terça-feira, 31 de dezembro de 2024

A Vegetariana

 


Romance poético sobre uma personagem que sofre de anorexia nervosa e esquizofrenia. A “vegetariana” não deixa apenas de comer carne, deixa de se alimentar. Quer ser como as árvores, bebendo água, agarrando-se ao solo para lhe crescerem raízes a partir das  mãos. Só aceita fazer amor com o corpo pintado de flores.

A família não sabe como lidar com a situação, não está preparada para aceitar alguém que muda de hábitos tão drasticamente. Há um certo conservadorismo. Algo comum à sociedade coreana: viver formatado de acordo com as normas culturais do país, tendo comportamentos altamente rígidos e estruturados, de que é exemplo a irmã da vegetariana. O  esforço para controlar a sua vida  causa-lhe um desgaste precoce, no limiar do esgotamento. Uma personagem vivendo em tensão permanente, funcionando como um espelho da sociedade, numa crítica ao formalismo social e à rigidez mental.  Ao mesmo  tempo, o romance  serve de apelo à capacidade de evasão e à tolerância para com quem sofre de problemas psiquiátricos.

História tensa, repleta de imagens fortes e intensas, descrevendo situações bizarras, violentas, colocando a nu as fragilidades humanas, a solidão, o medo, o vazio.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Do Cais de São Roque ao Esteiro de Salreu (a pé, claro!)

 


Os cartazes no cais de São Roque informam das grandes rotas da Ria de Aveiro, sinalizadas por diferentes cores. Três rotas de centenas de quilómetros, temáticas, para serem percorridas essencialmente em bicicleta. Sítios que contam a história industrial, agrícola, religiosa, ambiental e social destas terras rodeadas de água, ligadas por canais que exerciam um papel fundamental nas atividades económicas da região, unindo pessoas, transportando os produtos retirados da água e dos campos: bateiras, moliceiros, mercantéis, barcos artesanais especializados no transporte de sal, moliço e outros bens.   

Sem fazer por isso e sem planos prévios, fui caminhando: 22 km do cais de São Roque ao esteiro de Salreu, pela rota azul, atravessando ecovias e passadiços da ria.

Por que não? Tinha tempo, umas tangerinas, água e uvas passas que sobraram do Natal, na pequena mochila. Roupa não muito adequada, mas sapatilhas confortáveis, usadas no dia-a-dia. O dia de sol estava esplêndido, não choveria, de certeza. Tinha boina e protetor solar.

Por que não? Ir em frente  e depois apanhar o comboio em Estarreja em  vez de deambular por Aveiro, que já conheço e onde posso voltar sempre.

Os trilhos de grande rota podem ser seguidos em vários sentidos, sul, norte, interior, coincidir com outros trilhos: a grande rota do Atlântico, os caminhos de Santiago e pequenas rotas locais, num emaranhado de trajetos para todos os gostos, à disposição de serem explorados. Sem motores.  

Seguindo para norte, ao longo do canal de São Roque, logo após a  cabine de madeira (desconheço a sua função) vira-se à esquerda, atravessando a A25 pelo viaduto – a parte menos interessante do percurso. Segue-se a sinalização, caminhando mais 30 minutos, até ao cais de Esgueira. Local com estacionamento, bar e placas informativas onde começam os passadiços de madeira sobre a ria. Caminha-se até  Vilarinho por trechos de terra e matos, essencialmente de eucaliptais, passando por belas vivendas ajardinadas com vistas soberbas para a ria. 

Painéis interpretativos informam da flora e fauna mais comum. Várias pessoas percorrem o passadiço.

Mais à frente, a partir do cais do Príncipe do Rio Novo, raramente me cruzarei com pessoas. Serão os trechos mais interessantes,  a paisagem torna-se mais variada. Atravesso o rio Vouga, sigo por uma estrada bucólica no concelho de Albergaria-a-Velha, partilhada por outros trajetos de pequena rota locais. Entro nos trilhos do Bioria, pertencentes a Estarreja.

A sinalização da grande rota azul vai surgindo em marcos de madeira indicando a distância para o centro de Estarreja. 

Encontro uma encruzilhada de trilhos interessantes para serem percorridos de bicicleta e a pé.

