Maria Madalena adora o Japão. Infelizmente, nunca teve a oportunidade de visitar o país. Sente-se fascinada desde miúda pela arte oriental e pela cultura nipónica em particular. Cativa-a a sonoridade da língua, os sons fechados, melodiosos e curtos das frases, parecendo stacattos. Lê Mangas, avidamente. Vê Animes, sempre que pode: inicialmente, através dos DVD que um amigo lhe emprestou; depois, assinou propositadamente a Netflix para ver os inúmeros Animes da plataforma. Passava horas sentada no sofá, deleitada, a assitstir às histórias e enredos paranormais de personagens com poderes sobrenaturais.
É fã do cinema clássico Japonês, viu os filmes de Akira Kurosawa: Ran, Os Senhores da Guerra; Dersu Uzala, a Águia da Estepe; Os Sete Samurais. Fez questão de ver O Silêncio, de Martin Scorsese, baseado no romance do escritor católico Japonês, Shuzako Endo. Marcou na agenda, saiu mais cedo de casa nesse dia para ir ao Trindade e chegar a tempo do início, evitando as demoras habituais dos transportes públicos no centro do Porto. Adorou o filme. Retrata uma parte da história de Portugal: a missionação do Japão pelos jesuítas Portugueses, o martírio que estes sofreram em nome da fé cristã, o confronto intenso e a tensão permanente de dois sistemas antagónicos - o cristão e católico, ocidental, contra o budismo local, instituído há séculos no país como base do funcionamento político e social japonês.
Uma das cenas mais memoráveis que viu no
cinema até hoje:
- Por que vens ao meu país
convencer-nos a alterar as nossas crenças? - perguntou o magistrado Japonês ao
missionário representado por Andrew Garfield (que orgulho: um ator de
Hollywood no papel de jesuíta Português!)
- Venho em nome de um reino
maior - respondeu o missionário António Fonseca.
- Que reino maior é esse? Portugal? - o orgulho inflamou no peito de Maria Madalena.
- Não. É o reino de Deus.
O
diálogo memorável prosseguiu. Um filme tremendo!
Conhece a autobiografia de Wenceslau
de Morais. Leu O Bon-Odori, livro que retrata as suas experiências na ilha de Tokushima, onde serviu como adido de Portugal, e morreu.
Fascina-a o minimalismo da
cultura Japonesa, que encontrou na cultura de bonsais, na construção de miniaturas de jardins dentro das casas tradicionais de madeira e biombos móveis; e nos haikai, os seus maiores expoentes.
Não tem espaço em casa, nem tempo, para cuidar de jardins minúsculos e bonsais. Falta-lhe a providencial paciência oriental - é incapaz
de se deter em minúcias estéticas que reproduzem com pequenos seixos, regatos
de água, montinhos de terra e verduras, paisagens japonesas do monte Fuji.
Quanto aos haikai, é diferente,
basta-lhe um papel, alguma inspiração – mesmo que má – para traduzir em apenas três versos, de dezassete sílabas (5 - 7 - 5) as impressões dos seus dias, segundo as estações do ano e as suas variações de humor. O haiku (singular de haikai) capta
um momento, uma essência: estrofes condensadas, simples e cristalinas.
Ela está longe de atingir a multiplicidade de sentimentos e imagens que um breve conjunto de palavras pode evocar; no entanto, tenta. Maravilha-a que, num poema tão curto, caiba tal enormidade de sentimentos.
Um dos seus livros favoritos é O Estreito Caminho Para o Longínquo Norte, de Matsuo Bashô (Bashô: Bananeira, em japonês). O relato de uma viagem pelo Japão medieval, pela ilha de Hokkaido, do século XVII. O viajante e autor descreve templos, pessoas, lendas dos sítios onde passa, paisagens, variações nas tonalidades de luz, o desabrochar das flores. Escreve os haikai como corolário das suas observações e reflexões.
Na impossibilidade de ir ao
Japão, Maria Madalena passeia pelo Porto,
inspirando-se em Bashô. Escreve frases simples e diretas, poéticas como
os haikai, adaptadas à realidade do que observa no dia-a-dia.
Uma das frase que sublinhou no livro foi:
para viajar deveria bastar-nos o nosso corpo, mas as noites
reclamam um agasalho; a chuva, uma capa; o banho, um traje limpo; o pensamento,
tinta e uma pena.
Certo dia, ao subir a rua Júlio Dinis, reparou que o número dos sem-abrigo que dormem e vivem sob as arcadas e alpendres em tendas alinhadas nas entradas dos prédios, é cada vez maior.
Será que ainda sonham? Pensou.
Atravessou a rotunda da Boavista e, sem pensar muito no destino que as suas pernas lhe davam, chegou ao cemitério de Agramonte.
Teve uma epifania, um Haiku!
Os cemitérios
Estão
cheios
De sonhos
Estava inspirada. Almoçou, como
não podia deixar de ser, num restaurante Japonês ali perto. Os empregados de mesa eram todos brasileiros. O Sushiman, Paulista de origem Japonesa. Foi
servida por uma jovem, estudante de Química na FEUP, a viver em Portugal há poucos meses. No Brasil, não conseguia pagar as propinas, aqui é trabalhadora - estudante.
Imaginou a vida difícil que ela deve ter, a viver num país com salários baixos e rendas exorbitantes. Veio iludida. É provável que não consiga conciliar as duas atividades e regresse ao Brasil. Além do mais, numa época em que o racismo e a xenofobia aumentam drasticamente, associando criminalidade à imigração. Uma falsidade tremenda, contrariada pelo últimos dados da polícia judiciária que comprovam uma diminuição geral da criminalidade.
Maria Madalena é solteira, tem
tempo para deambular, nunca casou e não gosta de homens. Mete conversa com
jovens bonitas sempre que pode. As mulheres também a inspiram, não só a cultura
japonesa.
Na estação de metro da Casa da
Música, viu uma trintona vestida com casaco branco de lã, apertado com botões largos, e calças de ganga. Cruzaram
olhares. A estranha dirigiu-se a ela, pressentindo que talvez lhe conseguisse sacar uma moedinha.
- Podia-me dar 1 euro para tomar um
cafezinho?
Maria Madalena fez o gesto que
não com a cabeça. A mulher afastou-se docilmente, sem insistir. Não
parecia drogada, tinha um rosto suave e elegante, sem o desgaste causado pela
toxicodependência.
A estranha continuou a deambular pela estação, parecendo insinuar-se discretamente para ela - ou talvez fosse imaginação sua. Não interessa, não ficou para saber.
Apanhou o 203 para Serralves.
Um vagabundo, com aspeto de toxicodependente – teria entrado na avenida de França? – falava sozinho no banco. Seria louco, alguém
com um desejo tremendo de comunicar, que inventava personagens e situações imaginárias - ou seria o corpo ressacado, delirando, enquanto não injetava a próxima dose?
As copas das árvores abanavam ao longo da avenida da Boavista.
Sussurra o vento lá fora
O viajante louco
O poema encontrou
Saiu na avenida Marechal Gomes
da Costa ao encontro de mais inspiração para os seus haikai.
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| Maria Madalena olhando a cidade do Porto, procurando inspiração para os seus Haikai. |







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