelas de paralelos, encontro apenas uma pessoa,  a  Dona Guiomar. Apresento-me, digo-lhe para ir à casa da D. Eunice, fazer-lhe uma surpresa. Caminho até à barragem pela estrada municipal, alcatroada. Vejo apenas os passageiros dos únicos três carros que passam por mim. Está um calor insuportável, não levo água. Sigo pela sombra de velhas oliveiras, de troncos carcomidos, de nogueiras e sobreiros, escutando a minha respiração e os meus passos pisando as ervas ressequidas  da berma da estrada.  Ouço as cigarras e o pi pi pi  das andorinhas sobrevoando rasantes as águas da albufeira. O Vale da Vilariça alonga-se repleto de pomares entre os cabeços suaves da serras, os canais de irrigação levam a água aos terrenos que ainda são cultivados.  

Regresso. Encontro quatro mulheres em amena cavaqueira. A Eunice fala, soberana, novamente dona do destino da sua casa, parecendo que regressou  às lides, confiante e generosa, como a conheci em miúdo, recordando os vizinhos, as mortes mais recentes,  fazendo-nos esquecer que está num lar, que não tem autonomia para viver sozinha, que já teve um AVC e esteve internada às portas da morte. A sobrinha e a D. Guiomar tem ambas três filhos. Três vivem em Lisboa, dois em Mirandela e um em Viana do Castelo. Nenhum quer regressar à aldeia. A Dona Guiomar é viúva, cultiva o que pode dos terrenos que ficaram para os filhos. A sobrinha trabalha para o irmão a apanhar fruta nos pomares do vale da Vilariça. Uma das terras mais férteis de Portugal. O vale dá todo o tipo de fruta, todo o ano. Agora, anda na apanha do pêssego. Vai-se levantar às quatro da manhã para ir de carrinha com outros trabalhadores. O irmão vende os pêssegos a uma superfície comercial e a um empresário de Viseu para fazer compotas.

Os trabalhadores são pessoas das aldeias vizinhas, pouca gente. Começam a aparecer do Bangladesh,  Índia, Paquistão, Timor. O irmão emprega dois timorenses, oferece casa e paga semanalmente, a pedido deles. Ambos na casa do vinte anos. 

Uns partem e não querem regressar, outros chegam de longe para trabalhar e fazer o que muitos portugueses não querem. Valbom da Trindade tem vinte e uma pessoas. Quando era miúdo perguntei  ao filho da Eunice quantos habitantes tinha a aldeia. Talvez cinquenta, disse ele. O seu único filho vive em Lisboa, está reformado. Visita a mãe regularmente. É quem arranja pessoas para apanhar as azeitonas dos terrenos. Depois, envia-as para a cooperativa  que fabrica o afamado azeite de Vila Flor. Em troca, a cooperativa dá-lhe garrafões de cinco litros, consoante os quilos que enviou. A Eunice oferece-nos uma garrafa. O teu filho não se vai chatear? Perguntou a minha mãe. O meu filho ainda me obedece, respondeu perentória.

Levo no regresso ao Porto um garrafão de cinco litros de azeite caseiro de Vila Flor, puro ouro líquido. Vou ansioso por prová-lo. Irei-me lembrar da Eunice, das férias em Trás-os-Montes, da generosidade da terra e das pessoas.  Vou  contente por ter propiciado o encontro e momentos de alegria de  duas amigas de longa data,  desde há 60 anos.

Valbom da Trindade

Barragem da Burga

Valbom da Trindade

A caminho da barragem da Burga



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