O Pelicano. Em exibição no TNSJ |
Há alguns anos que não ia ao
teatro. Voltei para assistir ao “Pelicano”, de Strindberg.
A entrada ampla e elegante do hall
do Teatro Nacional de São João tem algo de solene. Livreiros com dezenas de guias
das inúmeras peças que passaram nos palcos do São João e do Carlos Alberto. Corredores
e estofos almofadados no acesso à plateia, tribuna e balcões superiores. Mármores
elegantes em tons discretos. A sala de espetáculos, tal como há 100 anos, como
a filmou Manuel de Oliveira, relembrando na sua juventude as idas ao teatro de
São João.
O teatro mudou pouco, os palcos e a forma como
se encena. Talvez por isso não surpreenda que haja tão pouca gente – O Porto, a segunda cidade do país,
centro de uma aglomeração populacional
de mais de 1 milhão de habitantes, não enche o seu mais importante e histórico teatro numa tarde de Domingo.
Aparentemente, o teatro
desatualizou-se, é uma arte ultrapassada, perdeu a corrida para o cinema,
concertos, espetáculos multimídia,
televisão e plataformas digitais. Mais vorazes e velozes, recorrem a tecnologias
que o teatro “clássico” não utiliza. Logo, mais sedutoras e modernas, adaptadas
ao ritmo da vida e gostos da sociedade de consumo imediato. O teatro está
ultrapassado!
Será mesmo!?
Não há nada melhor para fazer
numa tarde de Domingo!?
A plateia e as tribunas medianamente
ocupadas. Balcões vazios. A audiência aguarda o começo. Apagam-se as luzes: “Senhoras e Senhores não é permitido a
gravação de som e de imagens… Bom espetáculo.”
Começa a viagem no tempo. O mergulho íntimo nos diálogos. Disse que o teatro não se atualizou – não é verdade! Nuno Cardoso, o encenador, recorre a sonoplastias e jogos de luzes contemporâneos, subtilmente envolventes. Discretamente, sem interferir na essência da obra e do pensamento do autor. Mantem-se fiel ao intimismo que o teatro deve ter com o público. Lentamente vai-se viajando, ganhando envolvimento com os atores/ personagens, entrando na história, luzes, sombras e sonoplastia. A mudança de lugar dos adereços funcionando como partitura, definindo ritmos e tensões dramáticas.
É outro tempo, outro ritmo, outro diálogo. Penso: ainda bem que continua a haver este tipo de teatro e encenadores assim, criativos e sensíveis, contundentemente e discretamente radicais. Fieis aos autores originais, simultaneamente, acutilantes observadores da sociedade atual.
O teatro torna-se ainda mais importante nos tempos que correm. Como a minha perceção estava errada! É urgente o calor e a afetuosidade das palavras contra a velocidade e o afunilamento do pensamento, a uniformização do gosto, a vulgarização do espetáculo. O teatro obriga a pensar, a ter calma, a refletir. Necessita de tempo.
“Teatro Íntimo” era o nome da sala onde se estreou a peça, em Estocolmo, no ano de 1907. Não podia estar mais de acordo com os propósitos do texto. Espaço construído para o público estar próximo dos atores, em cima do palco, num pequeno auditório de apenas 160 espetadores. Strindberg pretendia criar um efeito de cumplicidade e envolvimento emocional entre atores e público, ser "indiscreto", fazer dos espetadores Voyeurs, observando uma família no seu lar. Não teve sucesso, durou apenas 3 anos. O autor Sueco escreveu uma tetralogia de peças estreadas nesse curto espaço de tempo, após o seu “Inferno”, época em que revelou grande instabilidade psicológica. Foi um “desajustado”, não tinha pejo em mostrar de forma tão descarada e direta o quotidiano das famílias comuns – a pequena burguesia arruinada e mesquinha. O Pelicano é um drama incomodativo e perturbador: o espetador via-se ao espelho. Aquilo que não se assumia por pudor, Strindberg fazia-o nos palcos, retratando genialmente e com uma economia de meios impressionante as profundezas da alma humana.
Os vícios de uma mãe desesperada seriam causados pelo capitalismo que se começava a impor na sociedade sueca? Seria uma mãe rural, numa sociedade patriarcal, mais carinhosa e atenta? Questiona uma exegeta no manual de leitura. Sendo assim, vivendo-se hoje tempos de capitalismo desenfreado, temos de concluir que o drama se mantem pertinentemente atual. Basta ler nos jornais os casos recorrentes de mães que agridem e abandonam os filhos.
Os manuais de leitura do TNSJ são verdadeiros compêndios de cultura. É outro prazer o envolvimento recatado na leitura dos textos.