terça-feira, 21 de maio de 2024

Senhor da Pedra

 



Ia desengonçado  à minha frente. Devagar, em dificuldade. Corpo inclinado para a esquerda, ombros tortos, a arrastar a perna. Transportava o carrinho de rodas pela mão, nas costas levava uma pequena mochila com  a vieira de Santiago. Ultrapassei-o. Disse qualquer coisa que não percebi. Virei-me para ele:

- Precisa de alguma coisa?

- Conhece algum sítio onde me possa abrigar?

Falava baixo, pausadamente, com um sotaque estranho. Cerca de 70 anos, magro, cabelo e barba rala, branca. Boné, casaco de fato de treino, calças de ganga, bolsa presa ao cinto das calças.

Anoitecia e chuviscava. Apontei para o alpendre do restaurante fechado em cima do areal. Fiquei intrigado, sem perceber se era mendigo,  peregrino ou ambos. Abrandei o passo para o acompanhar.

- O senhor está a fazer o caminho de Santiago?

- Sim. Comecei em Valença do Minho, fui até Santiago e agora vou para Fátima. Tenho aqui a credencial.

Abriu a bolsa com os dedos inaptos, a tremer. Procurou no  enchumaço da papelada.

- Deixe estar, deixe estar, não é preciso.

Queria demonstrar que era de facto um  peregrino e não um mendigo, como se me tivesse lido o pensamento. Tinha um aspeto muito frágil, devia estar com fome.

- O senhor quer comer alguma coisa?

Fechou a bolsa sem encontrar a credencial, olhou para mim:

- Não posso comer qualquer coisa – abriu a boca, mostrou os poucos dentes que tinha; levantou a camisola debaixo do casaco, mostrou a bolsa de borracha das fezes agarrada ao estômago – é para aqui que faço.

Continuava a arrastar-se com dificuldade enquanto caminhávamos em direção ao alpendre.

- Acho que fico aqui, parece um bom sítio. Vou montar a tenda, estou habituado a montar a tenda  em muitos sítios. – A escuridão  acentuava o isolamento do restaurante no meio da  duna, os juncos altos que o rodeavam escondiam-no da vista. Era um sítio propício para se ser assaltado durante a noite. 

- Também costumo ficar nos quartéis dos bombeiros - concluiu, pressentindo o mesmo que eu.

Conhecia o quartel da Aguda, próximo dali. Sabia que os quarteis dão apoio, duche e dormida. 

Deixei-o. Fui à avenida do Senhor da Pedra, às barraquinhas de doces tradicionais. Procurei alimentos moles:  São para uma pessoa idosa, desdentada. Então, leve estes aqui, disse o vendedor  da barraquinha “Casa Amélia, Doces de Penafiel”. Comprei quatro Cavacas de Margaride. 

O alpendre encontrava-se vazio.  Pode ter ido para o quartel, pensei. Não voltei a vê-lo e não o procurei mais. As cavacas não se estragaram, partilhei-as no dia seguinte no almoço de família, a acompanhar o café. 





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