Deve ser  fascinante fazer em bicicleta os labirintos de terra transformados  pelo homem em campos agrícolas: o Bocage -  mosaico de culturas e pastagens  variadas,  onde se encontram cavalos e vacas de raça marinhoa.  

Percorro caminhos debaixo de silêncio, interrompido  pelo grito das ocasionais cegonhas e garças que levantam voo assustadas,  por detrás dos caniços.

Termino no Centro de Interpretação Ambiental de Salreu. Famílias passeiam nas bicicletas alugadas.  Sigo mais 20 minutos a pé,  até ao apeadeiro.  Ninguém na linha, silêncio. A voz feminina, gravada, debita do altifalante: “Senhores passageiros peço a vossa atenção para a passagem de um comboio sem paragem na linha número 1. Mantenham-se atrás da linha de  segurança.” O Alfa pendular passa veloz três metros à minha frente - massa gigantesca num movimento louco que estilhaçaria qualquer objeto à sua frente. Parece que vou ser arrastado pela sucção do vento. Seguro-me bem ao cadeirão metálico. Volta o silêncio e o vazio ao apeadeiro solitário.  Aguardo a paragem do próximo suburbano.

Outros Links:

Bioria

Percursos de Albergaria-a-Velha

Grandes Rotas de Aveiro

Suburbanos Porto - Aveiro

Batel na ria de Aveiro

Mural de azulejos junto à capela de São Gonçalinho, Aveiro

Pormenor do percurso que eu iria iniciar entre o cais de São Roque e o esteiro de Salreu

Placa informativa no início do passadiço,  cais de Esgueira

local de observação


A distância que eu tinha pela frente


Clube de Canoagem de Cacia

Ponte do rio Novo do Príncipe

Rio Vouga

"sigo por uma estrada bucólica no concelho de Albergaria-a-Velha"


A aproximar-me dos trilhos do Bioria



Torre instável junto às comportas de Canelas

Comportas de Canelas

Centro de Interpretação Ambiental, Bioria

Um dos vários painéis do percurso

A ria e o céu azul


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Contos do Gin-tonic


 

Lendo-os a primeira vez, estranha-se. Depois, como dizia Fernando Pessoa, entranha-se.

Escrita crua, rápida. Frases curtas e diretas, sem rendilhados e adjetivações. Diálogos sucintos. Personagens muitas vezes bizarras. Textos repletos de metáforas e alegorias: “O planeta Procion 5”, “A Grande Guerra Planetária Patriótica”, “Argola é Nossa!”, “Viva Tramagal!”.  Alusões irónicas ao país onde o autor nasceu, de onde fugiu e se exilou da ditadura do Estado Novo.

Um vago tom de tristeza e amargura percorre os contos, repletos de ironia e sarcasmo constantes. Mário Henrique-Leiria levou uma vida errante. Viveu em Israel, logo após a formação da nova nação, havendo ecos vagos desse período no conto “Felina”. Passou pela Alemanha, onde conheceu a futura esposa, que mais tarde lhe pôs os cornos. Deu-lhe o divórcio, foi para a América Latina, regressou a tempo de assistir ao 25 de abril. Saudou ironicamente “os 10 milhões de democratas que surgiram em Portugal no dia seguinte à revolução (prefácio de ACF, pág.14, coleção Público). Sofria de uma doença óssea que lhe provocava dores indizíveis: “A felicidade resume-se a estar 5 minutos sem dor” (prefácio, pág. 14). Morreu em Carcavelos aos 57 anos, onde vivia com a mãe e a tia. Nasceu em Lisboa em 1923. Aderiu ao surrealismo na década de 50, privou com Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, no entanto,  os  grupos não eram a sua praia. Manteve  a sua  idiossincrasia e distanciamento   Os contos e poemas reunidos nos  dois únicos livros “Contos do Gin-tonic” e  “Novos Contos do Gin-tonic”, publicados em 1973 e 1976,  tornaram-se conhecidos apenas  porque  os textos do primeiro livro foram submetidos por um amigo à leitura de um “editor atento”. É obvio que o gin-tónico era a sua bebida preferida e a de muitas das suas personagens. 

domingo, 1 de dezembro de 2024

O Pelicano

 

O Pelicano. Em exibição no TNSJ

Há alguns anos que não ia ao teatro. Voltei para assistir ao “Pelicano”, de Strindberg.

