Cartazes na parede do Pipa Velha |
O Pontual, na rua do Almada, tinha apenas dois funcionários: o careca que costuma estar atrás do balcão a fazer omeletes e outro empregado a servir às mesas. Os clientes há mais tempo no restaurante aguardavam ainda serem atendidos. Estava demorado. Estivemos cinco minutos com a mesa vazia, sem ver o menu ou ter a oportunidade de pedir entradas. Saímos. Ali perto, talvez o Antunes, na rua do Bonjardim. Sentia-se a vibração de início da noite na baixa do Porto, filas na entrada dos restaurantes, malta nova e turistas circulando a pé.
Um grupo numeroso de pessoas aguardava lugar no Antunes. Os restaurantes mais tradicionais e antigos tornaram-se
referências nos guias turísticos, Tripadvisor
e afins. Very tipical, delicious portuguese food, etc. Não se arranja lugar
com a mesma facilidade de outrora. Os Portuenses, lentamente, vão sendo
excluídos do melhor que a sua cidade tem para oferecer. Talvez o Buraco, na rua
do Bolhão. Come-se bem como no Antunes, tem comida tradicional e não é caro.
Havia lugar. Fomos para a sala ao fundo, à nossa volta mais turistas. Até este
“buraco” já foi descoberto por eles. O interior é algo claustrofóbico e exíguo,
compensado, no entanto, pela simpatia, boa-mesa, comida despretensiosa, simples e
saborosa, à moda antiga.
Pedimos Bacalhau à Buraco (o
mesmo que Bacalhau à Braga ou Espiritual) e uma garrafa de Muralhas de Monção, branco.
Entradas de pão, manteiga, queijo e azeitonas.
Os turistas Ingleses na mesa ao lado pediram um pratinho de bolinhos de
bacalhau, de entrada. Comemos bolo de bolacha na sobremesa.
Fomos ao Pipa Velha beber o
digestivo: aguardente CRF e gin tónico. Ambiente intimista e tranquilo para beber um copo e
conversar sossegadamente. A mesma decoração e tipo de clientela que conheci. Os
cartazes de há trinta anos continuam afixados na parede com outros mais recentes, peças de teatro de companhias
experimentais: As boas raparigas vão
para o céu as más vão para todo o lado,
TEAR, TUP. Fiquei saudosista da atmosfera
teatral dessa época e das memórias que os cartazes trouxeram, dos espetáculos e dos seus atores. Falamos
com o Eurico, lembra-se de nós. Não nos via há algum tempo: “não fazia ideia
que era assim há tanto tempo”, disse admirado. É agradável continuar a ser
reconhecido, ser cumprimentado pelo dono do bar, ter uma conversa amável com
ele.
No caminho até ao Piolho passamos na Praça Carlos Alberto, ao lado do que foi o antigo Café Luso, agora um estabelecimento sem personalidade, de luzes vermelhas fluorescentes, sombrio, de mobília angulosa, pós-moderna e kitsch, para enganar turistas, sem nada a ver com o Luso que ali existiu. Era o ponto de encontro da fauna mais diversa da noite do Porto, nele convergiam atores, estudantes, académicos, indigentes a pedir esmola, poetas que vendiam poemas escritos na hora no guardanapo de papel, gente de todas as condições e feitios, sítio democrático e livre. Buliçoso e luminoso. Sem preconceitos. Servia os finos mais frescos e borbulhantes da cidade até às duas da manhã.
O Piolho continua igual, resistindo às transformações e ao desaparecimento de cafés emblemáticos da cidade.
O Sr. Edgar estava no escritório “a
tratar de uns assuntos”, interrompeu o trabalho para falar connosco. O café Âncora D`Ouro foi
oficialmente estabelecido em 1909 pela família Reis Lima, tornou-se local de
tertúlias, frequentado por gente da política e estudantes universitários, que passavam
horas a estudar e a conviver. Momentos recordados nas lápides
colocadas nas paredes.
Não conhece a origem da alcunha “Piolho”. Há várias hipóteses. A sua favorita diz que devido à distribuição das mesas, em filas compridas, de espaldares quase encostados, estabelecia-se contacto visual com qualquer ponto do restaurante. Coçar a cabeça seria o código secreto para ter cuidado com o que se dizia na presença de pessoas suspeitas. Outra teoria, menos prosaica, é explicada pela proximidade permanente das cabeças, facilitando o contágio de piolhos.
Depois do vinte e cinco de Abril
de 1974 a família Reis Lima passou a gerência a uma sociedade de Marco de
Canaveses. A nova gerência não conseguiu conciliar o momento político do país
com a gestão do café. Haviam tensões entre diferentes fações e ideologias,
exaltações pessoais que se exacerbavam nas mesas, influenciadas pelo álcool,
pela incerteza do momento revolucionário em curso. A gerência proibiu estudar no interior do café. Os tempos não estavam fáceis. O sr. Edgar começou a trabalhar nessa altura, nos
finais da década de 70, com menos de dezoito anos. Assumiu a gerência com mais
dois sócios, já falecidos. Não tinha experiência, foi aprendendo com os
empregados mais antigos. Fez alguns disparates
- mandou retirar e vender a escadaria de prata que ligava ao piso
superior. Está feliz com o sucesso do café, manteve-o fiel à origem, fazendo poucas alterações na decoração. As
cadeiras e as mesas continuam as mesmas de sempre, restauradas. Tal como o
balcão, o soalho e os espelhos nas paredes. As casas de banho são novas: “antigamente
havia umas cortinas nas casas de banho das senhoras, os mais malandros
colocavam-se nas mesas próximas a espreitá-las”. Teve de se adaptar ao pós 25 de abril. As
praxes, conotadas com a ditadura, foram proibidas. O restaurante
perdeu espírito, carisma e tradição. Em 1983 as praxes voltaram a ser permitidas, os estudantes a
frequentar o café como antes.
Mostrou-nos a sua placa favorita: a dedicatória de um estudante tímido,
apaixonado por uma miúda a quem não se conseguia declarar: “Vai lá, ganha
coragem, não tens nada a perder, senta-te ao pé dela, fala com ela”,
dizia-lhe ele. Assim foi. Os dois
estudantes começaram a namorar e casaram. Ele era do Funchal, ela de Florença,
Itália, conheceram-se no Porto, no café Piolho. A Placa tem o nome das três cidades
e o ano de 2014.
Pipa Velha |
Cadeira do "Piolho" |
Interior do "Piolho" |
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