domingo, 1 de dezembro de 2024

O Pelicano

 

O Pelicano. Em exibição no TNSJ

Há alguns anos que não ia ao teatro. Voltei para assistir ao “Pelicano”, de Strindberg.

A entrada ampla e elegante do hall do Teatro Nacional de São João tem algo de solene. Livreiros com dezenas de guias das inúmeras peças que passaram nos palcos do São João e do Carlos Alberto. Corredores e estofos almofadados no acesso à plateia, tribuna e balcões superiores. Mármores elegantes em tons discretos. A sala de espetáculos, tal como há 100 anos, como a filmou Manuel de Oliveira, relembrando na sua juventude as idas ao teatro de São João.

O teatro mudou pouco, os palcos e a forma como se encena. Talvez por isso não surpreenda que haja tão pouca gente – O Porto, a segunda  cidade do país,  centro de uma aglomeração populacional de mais de 1 milhão de habitantes, não enche o seu mais importante e histórico teatro  numa tarde de Domingo.  

Aparentemente, o teatro desatualizou-se, é uma arte ultrapassada, perdeu a corrida para o cinema, concertos,  espetáculos multimídia, televisão e plataformas digitais. Mais vorazes e velozes, recorrem a tecnologias que o teatro “clássico” não utiliza. Logo, mais sedutoras e modernas, adaptadas ao ritmo da vida e gostos da sociedade de consumo imediato. O teatro está ultrapassado!

Será mesmo!?

Não há nada melhor para fazer numa tarde de Domingo!?

A plateia e as tribunas medianamente ocupadas. Balcões vazios. A audiência aguarda o começo. Apagam-se as luzes:  “Senhoras e Senhores não é permitido a gravação de som e de imagens… Bom espetáculo.”

Começa a viagem no tempo. O mergulho íntimo nos diálogos.  Disse que o teatro não se atualizou – não é verdade! Nuno Cardoso, o encenador, recorre a sonoplastias e jogos de luzes contemporâneos, subtilmente envolventes. Discretamente, sem interferir na essência da obra e do pensamento do autor. Mantem-se fiel ao intimismo que o teatro deve ter com o público. Lentamente vai-se viajando, ganhando envolvimento com os atores/ personagens,  entrando na história, luzes, sombras e sonoplastia. A mudança de lugar dos adereços  funcionando  como partitura, definindo ritmos e tensões dramáticas.

É outro tempo, outro ritmo, outro diálogo.   Penso: ainda bem que continua a haver este tipo de teatro e encenadores assim,  criativos e sensíveis, contundentemente e discretamente radicais. Fieis aos autores originais, simultaneamente, acutilantes observadores  da sociedade atual. 

O teatro torna-se ainda mais importante nos tempos que correm. Como a minha perceção estava errada! É urgente o calor e a afetuosidade  das palavras  contra a velocidade e o afunilamento do pensamento, a uniformização do gosto, a vulgarização do espetáculo. O teatro obriga a pensar, a ter calma, a refletir. Necessita de tempo.  

“Teatro Íntimo” era o nome da sala  onde se estreou a peça, em Estocolmo,  no ano de 1907. Não podia estar mais de acordo com os propósitos do texto. Espaço construído para o  público estar  próximo dos atores, em cima do palco, num pequeno auditório de apenas 160 espetadores. Strindberg pretendia criar um efeito de cumplicidade e envolvimento emocional entre atores e público, ser "indiscreto", fazer dos espetadores Voyeurs,   observando uma família no seu lar.   Não teve sucesso, durou apenas 3 anos. O autor Sueco escreveu uma tetralogia de peças estreadas nesse curto espaço de tempo, após o seu  “Inferno”, época em que revelou grande instabilidade psicológica. Foi um “desajustado”, não tinha pejo em mostrar de forma tão descarada e direta o quotidiano das famílias comuns – a pequena burguesia arruinada e mesquinha. O Pelicano é um drama incomodativo e perturbador: o espetador via-se ao espelho. Aquilo que não se assumia por pudor, Strindberg fazia-o nos palcos, retratando genialmente e com uma economia de meios impressionante as profundezas da alma humana.

Os vícios de uma mãe desesperada seriam causados pelo capitalismo que se começava a impor na sociedade sueca? Seria uma mãe rural, numa sociedade patriarcal, mais carinhosa e atenta? Questiona uma exegeta no manual de leitura. Sendo assim, vivendo-se hoje tempos de capitalismo desenfreado, temos de concluir que o drama se mantem pertinentemente atual. Basta ler nos jornais os casos recorrentes de mães que agridem e abandonam os filhos. 

Os manuais de leitura do TNSJ são verdadeiros compêndios de cultura. É outro prazer o envolvimento recatado na leitura dos textos. 

Um Homem Sem Pátria

 


Kurt Vonnegut diverte-se a falar mal do planeta e da evolução humana. Para ele, o Homo sapiens é um “falhanço” (página 21). “A evolução que vá para o inferno” (página 22), graças a ela o homem construiu bombas atómicas, lançou o planeta no caos climático. Como paradoxo da sua teoria, o homem deve ser Homo sapiens até ao fim, isto é, ser coerente com os seus princípios e rebentar de uma vez por todas com o planeta.

O livro foi escrito em 2004. K.V. faleceu em 2007. George Bush Jr.  era o presidente dos Estados Unidos, por quem não se sentia minimamente representado,  nem  pelas suas políticas. Chama aos políticos contemporâneos de “adivinhos”.

“Um homem sem pátria” é o livro de um autor que não se identifica com nenhum país em particular, que, por acaso, nasceu nos Estados Unidos, no Indiana, no ano de 1922. Descendente de alemães, foi soldado na segunda guerra mundial. Estava preso em Dresden quando a cidade foi bombardeada pela Royal Air Force, 13 a 15 de fevereiro de 1945. Julgou que ia morrer debaixo dos escombros: cada vez que uma bomba  caia nas proximidades, a prisão estremecia. Foi dos poucos que sobreviveu. Encontrou no humor e na escrita uma forma de superar a incompreensão, o indizível,   a destruição e o medo. Esteve muitos anos sem saber como o fazer, até que em 1967 escreveu  Slaughterhouse 5”, “Matadouro 5”, livro semiautobiográfico, relato da experiência de Dresden.

A sátira e o humor permanente significam que se está vivo. Dessa forma foi escrevendo e  contando histórias até aos 84 anos.  Considerava-se um socialista utópico. Era ateu, no entanto, Jesus Cristo uma das suas  referências, das mais fascinantes e  generosas personagens  da história. O “Sermão da Montanha”,  exemplo do humanismo que o ser humano deve ter com os  congéneres.