Querida Cidália,
aproveito que finalmente cheguei
ao Recife para agradecer sua extrema
generosidade e de sua irmã. Foi muito
difícil comunicar com ela, tal como você disse que seria, sendo surda-muda.
Cláudia foi gentilíssima comigo desde que me abriu a
porta, se expressando por gestos
carinhosos, linguagem gestual,
desenhos, textos, querendo ajudar em tudo ao seu alcance. Estou sem palavras para agradecer o que você
e ela fizeram por mim.
Quero contar para você o que aconteceu na última tarde em Nogueira da Regedoura. Depois de andar
com sua irmã, indo e vindo de carro do shopping, quis conhecer um pouco do
Portugal verdadeiro, porque shopping,
sabe, é igual em todo lado. Até o Recife
tem shopping, classe A, assim bonitinho
como os vossos. Estava cansada de entrar
em carro, ver loja, fazer compra. No último dia disse por gestos a sua irmã: vou sair na rua, quero ver como é aqui. Sua irmã fez cara estranha,
arregalou os olhos, como quem diz: você é estúpida, por que faz isso? Não
tem nada pra ver aqui, não. Gesticulei expressando o que estava pensando: Ué, tem pessoa, né?! Tem Continente lá
no cimo da rua. Tem loja, café, restaurante. Não é como a cidade ou o shopping, mas tem sítio
para encontrar pessoa. Quero ver campo, que deve ter, ver quinta, que deve ter.
Me disseram que havia muita quinta e casa antiga aqui em Portugal, coisa que o brasil não tem tanto. No Brasil, quando não tem favela tem quadra, ou condomínio fechado para os grafinasso. Venha
comigo. Percebi pelos gestos de sua irmã que por ser surda não ia ouvir os
carros, era perigoso para ela.
Sai sozinha na rua, sua irmã
ficando em casa olhando a televisão.
Toda a gente fala que Portugal é dos países mais seguros do mundo. Eu ia
tranquila, vendo gente pacífica, mas calada. Muito idoso. Portugal tem muito
idoso, é coisa que surpreende. Pessoas me observando de lado, fazendo conta que não vê, mas vendo. Gente pouco expansiva. Teriam medo de
mim, julgariam que era puta, tendo medo de roubar seu marido? Talvez por
usar saia curta e top. Você sabe como eu sou,
assim vistosa, cabelo ondulado, pele morena. Estava vestida como tu me
conhece. Eu mesma. Imagino seus
pensamentos: Quem é esta caminhando
sozinha, aqui? Cães ladrando de cima dos muros, eu tendo de passar a
rua para o outro lado. Talvez por farejarem meu perfume ficavam mais furiosos.
Eu ficando nervosa, apressando o passo para regressar a casa. Os
cachorro sentindo meu nervosismo ladrando mais.
Você disse quando era pequena
brincava na rua logo que saia de casa em Nogueira da Regedoura, a
mesma onde fiquei cinco dias. Não vi
criança, só carro passando apressado. Talvez indo no centro comercial, como
vocês dizem em Portugal. Largo bonitinho, junto da igreja, com banquinho para
sentar, sem ninguém. Não dá para entender!! Paragem de ónibus vazia, ónibus sem passageiro. Não admira com tanta gente conduzindo! Pensei que Nogueira da
Regedoura teria gente andando de
bicicleta. Estava esperando ver ciclovia como vi nos Países Baixos, sabe? Pensei que Portugal sendo europeu seria parecido. É pior que o Brasil! Em cidadezinha pequena você vê gente indo trabalhar de
bicicleta. Esperando ver mais
sobreiro e oliveira, que não tem no brasil. Vi eucalipto igualzinho aos do
Brasil. Sendo eu uma apaixonada pela Amazônia custa ver também a invasão de
espécies exóticas e a desmatação acontecendo aí. Ver eucalipto, terreno sem
árvore, rua sem passeio, lixeira ilegal escondida na erva da berma, dói, porra! Lixo, Cidália. Muito LI-XO!! Plástico
perdido na rua, PLÁS-TI-CO, viu!?
Tudo o que você contou de sua
infância em Nogueira da Regedoura não vi, não. Gente conversando no sopé da
porta, criança jogando bola na rua. Só vi vizinho fechado, gente desconfiada,
saindo de carro para trabalhar ou indo no shopping, como eu fui com sua irmã. Me
parece um hábito tão comum no seu país que
as pessoas nem pensam noutras alternativas próximas de casa, vão para longe, percorrendo autovia para se evadir.
Muita que tem aí.
No brasil, o povo tem menos dinheiro, tem mais criminalidade, riqueza mal distribuída, mas tem bate-papo e alegria. Desculpa estar comparando, nada apaga vossa extrema bondade e estou ficando com saudades de Portugal. De suas pequeninas coisas, da boa comida, do clima bom sem tanto mosquito, do frio e do calor, da montanha e da praia. Da tranquilidade.
Se cuidem, porque me parece que
está ficando ruim. O que é pena. Vocês estão desvalorizando vosso património histórico e natural,
transformando Portugal num resort para estrangeiro rico. Em subúrbios tristes. Meus
compatriotas começam indo embora saindo para
outros países. Vocês ficando mais velhos e caretas. Quem vai cuidar de
vosso turismo, restauração, indústria? Vai
voltar a ficar fechado como ficou com Salazar, viu. E pobrezinho.
Te adoro,
tua querida Neyde.
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