A entrada ampla e elegante do hall do Teatro Nacional de São João tem algo de solene. Livros espalhados nos longos balcões de madeira, guias das inúmeras peças que passaram nos palcos do São João e do Carlos Alberto, à venda. Corredores e estofos almofadados no acesso à plateia, tribuna e balcões superiores. Mármores elegantes em tons discretos. A sala de espetáculos mantendo a mesma decoração, tal como a filmou Manuel de Oliveira, relembrando as idas ao teatro na juventude. 

Basta ter palco e texto para representar. Talvez  não surpreenda o pouco público – o Porto, a segunda  cidade do país,  centro de uma aglomeração populacional de mais de 1 milhão de habitantes, não enche o seu mais importante e histórico teatro  numa tarde de Domingo.  

Aparentemente, o teatro desatualizou - se,   perdeu a corrida para o cinema, concertos,  espetáculos multimídia, televisão e plataformas digitais. Obras vorazes e velozes que utilizam tecnologias inacessíveis à solidão dos palcos. Mais sedutoras e modernas, adaptadas ao ritmo de vida e gostos da sociedade de consumo imediato. O teatro foi ultrapassado!

Será mesmo!?

Não há nada melhor para fazer numa tarde de Domingo!?

A plateia e as tribunas medianamente ocupadas. Balcões vazios. A audiência aguarda o começo. Apagam-se as luzes:  “Senhoras e Senhores não é permitido a gravação de som e de imagens… Bom espetáculo.”

Inicia-se o mergulho. Disse que o teatro não se atualizou – não é verdade! Nuno Cardoso, o encenador, recorre à sonoplastia e luminotecnia contemporâneas, subtilmente envolventes. Discretamente, sem interferir na essência da obra e do pensamento do autor. Mantem-se o intimismo que o teatro deve ter com o público. Lentamente, vai-se viajando, ganhando envolvimento com os atores/ personagens,  entrando na história, acompanhando luzes, sombras e som. A mudança de lugar dos adereços  funcionando como partitura, definindo ritmos e tensões dramáticas.

É outro tempo, outro ritmo, outro diálogo.   Penso: ainda bem que o teatro continua  e temos encenadores que trabalham determinados para o fazer acontecer. Criativos, sensíveis, contundentemente e discretamente radicais. Fiéis aos autores originais e, simultaneamente, acutilantes observadores  da sociedade atual. 

O teatro torna-se ainda mais importante nestes dias. Como a minha perceção estava errada! É urgente o calor e a afetuosidade  das palavras, contra o excesso de ruído,  o afunilamento do pensamento, a uniformização do gosto, a vulgarização do espetáculo. O teatro obriga a pensar, a ter calma, a refletir. Necessita de tempo.  

“Teatro Íntimo” era o nome da sala  onde se estreou a peça, em Estocolmo,  no ano de 1907. Não podia estar mais de acordo com os propósitos do texto. Espaço construído para o  público ficar próximo dos atores, em cima do palco, num pequeno auditório de apenas 160 lugares. Strindberg pretendia criar um efeito de cumplicidade e de envolvimento emocional entre atores e público, ser "indiscreto", fazer dos espetadores Voyeurs -  no caso desta peça, observando uma família no seu lar.   Não obteve sucesso, o teatro durou apenas 3 anos. O autor Sueco escreveu uma tetralogia de peças estreadas nesse curto espaço de tempo, após o seu  “Inferno” pessoal, época de grandes tormentas emocionais. Foi um “desajustado”, sem pejo em mostrar nos seus textos, de forma tão descarada e direta, o quotidiano das famílias comuns. O Pelicano é um drama perturbador: aquilo que não se assume por pudor, Strindberg fá-lo nos palcos, retratando genialmente e,  por uma impressionante economia de meios, as profundezas da alma humana.

Os vícios de uma mãe desesperada seriam causados pelo capitalismo que se começava a impor na sociedade Sueca? Seria uma mãe rural, numa sociedade patriarcal, mais carinhosa e atenta? Questiona uma exegeta no manual de leitura. 

Sendo assim, vivendo-se hoje tempos de capitalismo desenfreado, temos de concluir que o drama se mantém pertinentemente atual. Basta ler nos jornais os casos recorrentes de mães que maltratam os filhos. 

Os manuais de leitura do TNSJ são verdadeiros compêndios de cultura, descobertas e fruições paralelas.

