quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A Maldição da Noz-Moscada e a Noite das Bruxas


Os livros dão pistas,  desvendam novas perspetivas, abordam  assuntos de forma surpreendente. Por vezes, procura-se  justificação para o que já se sabe,  algo que confirme  ideias. À partida, a escolha de um livro, seja ele qual for, é condicionada pelas crenças do leitor.

Este, de que escrevo, surpreendeu absolutamente: acessível, cativante, repleto de referências bibliográficas. Como tal uma tese histórica cientificamente fundamentada e, simultaneamente, apaixonado e surpreendentemente espiritual.

Amitav Ghosh aborda  temas complexos e polémicos - escravatura,  exploração de recursos naturais no contexto da expansão europeia e capitalista - com erudição e empatia pelos seres,    culturas e populações esquecidas,  na voracidade da evolução histórica e económica mundial,  vítimas de violências várias.  De um lado, a cultura materialista, antropocêntrica, considerando o planeta à disposição  do homem; do outro, a cosmovisão biocêntrica que o coloca em pé de igualdade com os restantes seres e elementos.  Animais, plantas, rochas, riachos, montanhas,  vales, tem valor simbólico e espiritual. Contam histórias criadas pelos  homens, nas quais eles se inserem e se relacionam com o ambiente circundante,  dando pertença e significado ao seu mundo.

Antes da chegada dos Holandeses já os habitantes das ilhas da Banda (na atual Indonésia) comerciavam noz-moscada com vários povos da região. Era-lhes alheio o conceito de monopólio, terem um só comprador de especiarias. Após escaramuças várias dá-se o massacre 21 de abril de 1621 que permite a conquista definitiva  das ilhas e o acesso exclusivo à exportação da noz-moscada.

Os colonos europeus chegados no séc. XVII às Índias Orientais tinham uma visão do mundo “mecanicista”,  veiculada pelo estado e a igreja, instituições que moldavam o sistema de valores dos 17 conselheiros da Companhia Holandesa das Índias Orientais.   Interessava-lhes o lucro que obteriam com o comércio das especiarias. As crenças pagãs dos camponeses europeus estavam próximas ainda das crenças dos nativos de outras partes do planeta,  ambos possuíam visões “vitalistas” integradas no universo: o homem e a natureza  eram unos.   Da mesma forma, existiram na Europa filósofos e pensadores que partilhavam essa visão do mundo,  tornados excêntricos e relegados para segundo plano em detrimento de filósofos mais enquadráveis e justificativos dos desígnios  da expansão europeia. No primeiro caso, Paracelso, Schopenhauer, Thoreau; no segundo, Descartes e Bacon. O planeta ia sendo gradualmente dessacralizado e inanimado, a natureza subjugada e inerte  nas  principais correntes filosóficas.   Um exemplo da dessacralização simultânea de camponeses europeus e nativos nos territórios ultramarinos foi a transformação na Inglaterra de  terrenos abertos, comuns e partilhados por todos há centenas de anos em  Enclosures,  propriedade privada.

Em Portugal -  o aparte é meu – talvez devido à industrialização incipiente,  à ruralização e isolamento de muita  população foi possível manter práticas agrícolas comunitárias até ao século XX – os baldios.

As ortodoxias oficiais tudo fizeram para normalizar discurso e pensamento.  

Vive-se hoje a noite do Halloween – a noite das bruxas. É interessante e pertinente referir a este propósito um dado histórico que o autor aborda no fim do livro. As bruxas eram um fenómeno inexistente na europa medieval, “as caças às bruxas” tornaram-se comuns na idade moderna quando os estados centralizados, empenhados na mensurabilidade   da economia e dos comportamentos, tudo racionalizavam de acordo com  preceitos científicos e religiosos. Fenómenos para os quais não tinham explicações eram atribuídos a forças maléficas e irracionais, que escapavam ao seu controlo. As “bruxas” neste contexto seriam mulheres que não se enquadravam nos padrões da época, podiam ser curandeiras que conheciam aplicações medicinais naturais ou que, simplesmente, não se encaixavam por algum motivo na sociedade e constituíam uma ameaça ao poder masculino das sociedades patriarcais. Serviam  de bodes expiatórios, acusadas de más colheitas, práticas contranatura, doenças contagiosas.   Seres desumanizados e diabolizados.  Argumentos semelhantes aos usados em discussões teológicas relativos à humanidade dos indígenas. Não é por acaso que na época da caça às bruxas também surgiram na Europa gravuras que retratavam nativos como seres monstruosos.

Supostamente, as bruxas eram leves o que lhes permitia voar. Nas   “Casas de Pesagem” – não conheço qualquer  dado  relativo a Portugal – as mulheres suspeitas eram pesadas e, caso não tivessem o peso estabelecido, confirmadas como bruxas. Foram comuns na Holanda e norte da Europa.


Guillaume Le Testu (1556), Le Havre. Wikimedia 

Balança de pesar bruxas, Freiburg, Alemanha, Wikimedia

Sem comentários: