terça-feira, 31 de dezembro de 2024

A Vegetariana

 


Romance poético sobre uma personagem que sofre de anorexia nervosa e esquizofrenia. A “vegetariana” não deixa apenas de comer carne, deixa de se alimentar. Quer ser como as árvores, bebendo água, agarrando-se ao solo para lhe crescerem raízes a partir das  mãos. Só aceita fazer amor com o corpo pintado de flores.

A família não sabe como lidar com a situação, não está preparada para aceitar alguém que muda de hábitos tão drasticamente. Há um certo conservadorismo. Algo comum à sociedade coreana: viver formatado de acordo com as normas culturais do país, tendo comportamentos altamente rígidos e estruturados, de que é exemplo a irmã da vegetariana. O  esforço para controlar a sua vida  causa-lhe um desgaste precoce, no limiar do esgotamento. Uma personagem vivendo em tensão permanente, funcionando como um espelho da sociedade, numa crítica ao formalismo social e à rigidez mental.  Ao mesmo  tempo, o romance  serve de apelo à capacidade de evasão e à tolerância para com quem sofre de problemas psiquiátricos.

História tensa, repleta de imagens fortes e intensas, descrevendo situações bizarras, violentas, colocando a nu as fragilidades humanas, a solidão, o medo, o vazio.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Do Cais de São Roque ao Esteiro de Salreu (a pé, claro!)

 


Os cartazes no cais de São Roque informam das grandes rotas da Ria de Aveiro, sinalizadas por diferentes cores. Três rotas de centenas de quilómetros, temáticas, para serem percorridas essencialmente em bicicleta. Sítios que contam a história industrial, agrícola, religiosa, ambiental e social destas terras rodeadas de água, ligadas por canais que exerciam um papel fundamental nas atividades económicas da região, unindo pessoas, transportando os produtos retirados da água e dos campos: bateiras, moliceiros, mercantéis, barcos artesanais especializados no transporte de sal, moliço e outros bens.   

Sem fazer por isso e sem planos prévios, fui caminhando: 22 km do cais de São Roque ao esteiro de Salreu, pela rota azul, atravessando ecovias e passadiços da ria.

Por que não? Tinha tempo, umas tangerinas, água e uvas passas que sobraram do Natal, na pequena mochila. Roupa não muito adequada, mas sapatilhas confortáveis, usadas no dia-a-dia. O dia de sol estava esplêndido, não choveria, de certeza. Tinha boina e protetor solar.

Por que não? Ir em frente  e depois apanhar o comboio em Estarreja em  vez de deambular por Aveiro, que já conheço e onde posso voltar sempre.

Os trilhos de grande rota podem ser seguidos em vários sentidos, sul, norte, interior, coincidir com outros trilhos: a grande rota do Atlântico, os caminhos de Santiago e pequenas rotas locais, num emaranhado de trajetos para todos os gostos, à disposição de serem explorados. Sem motores.  

Seguindo para norte, ao longo do canal de São Roque, logo após a  cabine de madeira (desconheço a sua função) vira-se à esquerda, atravessando a A25 pelo viaduto – a parte menos interessante do percurso. Segue-se a sinalização, caminhando mais 30 minutos, até ao cais de Esgueira. Local com estacionamento, bar e placas informativas onde começam os passadiços de madeira sobre a ria. Caminha-se até  Vilarinho por trechos de terra e matos, essencialmente de eucaliptais, passando por belas vivendas ajardinadas com vistas soberbas para a ria. 

Painéis interpretativos informam da flora e fauna mais comum. Várias pessoas percorrem o passadiço.

Mais à frente, a partir do cais do Príncipe do Rio Novo, raramente me cruzarei com pessoas. Serão os trechos mais interessantes,  a paisagem torna-se mais variada. Atravesso o rio Vouga, sigo por uma estrada bucólica no concelho de Albergaria-a-Velha, partilhada por outros trajetos de pequena rota locais. Entro nos trilhos do Bioria, pertencentes a Estarreja.

A sinalização da grande rota azul vai surgindo em marcos de madeira indicando a distância para o centro de Estarreja. 

Encontro uma encruzilhada de trilhos interessantes para serem percorridos de bicicleta e a pé.

Deve ser  fascinante fazer em bicicleta os labirintos de terra transformados  pelo homem em campos agrícolas: o Bocage -  mosaico de culturas e pastagens  variadas,  onde se encontram cavalos e vacas de raça marinhoa.  

Percorro caminhos debaixo de silêncio, interrompido  pelo grito das ocasionais cegonhas e garças que levantam voo assustadas,  por detrás dos caniços.