Um Homem Sem Pátria

 


Kurt Vonnegut diverte-se a falar mal do planeta e da evolução humana. Para ele, o Homo sapiens é um “falhanço” (página 21). “A evolução que vá para o inferno” (página 22), graças a ela o homem construiu bombas atómicas, lançou o planeta no caos climático. Como paradoxo da sua teoria, o homem deve ser Homo sapiens até ao fim, isto é, ser coerente com os seus princípios e rebentar de uma vez por todas com o planeta.

O livro foi escrito em 2004. K.V. faleceu em 2007. George Bush Jr.  era o presidente dos Estados Unidos, por quem não se sentia minimamente representado,  nem  pelas suas políticas. Chama aos políticos contemporâneos de “adivinhos”.

“Um homem sem pátria” é o livro de um autor que não se identifica com nenhum país em particular, que, por acaso, nasceu nos Estados Unidos, no Indiana, no ano de 1922. Descendente de alemães, foi soldado na segunda guerra mundial. Estava preso em Dresden quando a cidade foi bombardeada pela Royal Air Force, 13 a 15 de fevereiro de 1945. Julgou que ia morrer debaixo dos escombros: cada vez que uma bomba  caia nas proximidades, a prisão estremecia. Foi dos poucos que sobreviveu. Encontrou no humor e na escrita uma forma de superar a incompreensão, o indizível,   a destruição e o medo. Esteve muitos anos sem saber como o fazer, até que em 1967 escreveu  Slaughterhouse 5”, “Matadouro 5”, livro semiautobiográfico, relato da experiência de Dresden.

A sátira e o humor permanente significam que se está vivo. Dessa forma foi escrevendo e  contando histórias até aos 84 anos.  Considerava-se um socialista utópico. Era ateu, no entanto, Jesus Cristo uma das suas  referências, das mais fascinantes e  generosas personagens  da história. O “Sermão da Montanha”,  exemplo do humanismo que o ser humano deve ter com os  congéneres.

   

sábado, 30 de novembro de 2024

Rota das Faias (PR 13 - Manteigas)

 


A quantidade de informação produzida está a aumentar exponencialmente.  No início do século XIX correspondia essencialmente à imprensa escrita, ao telégrafo, livros e revistas publicadas. Hoje, cem anos mais tarde, as plataformas digitais revolucionam a quantidade de informação produzida. Todos nós publicamos notícias, criamos a nossa própria informação, postando fotografias e textos em diversas plataformas digitais. Neste momento, escrevo um texto para ser publicado no meu blog – um entre milhões. Descobri recentemente que a informação no Instagram pode ser duplicada no Facebook, se o publicante assim o pretender.

Milhões  de pessoas em todo o mundo usam a internet, criam informação de alguma forma. Soma-se a divulgação de todo o conhecimento produzido até hoje, reproduzido, misturado, recriado e debitado pela inteligência artificial, a publicidade que cai permanentemente nas contas de email e pesquisas, a parafernália de textos para todos os gostos, fake news, true news. Na política,  predominam frequentemente opiniões acérrimas e contraditórias, clubísticas quase. Os mais ponderados argumentos deparam-se com as mais violentas críticas. O fanatismo, o ódio, a ignorância e o preconceito são terreno fértil para a desinformação. O excesso de informação não esclarece, lança ainda mais confusão no  planeta Terra já de si muito confuso,  e cujo estado de confusão se tende a agravar. Vivemos numa Babel moderna.

Na antiguidade bíblica, os homens quiseram subir até Deus. Começaram a construir uma torre gigantesca. Deus castigou-os inventando diferentes línguas para se desentenderem. A construção da torre parou.  A tecnologia moderna, as plataformas digitais, transformaram-se numa torre de Babel. Paradoxalmente,  temos um planeta em  que o aumento exponencial do número  de pessoas a publicar conteúdos na internet  contribui para o aumento exponencial da invisibilidade desses mesmos conteúdos.  

Portanto, sermos vistos e lidos por alguém torna-se cada vez mais difícil. Somos “Invisíveis”. Apesar disso, vai-se porfiando, escrevendo para si próprio e para os botões. Há um efeito catártico, uma rememoração da vida, dos tempos, do passado e do presente. Uma dupla vida que se quer viver, porque uma só não chega.

