quinta-feira, 30 de maio de 2024

Senhor dos Matosinhos

 


Nunca no Porto, ou em qualquer outra cidade com metro eu me lembro de ir assim. A carruagem completamente apinhada. Os passageiros como sardinhas enlatadas sob o calor, de corpos encostados uns aos outros, sem qualquer privacidade, transpirando. O ar doentio e empastado da carruagem fechada, sem ventilação. Uma estufa para a qual eu não estava preparado.

A criança indefesa agarrada ao pilar, protegida pela avô idosa, frágil e pequena,  fazendo barreira com o corpo e braços para salvaguardá-la dos arranques e solavancos súbitos que desequilibram os passageiros,  podendo cair sobre ela.  Jovens turistas italianos de manga caviada, estudantes de Erasmus, barulhentos, dizendo na língua deles, mais não, mais não, sempre que o metro para numa estação, torcendo para mais ninguém entrar.

Nenhum segurança nas plataformas a organizar as entradas e saídas. Os passageiros entregues à sua sorte, desconfortáveis. Os únicos que vejo, ainda a viagem segue tranquila, verificam os bilhetes para sacar a multa. Não fazem mais nada a não ser isso. Deambulam pelas plataformas a olhar o telemóvel, sem esclarecer dúvidas, sem retirar os recibos  que se acumulam nas bocas das maquinas. Imprestáveis.

Quando a porta abre respira-se um pouco melhor, ouve-se  um ahhh de alívio pelo ar que entra. A porta da carruagem fecha e  volta a abrir,  corpos, braços e pernas impedem-na de correr. É preciso reajustar o  espaço. Os corpos voltam-se a mexer, a comprimirem-se mais um pouco, encaixando-se novamente para a porta elétrica fechar. Uma mulher tira o leque e abana-se com ele. Observo o mapa da linha, conto as paragens que  faltam, oito. É muito tempo!

A comparação não tem fundamento, mas penso no horror dos vagões a transportarem  judeus para Auschwitz. Olho o chão, foco-me, o quão horrível seria alguém vomitar ou sentir-se mal no meio desta confusão.

Pensei que o regresso seria mais tranquilo. Entramos na primeira estação, apanhamos lugares livres. Logo depois, em Matosinhos Sul, chegam dezenas de adolescentes vindos da praia. Telemóveis a bombar música latino-americana, martelinhos, bum, bum, bum. Calções, Chinelos, bikinis. Na plataforma, ainda antes de entrarem,  escondem a bola de um dos miúdos, obrigando-o a procurá-la. Continuam a brincadeira dentro da carruagem, mandando a bola ao ar. De repente, a carruagem fica apinhada, volta o mesmo sufoco. Assisto sentado. Os passageiros mais idosos seguem resignados, incapazes, ou com medo de repreender os adolescentes, de mandá-los calar, de baixarem o volume. Os miúdos histéricos cantarolam. Fazem roda e no meio dela uma miúda meneia as ancas, como se estivesse no sambódromo, feliz. A viagem segue ruidosa, apertada.




terça-feira, 21 de maio de 2024

Senhor da Pedra

 



Ia desengonçado  à minha frente. Devagar, em dificuldade. Corpo inclinado para a esquerda, ombros tortos, a arrastar a perna. Transportava o carrinho de rodas pela mão, nas costas levava uma pequena mochila com  a vieira de Santiago. Ultrapassei-o. Disse qualquer coisa que não percebi. Virei-me para ele:

- Precisa de alguma coisa?

- Conhece algum sítio onde me possa abrigar?

Falava baixo, pausadamente, com um sotaque estranho. Cerca de 70 anos, magro, cabelo e barba rala, branca. Boné, casaco de fato de treino, calças de ganga, bolsa presa ao cinto das calças.

Anoitecia e chuviscava. Apontei para o alpendre do restaurante fechado em cima do areal. Fiquei intrigado, sem perceber se era mendigo,  peregrino ou ambos. Abrandei o passo para o acompanhar.

- O senhor está a fazer o caminho de Santiago?

- Sim. Comecei em Valença do Minho, fui até Santiago e agora vou para Fátima. Tenho aqui a credencial.

Abriu a bolsa com os dedos inaptos, a tremer. Procurou no  enchumaço da papelada.

- Deixe estar, deixe estar, não é preciso.

Queria demonstrar que era de facto um  peregrino e não um mendigo, como se me tivesse lido o pensamento. Tinha um aspeto muito frágil, devia estar com fome.

- O senhor quer comer alguma coisa?

Fechou a bolsa sem encontrar a credencial, olhou para mim:

- Não posso comer qualquer coisa – abriu a boca, mostrou os poucos dentes que tinha; levantou a camisola debaixo do casaco, mostrou a bolsa de borracha das fezes agarrada ao estômago – é para aqui que faço.

Continuava a arrastar-se com dificuldade enquanto caminhávamos em direção ao alpendre.

- Acho que fico aqui, parece um bom sítio. Vou montar a tenda, estou habituado a montar a tenda  em muitos sítios. – A escuridão  acentuava o isolamento do restaurante no meio da  duna, os juncos altos que o rodeavam escondiam-no da vista. Era um sítio propício para se ser assaltado durante a noite. 

- Também costumo ficar nos quartéis dos bombeiros - concluiu, pressentindo o mesmo que eu.

Conhecia o quartel da Aguda, próximo dali. Sabia que os quarteis dão apoio, duche e dormida. 

Deixei-o. Fui à avenida do Senhor da Pedra, às barraquinhas de doces tradicionais. Procurei alimentos moles:  São para uma pessoa idosa, desdentada. Então, leve estes aqui, disse o vendedor  da barraquinha “Casa Amélia, Doces de Penafiel”. Comprei quatro Cavacas de Margaride. 

