Os livros dão pistas, desvendam novas perspetivas, abordam
assuntos de forma surpreendente. Por vezes, procura-se justificação para o que já se sabe, algo que confirme ideias. À partida, a escolha de um livro,
seja ele qual for, é condicionada pelas crenças do leitor.
Este, de que escrevo, surpreendeu
absolutamente: acessível, cativante, repleto de referências bibliográficas. Como tal uma tese histórica cientificamente fundamentada e, simultaneamente, apaixonado e surpreendentemente espiritual.
Amitav Ghosh aborda temas complexos e polémicos - escravatura, exploração de recursos naturais no contexto da expansão europeia e capitalista - com erudição e empatia pelos seres, culturas e populações esquecidas, na voracidade da evolução histórica e económica mundial, vítimas de violências várias. De um lado, a cultura materialista, antropocêntrica, considerando o planeta à disposição do homem; do outro, a cosmovisão biocêntrica que o coloca em pé de igualdade com os restantes seres e elementos. Animais, plantas, rochas, riachos, montanhas, vales, tem valor simbólico e espiritual. Contam histórias criadas pelos homens, nas quais eles se inserem e se relacionam com o ambiente circundante, dando pertença e significado ao seu mundo.
Antes da chegada dos Holandeses
já os habitantes das ilhas da Banda (na atual Indonésia) comerciavam
noz-moscada com vários povos da região. Era-lhes alheio o conceito de
monopólio, terem um só comprador de especiarias. Após
escaramuças várias dá-se o massacre 21 de abril de 1621 que permite a conquista
definitiva das ilhas e o acesso exclusivo
à exportação da noz-moscada.
Os colonos europeus chegados no séc. XVII às Índias Orientais tinham uma visão do mundo “mecanicista”, veiculada pelo estado e a igreja, instituições que moldavam o sistema de valores dos 17 conselheiros da Companhia Holandesa das Índias Orientais. Interessava-lhes o lucro que obteriam com o comércio das especiarias. As crenças pagãs dos camponeses europeus estavam próximas ainda das crenças dos nativos de outras partes do planeta, ambos possuíam visões “vitalistas” integradas no universo: o homem e a natureza eram unos. Da mesma forma, existiram na Europa filósofos e pensadores que partilhavam essa visão do mundo, tornados excêntricos e relegados para segundo plano em detrimento de filósofos mais enquadráveis e justificativos dos desígnios da expansão europeia. No primeiro caso, Paracelso, Schopenhauer, Thoreau; no segundo, Descartes e Bacon. O planeta ia sendo gradualmente dessacralizado e inanimado, a natureza subjugada e inerte nas principais correntes filosóficas. Um exemplo da dessacralização simultânea de camponeses europeus e nativos nos territórios ultramarinos foi a transformação na Inglaterra de terrenos abertos, comuns e partilhados por todos há centenas de anos em Enclosures, propriedade privada.
Em Portugal - o aparte é meu – talvez devido à
industrialização incipiente, à
ruralização e isolamento de muita população foi possível manter práticas
agrícolas comunitárias até ao século XX – os baldios.
As ortodoxias oficiais tudo
fizeram para normalizar discurso e pensamento.
Vive-se hoje a noite do Halloween
– a noite das bruxas. É interessante e pertinente referir a este propósito um
dado histórico que o autor aborda no fim do livro. As bruxas eram um fenómeno
inexistente na europa medieval, “as caças às bruxas” tornaram-se comuns na idade
moderna quando os estados centralizados, empenhados na mensurabilidade da
economia e dos comportamentos, tudo racionalizavam de acordo com preceitos científicos e religiosos. Fenómenos
para os quais não tinham explicações eram atribuídos a forças maléficas e
irracionais, que escapavam ao seu controlo. As “bruxas” neste contexto seriam mulheres
que não se enquadravam nos padrões da época, podiam ser curandeiras que conheciam
aplicações medicinais naturais ou que, simplesmente, não se encaixavam por algum motivo na sociedade e constituíam uma
ameaça ao poder masculino das sociedades patriarcais. Serviam de bodes expiatórios, acusadas de más
colheitas, práticas contranatura, doenças contagiosas. Seres desumanizados
e diabolizados. Argumentos semelhantes aos
usados em discussões teológicas relativos à humanidade dos indígenas. Não é por
acaso que na época da caça às bruxas também surgiram na Europa gravuras que
retratavam nativos como seres monstruosos.
Supostamente, as bruxas eram leves o que lhes permitia voar. Nas “Casas de Pesagem” – não conheço qualquer dado relativo a Portugal – as mulheres suspeitas eram pesadas e, caso não tivessem o peso estabelecido, confirmadas como bruxas. Foram comuns na Holanda e norte da Europa.
Guillaume Le Testu (1556), Le Havre. Wikimedia |
Balança de pesar bruxas, Freiburg, Alemanha, Wikimedia |
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