Termino no Centro de Interpretação Ambiental de Salreu. Famílias passeiam nas bicicletas alugadas.  Sigo mais 20 minutos a pé,  até ao apeadeiro.  Ninguém na linha, silêncio. A voz feminina, gravada, debita do altifalante: “Senhores passageiros peço a vossa atenção para a passagem de um comboio sem paragem na linha número 1. Mantenham-se atrás da linha de  segurança.” O Alfa pendular passa veloz três metros à minha frente - massa gigantesca num movimento louco que estilhaçaria qualquer objeto à sua frente. Parece que vou ser arrastado pela sucção do vento. Seguro-me bem ao cadeirão metálico. Volta o silêncio e o vazio ao apeadeiro solitário.  Aguardo a paragem do próximo suburbano.

Outros Links:

Bioria

Percursos de Albergaria-a-Velha

Grandes Rotas de Aveiro

Suburbanos Porto - Aveiro

Batel na ria de Aveiro

Mural de azulejos junto à capela de São Gonçalinho, Aveiro

Pormenor do percurso que eu iria iniciar entre o cais de São Roque e o esteiro de Salreu

Placa informativa no início do passadiço,  cais de Esgueira

local de observação


A distância que eu tinha pela frente


Clube de Canoagem de Cacia

Ponte do rio Novo do Príncipe

Rio Vouga

"sigo por uma estrada bucólica no concelho de Albergaria-a-Velha"


A aproximar-me dos trilhos do Bioria



Torre instável junto às comportas de Canelas

Comportas de Canelas

Centro de Interpretação Ambiental, Bioria

Um dos vários painéis do percurso

A ria e o céu azul


sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Contos do Gin-tonic


 

Lendo-os a primeira vez, estranha-se. Depois, como dizia Fernando Pessoa, entranha-se.

Escrita crua, rápida. Frases curtas e diretas, sem rendilhados e adjetivações. Diálogos sucintos. Personagens muitas vezes bizarras. Textos repletos de metáforas e alegorias: “O planeta Procion 5”, “A Grande Guerra Planetária Patriótica”, “Argola é Nossa!”, “Viva Tramagal!”.  Alusões irónicas ao país onde o autor nasceu, de onde fugiu e se exilou da ditadura do Estado Novo.

Um vago tom de tristeza e amargura percorre os contos, repletos de ironia e sarcasmo constantes. Mário Henrique-Leiria levou uma vida errante. Viveu em Israel, logo após a formação da nova nação, havendo ecos vagos desse período no conto “Felina”. Passou pela Alemanha, onde conheceu a futura esposa, que mais tarde lhe pôs os cornos. Deu-lhe o divórcio, foi para a América Latina, regressou a tempo de assistir ao 25 de abril. Saudou ironicamente “os 10 milhões de democratas que surgiram em Portugal no dia seguinte à revolução (prefácio de ACF, pág.14, coleção Público). Sofria de uma doença óssea que lhe provocava dores indizíveis: “A felicidade resume-se a estar 5 minutos sem dor” (prefácio, pág. 14). Morreu em Carcavelos aos 57 anos, onde vivia com a mãe e a tia. Nasceu em Lisboa em 1923. Aderiu ao surrealismo na década de 50, privou com Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas, no entanto,  os  grupos não eram a sua praia. Manteve  a sua  idiossincrasia e distanciamento   Os contos e poemas reunidos nos  dois únicos livros “Contos do Gin-tonic” e  “Novos Contos do Gin-tonic”, publicados em 1973 e 1976,  tornaram-se conhecidos apenas  porque  os textos do primeiro livro foram submetidos por um amigo à leitura de um “editor atento”. É obvio que o gin-tónico era a sua bebida preferida e a de muitas das suas personagens. 

domingo, 1 de dezembro de 2024

O Pelicano

 

O Pelicano. Em exibição no TNSJ

Há alguns anos que não ia ao teatro. Voltei para assistir ao “Pelicano”, de Strindberg.

A entrada ampla e elegante do hall do Teatro Nacional de São João tem algo de solene. Livros espalhados nos longos balcões de madeira, guias das inúmeras peças que passaram nos palcos do São João e do Carlos Alberto, à venda. Corredores e estofos almofadados no acesso à plateia, tribuna e balcões superiores. Mármores elegantes em tons discretos. A sala de espetáculos mantendo a mesma decoração, tal como a filmou Manuel de Oliveira, relembrando as idas ao teatro na juventude. 

Basta ter palco e texto para representar. Talvez  não surpreenda o pouco público – o Porto, a segunda  cidade do país,  centro de uma aglomeração populacional de mais de 1 milhão de habitantes, não enche o seu mais importante e histórico teatro  numa tarde de Domingo.  

Aparentemente, o teatro desatualizou - se,   perdeu a corrida para o cinema, concertos,  espetáculos multimídia, televisão e plataformas digitais. Obras vorazes e velozes que utilizam tecnologias inacessíveis à solidão dos palcos. Mais sedutoras e modernas, adaptadas ao ritmo de vida e gostos da sociedade de consumo imediato. O teatro foi ultrapassado!

Será mesmo!?

Não há nada melhor para fazer numa tarde de Domingo!?

A plateia e as tribunas medianamente ocupadas. Balcões vazios. A audiência aguarda o começo. Apagam-se as luzes:  “Senhoras e Senhores não é permitido a gravação de som e de imagens… Bom espetáculo.”