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A rota das faias deve ser deslumbrante um mês mais cedo. Caminhar debaixo de copas frondosas,  de folhas amarelecidas e avermelhadas, de muitos tons, vendo os reflexos da luz do sol e sombras ondulantes refletindo-se na terra. Mesmo assim, foi impactante ver os troncos e copas despidas, alinhadas em direção ao céu. Gigantes esquálidos adormecidos.  Imponentes, colocando os minúsculos humanos em sentido e respeito.

 Caminhar na natureza é uma experiência religiosa.   Reconfortante.  As árvores no seu ambiente natural são como Deuses pagãos desconhecidos e inominados,  comunicando connosco. Não há língua que traduza  o que dizem. Nenhuma Babel consegue destruir o seu significado, porque só o silêncio importa.

As casas dos guardas florestais, devolutas todas por onde passei nas estradas da serra da Estrela, representam tempos em que a floresta era mais valorizada. Foi um erro encerrá-las. Devia ser interessante viver ali: o guarda,  mal saia de casa,  começava imediatamente a trabalhar em contacto com a natureza. Trabalhava-se  “a partir de casa”, tal  como os  faroleiros no farol.

Os trabalhadores da Câmara Municipal de Manteigas construíram o bosque de faias no início do século XX, anónimos  fizeram este monumento natural que atrai  todos os anos milhares de pessoas à serra da Estrela.

O Folheto do percurso de pequena rota está aqui. Trilho bem sinalizado. Recomenda-se realizá-lo em outubro/ novembro,  para apreciar as copas nas suas cores outonais mais esplendorosas.  O início do trilho, com poucas árvores,  deve ser muito agreste no verão e nos dias mais frios do ano  é possível que tenha neve.  

Capela de São Lourenço


Posto de Vigia dos incêndios



Pinheiros-do-Oregon


Faias despidas

Casa do Leite


Miradouro de Manteigas

Manteigas


sábado, 23 de novembro de 2024

Ilha de São Jorge

Fico indolentemente sentado na cama com os livros estendidos sobre a colcha, espalhados no colo. Leio avulsamente com a sensação de que o poderia fazer indefinidamente, e pouco mais na vida. Teria em mim todas as leituras e personagens do mundo - e, porque não,  “todos os sonhos do mundo”. Viveria várias vidas sem sair do quarto.

Mas é necessário o movimento, sair, vaguear e divagar. Sem o qual de nada valeriam as leituras. Perderiam intensidade. Ficaríamos isolados, metidos na nossa concha, ensimesmados.

Fajã da Caldeira do Santo Cristo

Estava acampado na Urzelina, na ilha de São Jorge, quando ouvi o som pela primeira vez. À minha frente, a ilha do  Pico, majestosa, em toda a sua extensão, desde a  ponta da Piedade até à Madalena. Escurecia, e no lusco-fusco do entardecer comecei a ouvi-los. Não fazia ideia  do que era. O som discreto ia aumentando de intensidade. Tentava adormecer, mas os  barulhos perturbavam-me. Pareciam bebés a tagarelar antes das primeiras palavras, quando não se entendem ainda os seus ruídos. Vinham de cima, de vários pontos e distâncias, uns muito próximos passavam  por cima do parque, acima da minha tenda. Uns mais intensos do que outros, isolados, em simultâneo, sem intervalos.

Assustei-me. Pensei em fantasmas. Embora nunca tenha acreditado neles, no meio do Atlântico, naquele ambiente de brumas e de reflexos multiluminosos, começava a não ter a certeza. Uma pessoa supersticiosa, se os ouvisse sozinha no meio da noite sem fazer  a mínima ideia de onde vinham os gritos, pensaria em espíritos. O meu racionalismo não me deixou acreditar noutras hipóteses: só podia ser uma ave!
Adormeci com os gritos a ecoar na noite. No dia seguinte, perguntei que aves eram aquelas, que se ouviam  assim que o sol se começava a pôr. Eram cagarros, responderam. Com que então aquilo é que eram os cagarros! Lembrei-me vagamente de  ouvir falar neles em Santa Cruz da Graciosa, onde vivia nessa época.

Os cagarros nidificam junto ao mar, nas falésias altas e rochosas. Não gostam de luz, ficam encadeados e desorientados,  afastam-se dos locais povoados pelo Homem, das luzes artificiais construídas por ele para iluminar as suas povoações.
Mais tarde, no Pico, conheci  um pouco melhor os hábitos da ave.  Muitos juvenis não conseguem acompanhar os bandos no regresso a África, pousam nas bermas das estradas, encostam-se aos muros para descansar. Ficam quietos e aninhados, sendo atropelados e mortos frequentemente.

A rádio Clube Lajes do  Pico passava um anúncio para quem os encontrasse  na estrada. Deviam colocá-los  numa caixa de cartão, alimentá-los com peixe e libertá-los  no mar pouco antes dos primeiros feixes de sol começarem a raiar.

Quando vivi no Pico, encontrei um cagarro vivo e fiz precisamente isso. Felizmente, tinha peixe congelado no frigorífico e caixotes de cartão usados no envio de livros e CDs nas minhas viagens entre as ilhas e o continente. O bicho debateu-se com força, adejou as asas,  tentou sair. Coloquei um livro pesado sobre as dobras, tendo o cuidado de deixar o ar entrar. Levantei-me  da cama para verificar se estava tudo bem, se não encontrava a ave encostada a algum canto da cozinha tentando esgueirar-se. Acordei antes do amanhecer, levei o caixote fechado até ao mar, abri, pus o bicho docilmente  em cima da rocha. 

Cagarro

Aproveitei os dias passados em São Jorge para visitar algumas fajãs, os ex-líbris da ilha.

As fajãs originaram-se devido aos deslizamentos de terra das encostas íngremes das montanhas, formando  pequenas enseadas encostadas ao mar.  A mais famosa  de todas é a da Caldeira do Santo Cristo. O acesso recôndito e  íngreme torna-a inacessível, chega-se lá apenas de barco, ou a pé pelo caminho de terra estreito, entre o mar e a montanha.

O taxista levou-me à fajã dos Cubres.  Demora-se uma hora até à Caldeira do Santo Cristo. Não vi ninguém. Caminhei pela falésia apertada, tendo o mar do meu lado esquerdo. Ouvia o rugido assustador das ondas debaixo de mim, roçava as pernas na abundante vegetação que crescia nas bermas.

Comecei a ver a aldeia  centenas de metros antes de lá chegar, o casario tristonho batido pelas ondas.  As rochas abraçavam a lagoa, isolando-a do mar, formando o leito de água meio salgada, onde se cultivam mexilhões -  o único sítio nos Açores. 

Chovia. Nesses dias conhecia mal o clima dos açores e não andava preparado para os seus humores instáveis. Não levava guarda-chuva, nem roupa impermeável. Chuva  miudinha, persistente e teimosa. Quando cheguei ao casario procurei abrigo.  Estranhamente as casas açorianas não tem os telheiros que protegem da  chuva como as do continente.   Continuava  sem ver ninguém, sem encontrar um café ou um local onde pudesse entrar e me  proteger. Saía fumo de uma das chaminés. Tirando isso, mantinha-se o silêncio, a sensação de isolamento total, de estar numa aldeia fantasma.

Dirigi-me à igreja.  Subi a pequena escadaria que dava acesso à torre sineira, reparei que a minha cabeça cabia dentro do sino, enfiei-a lá dentro, mas continuava a apanhar chuva no resto do corpo. Não resultava estar ali. Desci, dei mais uma volta pelo casario, fui embora com o corpo encharcado e pouco entusiasmado com o local.

Caminho para a fajã da Caldeira do Santo Cristo

Fajã da Caldeira do Santo Cristo


Fajã da Caldeira do Santo Cristo

Fajã da Caldeira do Santo Cristo

O isolamento impressionou-me. Senti um aperto físico por estar num ambiente tão  fragilmente encaixado   entre a montanha e o mar, e psicológico, por ser um sítio tão isolado. Imaginar que ali vive gente e que antigamente viveu muito mais. Uma vida inteira a cultivar  pequenas leiras e a pescar!

No sismo de 1980, devido aos desabamentos, a fajã ficou ainda mais isolada. Tornou-se impossível lá chegar a pé. Só ao fim de alguns dias chegou por barco o primeiro socorro.
Eu estava ansioso por regressar à fajã dos Cubres.  Esperei mais algum tempo pelo taxista, aguardando serenamente que ele me levasse de regresso à minha tenda, meu lar e abrigo temporário.  

