Ia desengonçado à minha frente. Devagar, em dificuldade. Corpo inclinado para a esquerda,
ombros tortos, a arrastar a perna. Transportava o carrinho de rodas pela
mão, nas costas levava uma pequena mochila com
a vieira de Santiago. Ultrapassei-o. Disse qualquer coisa que não
percebi. Virei-me para ele:
- Precisa de alguma coisa?
- Conhece algum sítio onde me
possa abrigar?
Falava baixo, pausadamente, com um sotaque estranho. Cerca de 70 anos, magro, cabelo e barba rala, branca. Boné, casaco de fato de treino, calças de ganga, bolsa presa ao cinto das calças.
Anoitecia e chuviscava. Apontei
para o alpendre do restaurante fechado em cima do areal. Fiquei intrigado, sem
perceber se era mendigo, peregrino ou ambos. Abrandei o passo para o
acompanhar.
- O senhor está a fazer o caminho
de Santiago?
- Sim. Comecei em Valença do
Minho, fui até Santiago e agora vou para Fátima. Tenho aqui a credencial.
Abriu a bolsa com os dedos inaptos, a tremer. Procurou no enchumaço da papelada.
- Deixe estar, deixe estar, não é
preciso.
Queria demonstrar que era
de facto um peregrino e não um mendigo, como se me tivesse lido o pensamento. Tinha um aspeto muito frágil, devia estar com fome.
- O senhor quer comer alguma coisa?
Fechou a bolsa sem encontrar a
credencial, olhou para mim:
- Não posso comer qualquer coisa –
abriu a boca, mostrou os poucos dentes que tinha; levantou a camisola debaixo do casaco, mostrou a bolsa de borracha das fezes agarrada ao estômago – é para aqui
que faço.
Continuava a arrastar-se com
dificuldade enquanto caminhávamos em direção ao alpendre.
- Acho que fico aqui, parece um bom sítio. Vou montar a tenda, estou habituado a montar a tenda em muitos sítios. – A escuridão acentuava o isolamento do restaurante no meio da duna, os juncos altos que o rodeavam escondiam-no da vista. Era um sítio propício para se ser assaltado durante a noite.
- Também costumo ficar nos quartéis dos bombeiros - concluiu, pressentindo o mesmo que eu.
Conhecia o quartel da Aguda, próximo dali. Sabia que os quarteis dão apoio, duche e dormida.
Deixei-o. Fui à avenida do Senhor da Pedra, às barraquinhas de doces tradicionais. Procurei alimentos moles: São para uma pessoa idosa, desdentada. Então, leve estes aqui, disse o vendedor da barraquinha “Casa Amélia, Doces de Penafiel”. Comprei quatro Cavacas de Margaride.
O alpendre encontrava-se vazio. Pode ter ido para o quartel, pensei. Não voltei a vê-lo e não o procurei mais. As cavacas não se estragaram, partilhei-as no dia seguinte no almoço de família, a acompanhar o café.
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