Fico indolentemente sentado na
cama com os livros estendidos sobre a colcha, espalhados no colo. Leio avulsamente
com a sensação de que o poderia fazer indefinidamente, e pouco mais na vida. Teria em mim todas as leituras e personagens do mundo - e, porque não, “todos os sonhos do mundo”. Viveria várias
vidas sem sair do quarto.
Mas é necessário o movimento,
sair, vaguear e divagar. Sem o qual de nada valeriam as leituras. Perderiam intensidade.
Ficaríamos isolados, metidos na nossa concha, ensimesmados.
 |
Fajã da Caldeira do Santo Cristo |
Estava acampado na Urzelina, na ilha de São Jorge, quando ouvi o som pela primeira vez. À minha frente, a ilha do Pico, majestosa, em toda a sua extensão, desde
a ponta da Piedade até à Madalena.
Escurecia, e no lusco-fusco do entardecer comecei a ouvi-los. Não fazia ideia do que era. O som discreto ia aumentando de
intensidade. Tentava adormecer, mas os barulhos perturbavam-me. Pareciam bebés a tagarelar antes das primeiras palavras, quando
não se entendem ainda os seus ruídos. Vinham de cima, de vários pontos e
distâncias, uns muito próximos passavam por cima do parque, acima da minha tenda. Uns
mais intensos do que outros, isolados, em simultâneo, sem intervalos.
Assustei-me. Pensei em fantasmas.
Embora nunca tenha acreditado neles, no meio do Atlântico, naquele ambiente de
brumas e de reflexos multiluminosos, começava a não ter a certeza. Uma pessoa
supersticiosa, se os ouvisse sozinha no meio da noite sem fazer a mínima ideia de onde vinham os gritos, pensaria em espíritos. O meu racionalismo não me deixou acreditar
noutras hipóteses: só podia ser uma ave!
Adormeci com os gritos a ecoar na noite. No dia seguinte, perguntei que
aves eram aquelas, que se ouviam assim que o
sol se começava a pôr. Eram cagarros, responderam. Com que então aquilo é que
eram os cagarros! Lembrei-me vagamente de ouvir
falar neles em Santa Cruz da Graciosa, onde vivia nessa época.
Os cagarros nidificam junto ao
mar, nas falésias altas e rochosas. Não gostam de luz, ficam encadeados e
desorientados, afastam-se dos locais povoados
pelo Homem, das luzes artificiais construídas por ele para iluminar as suas
povoações.
Mais tarde, no Pico, conheci um pouco
melhor os hábitos da ave. Muitos juvenis
não conseguem acompanhar os bandos no regresso a África, pousam nas bermas das
estradas, encostam-se aos muros para descansar. Ficam quietos e aninhados, sendo
atropelados e mortos frequentemente.
A rádio Clube Lajes do Pico passava um anúncio para quem os encontrasse na estrada. Deviam colocá-los numa
caixa de cartão, alimentá-los com peixe e libertá-los no mar pouco antes dos primeiros feixes de sol
começarem a raiar.
Quando vivi no Pico, encontrei um
cagarro vivo e fiz precisamente isso. Felizmente, tinha peixe congelado no
frigorífico e caixotes de cartão usados no envio de livros e CDs nas minhas
viagens entre as ilhas e o continente. O bicho debateu-se com força, adejou as
asas, tentou sair. Coloquei um livro pesado
sobre as dobras, tendo o cuidado de deixar o ar entrar. Levantei-me da cama para verificar se estava tudo bem, se
não encontrava a ave encostada a algum canto da cozinha tentando esgueirar-se. Acordei antes do amanhecer, levei o caixote fechado até ao mar, abri, pus o bicho docilmente em cima da rocha.
Aproveitei os dias passados em São Jorge para visitar algumas fajãs, os ex-líbris da
ilha.
As fajãs originaram-se devido aos deslizamentos de terra das encostas
íngremes das montanhas, formando pequenas enseadas encostadas ao mar. A mais famosa de todas é a da Caldeira do Santo Cristo. O acesso recôndito
e íngreme torna-a inacessível, chega-se lá apenas de barco, ou a pé pelo caminho de terra estreito, entre o mar e a
montanha.