O alpendre encontrava-se vazio.  Pode ter ido para o quartel, pensei. Não voltei a vê-lo e não o procurei mais. As cavacas não se estragaram, partilhei-as no dia seguinte no almoço de família, a acompanhar o café. 





domingo, 19 de maio de 2024

Sobre a arte, os artesãos e os monumentos (numa perspetiva marxista)

 

Sé do Porto

O artesão pré-capitalista é um mestre na sua arte, conhece as técnicas e todas as etapas do processo de fabrico do objeto. É reconhecido profissionalmente. O trabalho dá-lhe sentido de pertença a uma coletividade,  realiza-o socialmente.

O operário pós-capitalista é um “apêndice da máquina” (Raquel Varela, Breve História de Portugal, pág. 103), realiza um trabalho parcelado, desconhece o processo global de fabrico. É mais uma peça de uma engrenagem sobre a qual não exerce qualquer controlo. O trabalho é alienante.

A máquina torna-o mais ignorante do que ao artesão,  substituiu-o na realização do trabalho. O operário é um “ativo” controlado por ela, propriedade do patrão,  mais facilmente chantageado com o despedimento e os baixos salários.

A invenção da máquina desempenhou uma função idêntica à invenção do computador e da Inteligência Artificial. Ambos são meios sofisticados de substituir o Homem na sua capacidade de realizar tarefas e de pensar. Primeiro, deu-se a alienação do trabalho e, agora, corre-se o risco de se alienar o pensamento.

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As catedrais medievais da Europa Ocidental são o resultado do trabalho coletivo de grémios de artesãos, significativo e socialmente reconhecido, que  contribuiu para a construção de obras arquitetónicas magnificentes.

Sé do Porto

A economia de mercado teve os seus primórdios nas cidades estado italianas e nelas ocorreram as transformações artísticas e culturais subsequentes que iriam  influenciar a arte ocidental,  colocando o “Homem no centro do mundo”.  O individualismo, o primado do indivíduo sobre a coletividade, fetiche da economia de mercado, teve, no movimento Romântico do século XIX, uma das suas mais importantes manifestações  estéticas e culturais. Surgiu logo após a revolução indústrial como reação à destruição dos ambientes naturais, valorizando a natureza e  o  Homem solitário, apartado dos seus contemporâneos, privilegiando as manifestações da sua personalidade, em detrimento da sociedade.

Na arquitetura das cidades deixaram de ser reconhecidas as obras coletivas, os monumentos passaram a ser identificados pela assinatura dos engenheiros e arquitetos que os conceberam. Gustave Eifell é o caso mais paradigmático em Portugal.

Ponte D. Luís, concebida por Eifell

Rua dos Mercadores
O artesão pré-capitalista é um mestre na sua arte, conhece as técnicas e todas as etapas do processo de fabrico do seu objeto.

Rua dos Caldeireiros, capela de Nossa Senhora da Silva 


Rua dos Guindais


Igreja de São Gonçalo


quarta-feira, 1 de maio de 2024

Torreira, Entre a Ria e o Mar

 

Bateira da ria

O título lembra um folheto turístico.  É a realidade e fica-lhe bem:  A Torreira, entre a Ria e o Mar.

A exposição de miniaturas de barcos tradicionais da ria de Aveiro e de outros locais do país construídas pelo artista Murtoseiro António Guerra decorre no Estaleiro Museu do Monte Branco. No salão, pequenos descritores relatam a importância económica e social dos diferentes tipos de barcos que percorriam os canais numa azáfama que hoje dificilmente se imagina. Cada estaleiro tinha o seu mestre,  respetivos carpinteiros, pintores e calafates. Cada tipo de barco  o seu propósito: os mercantéis transportavam mercadorias diversas; os bateis,  sal, e os moliceiros, os mais emblemáticos, dedicavam-se à recolha do moliço, fertilizante abundante nas águas da ria. De Mira a Águeda, de Vagos a Ovar, da Murtosa a Ílhavo, os barcos percorriam os canais, quais autoestradas do passado, ligando populações interdependentes dos produtos que vinham dos  vizinhos, entreajudadas entre si, numa economia de subsistência. Considerada primitiva, de acordo com os padrões atuais,  durou séculos. Modelo cíclico e inesgotável,  graças às técnicas artesanais,  agrícolas e piscatórias sustentáveis. Não era necessário importar energia de locais distantes. A ria e as suas populações bastavam-se a si próprias.  A raça marinhoa, o vento, o movimento das marés e das correntes, a abundância de água doce e salgada, permitiam uma economia diversificada, renovando-se constantemente.  Terra pródiga e bela. Única no país.

Atualmente, um único artesão ocupa-se de todas as etapas do fabrico do barco, cuja finalidade é essencialmente turística.

Lá fora, o céu entrecortado por momentos de chuva e de sol confere ao meio da tarde tonalidades difusas de luz. Tiram-se fotografias incríveis de uma nitidez pouco comum, mesmo com a  câmara de um vulgar telemóvel.

Do outro lado do cordão dunar a uns meros 300 metros estende-se o longo areal que vai de São Jacinto a Espinho. Não é por acaso que lhe chamam “Costa Nova”, uma jovem criança na história geológica do planeta. O que são 1000 anos em 4500 milhões de anos? Um segundo apenas. Por este motivo, uma costa tão frágil e instável, ameaçada pelas marés e a subida do nível do mar, cujo ponto mais alto fica poucos metros acima.  Linha reta de dunas e praia a perder de vista.

As montanhas de Arouca ao longe recortam o horizonte, vigilantes. Dos sedimentos transportados pelos diversos rios que delas correm em direção ao Atlântico  nasceu este intrincado mosaico de água e terra.




Cada mestre artesão tinha o seu símbolo identificativo




Moliceiro