Inicia-se o mergulho. Disse que o teatro não se atualizou – não é verdade! Nuno Cardoso, o encenador, recorre à sonoplastia e luminotecnia contemporâneas, subtilmente envolventes. Discretamente, sem interferir na essência da obra e do pensamento do autor. Mantem-se o intimismo que o teatro deve ter com o público. Lentamente, vai-se viajando, ganhando envolvimento com os atores/ personagens,  entrando na história, acompanhando luzes, sombras e som. A mudança de lugar dos adereços  funcionando como partitura, definindo ritmos e tensões dramáticas.

É outro tempo, outro ritmo, outro diálogo.   Penso: ainda bem que o teatro continua  e temos encenadores que trabalham determinados para o fazer acontecer. Criativos, sensíveis, contundentemente e discretamente radicais. Fiéis aos autores originais e, simultaneamente, acutilantes observadores  da sociedade atual. 

O teatro torna-se ainda mais importante nestes dias. Como a minha perceção estava errada! É urgente o calor e a afetuosidade  das palavras, contra o excesso de ruído,  o afunilamento do pensamento, a uniformização do gosto, a vulgarização do espetáculo. O teatro obriga a pensar, a ter calma, a refletir. Necessita de tempo.  

“Teatro Íntimo” era o nome da sala  onde se estreou a peça, em Estocolmo,  no ano de 1907. Não podia estar mais de acordo com os propósitos do texto. Espaço construído para o  público ficar próximo dos atores, em cima do palco, num pequeno auditório de apenas 160 lugares. Strindberg pretendia criar um efeito de cumplicidade e de envolvimento emocional entre atores e público, ser "indiscreto", fazer dos espetadores Voyeurs -  no caso desta peça, observando uma família no seu lar.   Não obteve sucesso, o teatro durou apenas 3 anos. O autor Sueco escreveu uma tetralogia de peças estreadas nesse curto espaço de tempo, após o seu  “Inferno” pessoal, época de grandes tormentas emocionais. Foi um “desajustado”, sem pejo em mostrar nos seus textos, de forma tão descarada e direta, o quotidiano das famílias comuns. O Pelicano é um drama perturbador: aquilo que não se assume por pudor, Strindberg fá-lo nos palcos, retratando genialmente e,  por uma impressionante economia de meios, as profundezas da alma humana.

Os vícios de uma mãe desesperada seriam causados pelo capitalismo que se começava a impor na sociedade Sueca? Seria uma mãe rural, numa sociedade patriarcal, mais carinhosa e atenta? Questiona uma exegeta no manual de leitura. 

Sendo assim, vivendo-se hoje tempos de capitalismo desenfreado, temos de concluir que o drama se mantém pertinentemente atual. Basta ler nos jornais os casos recorrentes de mães que maltratam os filhos. 

Os manuais de leitura do TNSJ são verdadeiros compêndios de cultura, descobertas e fruições paralelas.

Um Homem Sem Pátria

 


Kurt Vonnegut diverte-se a falar mal do planeta e da evolução humana. Para ele, o Homo sapiens é um “falhanço” (página 21). “A evolução que vá para o inferno” (página 22), graças a ela o homem construiu bombas atómicas, lançou o planeta no caos climático. Como paradoxo da sua teoria, o homem deve ser Homo sapiens até ao fim, isto é, ser coerente com os seus princípios e rebentar de uma vez por todas com o planeta.

O livro foi escrito em 2004. K.V. faleceu em 2007. George Bush Jr.  era o presidente dos Estados Unidos, por quem não se sentia minimamente representado,  nem  pelas suas políticas. Chama aos políticos contemporâneos de “adivinhos”.

“Um homem sem pátria” é o livro de um autor que não se identifica com nenhum país em particular, que, por acaso, nasceu nos Estados Unidos, no Indiana, no ano de 1922. Descendente de alemães, foi soldado na segunda guerra mundial. Estava preso em Dresden quando a cidade foi bombardeada pela Royal Air Force, 13 a 15 de fevereiro de 1945. Julgou que ia morrer debaixo dos escombros: cada vez que uma bomba  caia nas proximidades, a prisão estremecia. Foi dos poucos que sobreviveu. Encontrou no humor e na escrita uma forma de superar a incompreensão, o indizível,   a destruição e o medo. Esteve muitos anos sem saber como o fazer, até que em 1967 escreveu  Slaughterhouse 5”, “Matadouro 5”, livro semiautobiográfico, relato da experiência de Dresden.

A sátira e o humor permanente significam que se está vivo. Dessa forma foi escrevendo e  contando histórias até aos 84 anos.  Considerava-se um socialista utópico. Era ateu, no entanto, Jesus Cristo uma das suas  referências, das mais fascinantes e  generosas personagens  da história. O “Sermão da Montanha”,  exemplo do humanismo que o ser humano deve ter com os  congéneres.