Regressei mais vezes  à ilha de São Jorge e conheci outras fajãs, mas nenhuma delas tão isolada e impressionante como a fajã da Caldeira do Santo Cristo. Descobri que o mais incrível na ilha é a vista que se tem da ilha do Pico, dela se usufruí permanentemente ao longo do ano, de quase todos os sítios.

Acordava  na Calheta deparando-me  com a visão longitudinal do outro lado do canal, o longo dorso de um animal adormecido  com a sua elevada proeminência, o Piquinho, rodeada de nuvens,  fumegando gases vulcânicos da sua  cratera. O mar, entre as duas ilhas, espelhando  matizes cinzentas e azuladas, variando consoante a luminosidade do dia.

O Topo é um dos sítios mais isolados dos Açores, fica a  20 quilómetros da Calheta por uma estrada plana, cuja  única povoação no caminho  é Santo Antão. Terreola ainda mais pequena e tristonha. Tive colegas Açorianos que deram aulas no Topo no início da carreira.  Nessa época era impensável alugar casa num local tão remoto,  ficavam a viver na vila  da  Calheta, a sede de concelho. Sempre tinha mais casas e coisas para fazer. Percorriam os 20 quilómetros de carro na estrada de terra batida.  Quando chovia muito não davam aulas, ficava toda enlameada e intransitável.

Velas de São Jorge

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Covilhã


 

Darwin costumava fazer longas caminhadas pelos campos de Kent.  Sem elas  o seu raciocínio não teria sido  tão bem explicitado, tal era a magnitude da teoria que propunha sobre a evolução das espécies. Com a ajuda da natureza e da observação do ambiente que o rodeava conseguiu o fôlego  intelectual necessário à formulação clara dos seus princípios.  

Caminhar coloca em contacto o mundo e as pessoas, os genes e a ancestralidade humana em funcionamento. O Homem foi nómada antes de ser essencialmente sedentário.  Evoluiu em movimento. Por essa razão, persiste no íntimo da cada um a necessidade de estar em deslocação permanente.

Quando não há afazeres, ou se está  assoberbado de trabalho, sem saber por onde começar, sair de casa, arejar  ideias é uma solução. Não faz mal a ninguém, não danifica a natureza em trabalhos extrativistas, não polui a atmosfera com a condução automóvel. Pensar e caminhar não agride,  a não ser  eventuais caracóis, insetos e plantas esmagados pelos  pés ou o próprio em acidentes.

Pode ser desagradável caminhar sozinho, a solidão maior, sem ninguém com quem partilhar o caminho e o momento.  A televisão, as redes, os grupos sociais, virtuais ou reais, criam estímulos constantes e distraem.  No vazio e silêncio fica-se mais próximo de se tomar  consciência de si, de ter uma  experiência  libertadora. Ou perturbadora,  se o ruído permanecer  no cérebro e no espírito,  a inquietação nas pessoas, mesmo  no meio das montanhas.  Este tipo de ruído é o mais difícil de desaparecer.

Caminhar à chuva e ao sol, andar despercebido em segurança, é estimulante. No fundo, trata-se de liberdade, de conseguir viver com ela e de saber apreciá-la.

Vai-se aprendendo algo com os sítios e a observação, mesmo que não se faça muito por isso.

A Covilhã, lembrei-me do que me falou um colega de artes, é a “Capital dos Murais de Portugal”. A partir de certa altura, comecei a vê-los nas fachadas do centro da cidade. Entusiasmei-me,  o objetivo tornou-se mais definido: captar o maior número possível de imagens. A cidade transformou-se, tornou-se mais acolhedora, moderna e vibrante, no meio das ruelas vazias e antiquadas onde passava. Gostei do centro, do esforço de modernização artística e de acompanhamento das tendências urbanas. Depois de duas horas de caminhada e deambulação foi o momento mais compensador, até ali tinha observado exemplos patéticos, dos muitos  que abundam em Portugal, de estruturas caras recentemente construídas que não funcionam. Elevadores “temporariamente indisponíveis” que iriam facilitar a mobilidade entre o bairro dos Penedos Altos, as partes baixas e alta da cidade, construídos com fundos europeus, ao abrigo do programa Polis. Milhões de euros gastos, desperdiçados sem qualquer retorno efetivo na vida prática das comunidades.