O taxista levou-me à fajã dos Cubres. Demora-se uma hora até à Caldeira do
Santo Cristo. Não vi ninguém. Caminhei pela falésia apertada, tendo o mar do meu
lado esquerdo. Ouvia o rugido assustador das ondas debaixo de mim, roçava as
pernas na abundante vegetação que crescia nas bermas.
Comecei a ver a aldeia centenas de
metros antes de lá chegar, o casario tristonho batido pelas ondas. As rochas abraçavam
a lagoa, isolando-a do mar, formando o leito de água meio salgada, onde se cultivam
mexilhões - o único sítio nos Açores.
Chovia. Nesses dias conhecia mal
o clima dos açores e não andava preparado para os seus humores instáveis. Não
levava guarda-chuva, nem roupa impermeável. Chuva miudinha, persistente e teimosa.
Quando cheguei ao casario procurei abrigo. Estranhamente as casas açorianas não tem os
telheiros que protegem da chuva como as do
continente. Continuava sem ver ninguém, sem encontrar um café ou um
local onde pudesse entrar e me proteger.
Saía fumo de uma das chaminés. Tirando isso, mantinha-se o silêncio, a sensação
de isolamento total, de estar numa aldeia fantasma.
Dirigi-me à igreja. Subi a pequena escadaria que dava acesso à
torre sineira, reparei que a minha cabeça cabia dentro do sino, enfiei-a lá
dentro, mas continuava a apanhar chuva no resto do corpo. Não resultava estar
ali. Desci, dei mais uma volta pelo casario, fui embora com o corpo encharcado
e pouco entusiasmado com o local.
 |
Caminho para a fajã da Caldeira do Santo Cristo |
 |
Fajã da Caldeira do Santo Cristo
|
 |
Fajã da Caldeira do Santo Cristo |
 |
Fajã da Caldeira do Santo Cristo |
O isolamento impressionou-me. Senti um aperto físico por estar num ambiente tão
fragilmente encaixado entre a
montanha e o mar, e psicológico, por ser um sítio tão isolado. Imaginar que ali
vive gente e que antigamente viveu muito mais. Uma vida inteira a cultivar pequenas leiras e a pescar!
No sismo de 1980, devido aos
desabamentos, a fajã ficou ainda mais isolada. Tornou-se impossível lá
chegar a pé. Só ao fim de alguns dias chegou por barco o primeiro socorro.
Eu estava ansioso por regressar à fajã dos Cubres. Esperei mais algum tempo pelo taxista, aguardando
serenamente que ele me levasse de regresso à minha tenda, meu lar e abrigo
temporário.
Regressei mais vezes à ilha de São Jorge e conheci outras fajãs, mas
nenhuma delas tão isolada e impressionante como a fajã da Caldeira do Santo Cristo. Descobri que o mais incrível na ilha é a vista que se tem da ilha do
Pico, dela se usufruí permanentemente ao longo do ano, de quase todos os
sítios.
Acordava na Calheta deparando-me com a visão longitudinal do outro lado do canal,
o longo dorso de um animal adormecido com
a sua elevada proeminência, o Piquinho, rodeada de nuvens, fumegando gases vulcânicos da sua cratera. O mar, entre as duas ilhas, espelhando
matizes cinzentas e azuladas, variando
consoante a luminosidade do dia.
O Topo é um dos sítios mais isolados dos Açores, fica a 20 quilómetros da Calheta por uma estrada
plana, cuja única povoação no caminho é Santo Antão. Terreola ainda mais pequena e tristonha. Tive colegas Açorianos que deram aulas no Topo
no início da carreira. Nessa época era
impensável alugar casa num local tão remoto, ficavam a viver na vila da Calheta, a sede de concelho. Sempre tinha mais
casas e coisas para fazer. Percorriam os 20 quilómetros de carro na estrada de
terra batida. Quando chovia muito não davam
aulas, ficava toda enlameada e intransitável.
 |
Velas de São Jorge |