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A Lagoa das Sete Cidades, da Vista do Rei |
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A Lagoa das Furnas |
Lagoa do Fogo |
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Caldeira Velha |
Caminhadas, lugares, memórias, o mundo, a vida... falando e escrevendo para os meus botões.
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A Lagoa das Sete Cidades, da Vista do Rei |
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Caldeira Velha |
Na
caminhada ao Pico Alto vi touros bravos à solta. Eu fazia parte de um grupo numeroso de caminhantes que se juntavam aos Domingos nas
caminhadas organizadas pela associação de espeleologia de Angra do Heroísmo:
“Os Montanheiros”. Depois do tremendo susto que apanhei no meio dos touros, agora, estava tranquilo e protegido na
companhia dos colegas. Os touros pareciam
dóceis vistos ao longe.
-
São inofensivos no seu ambiente natural, exceto as vacas bravas com crias. Quando vemos uma manada de touros à frente batemos palmas e eles
afastam-se – disse um dos guias.
Pode ser entediante e mais perigoso estar sozinho no meio dos montes. Mesmo sem riscos imediatos. Uma escorregadela ou um simples entorce tornam-se obstáculos difíceis, não havendo ninguém a quem pedir ajuda. Também os encontros com animais, matilhas ou touros, como aconteceu comigo.
As caminhadas organizadas pelos Montanheiros eram excelentes oportunidades para
conhecer trilhos sem correr riscos. O ponto de encontro costumava ser a sede do
clube, na rua da Rocha. Distribuíamo-nos pelos carros e partíamos para o
interior.
Tinham periodicidade quinzenal, de Abril a Outubro. Conheci locais onde as
estradas não chegam, escondidos e difíceis, de nomes eloquentes e fantásticos: o
Monte Assombrado, o Pico Alto, os Mistérios Negros, a Lagoinha, o Pico Rachado.
Uma paisagem bastante diferente da que estava habituado a ver, virada para o
mar, larga e aberta. Esta era recôndita, escondida pelas paredes da gigantesca cratera vulcânica que formava o círculo de picos do interior da ilha. A neblina, o frio e o vento
constantes não atraíram os povoadores, que se estabeleceram apenas no litoral fértil e
aprazível.
Fazíamos caminhadas fabulosas, por trilhos indefinidos, debaixo da densa
vegetação de arbustos, passando por raízes descobertas, debruçando-nos para
contornar caules e troncos perigosamente inclinados, desviando os fetos da
nossa frente com as mãos, evitando as fendas na terra, que ligavam
aos algares. Sentíamos o cheiro morno do musgo e do esfagno, típico da floresta de laurissilva, nas redondezas dos picos Assombrado e Rachado. Duas torres rochosas impondo-se
na paisagem luxuriante, batizadas pelos primeiros povoadores, de acordo com o
que a sua imaginação lhes sugeriu.
Havia trilhos mais abertos e pedregosos, como o dos Mistérios Negros, outros bucólicos e verdejantes, como o da Lagoinha e o do Pico Alto. Todos diversos, de diferentes tonalidades e relevos, de nuances que variavam com os humores do clima imprevisível dos Açores. A tela de um pintor de imaginação prodigiosa, inventando sempre paisagens idílicas: minúsculas lagoas de água eutrofizada, escondidas atrás dos muros densos de criptomérias que subitamente surgiam à frente dos olhos; espécies endémicas, exuberantes, que só ali existiam; brumas fantasmagóricas pairando sobre os picos; vegetação de contornos retorcidos e infindáveis tons de verde.
Numa ilha pequena e razoavelmente habitada causava estranheza que muitos locais tenham sido descobertos apenas no século XX, como o algar do Carvão e a gruta do Natal Não se imaginava a quantidade de galerias subterrâneas e de túneis que ligavam grutas e algares. A sala de visitas do algar do Carvão tem uma exposição permanente da sua história e da ilha.
Era
bom contar com um grupo que gratuitamente organizava visitas ao interior por
trilhos inacessíveis à maioria das pessoas.
Fiz uma parte do trilho em Junho, quatro meses antes,
com um amigo que queria gravar os cantos das aves.
Vinham connosco dois alunos da escola profissional e a bióloga que colaborava
com o projeto.
Dirigimo-nos à rocha do Chambre, seguimos para o interior da enorme cratera
vulcânica adormecida há centenas de anos. Passamos por locais selvagens, inacessíveis e remotos, desconhecidos da maioria dos habitantes da ilha, onde habitualmente
ninguém se atreve a ir, devido às neblinas constantes e às chuvadas súbitas e torrenciais que do nada irrompem das nuvens negras. O meu amigo guardava os sons no gravador. Calávamo-nos, escutávamos as aves, distinguindo-as pelos trinados e cadências sonoras típicas da espécie. Ao fim de poucos quilómetros recolheu uma diversidade de sons que o satisfez. Regressamos ao carro que deixamos estacionado no caminho
de terra.
Fiquei com vontade de explorar o restante trilho, o que fizemos era demasiado bonito e exótico para deixar o resto por ver.
Regressei sozinho em Outubro, decidido a percorrê-lo na totalidade. Tinha uma ideia da orientação a seguir. Consultei previamente o mapa e a descrição do trajeto no guia turístico da ilha Terceira. Não referia situações imprevisíveis ou perigos especiais, apenas as normas de conduta e os cuidados que se devem ter em qualquer caminhada.
A cancela de madeira grossa, alta e larga, vedava o trilho. Estranhei. Em Junho não estava ali. Talvez o proprietário do terreno não gostasse de caminheiros e a tenha colocado propositadamente para os dissuadir de seguir em frente, como acontece em muitos locais. Não me intimidei, eu não ia fazer estragos, apanhar plantas raras ou deixar lixo. Ia usufruir a natureza no seu estado selvagem, intocável e esplendoroso, antecipando a fruição de pisar chãos de esfagno, musgo e basalto, recolhido num local único, longe do ruído. Apoiei-me nas ripas, saltei para o outro lado, segui pelo caminho que conhecia até ao morro do Chambre. A partir dali o trilho indefinido e irregular de arbustos baixos levar-me-ia a uma estrada rural por onde regressaria ao carro. Reparei nos montões de esterco no meio das ervas. Achei normal, nos Açores veem-se inúmeras manadas de vacas nos prados e colinas de todo o arquipélago. Não me incomodei, segui tranquilo por um caminho inédito, imaginando as paisagens maravilhosas que encontraria mais à frente, reproduzidas em postais. Comecei a contornar a colina, entusiasmado. Talvez encontrasse o pequeno lago idílico rodeado de criptomérias frondosas, as paredes enegrecidas de obsidiana despontando no meio do verde luxuriante da floresta de laurissilva, os tufos cerrados de faias suspensos sobre os penhascos. O que vi, subitamente, poucos metros à minha frente, deixou-me petrificado, gelou-me o sangue. A manada de touros corpulentos, de seiscentos quilos, olhava-me suspensa, parando de mastigar a erva, de cornos compridos e afiados apontados para mim. Sem pensar em mais nada, virei imediatamente as costas. Corri pelas encostas da colina, distanciando-me o mais que podia, almejando chegar o quanto antes à cancela salvadora. Percebi por que motivo ela ali estava. Lembrei-me que no Verão colocam os touros nos currais, os Tentaderos, de onde são levados em contentores, em animadas caravanas enfeitadas de hortênsias, para as touradas à corda, populares na ilha, de Maio a Outubro. Depois regressam ao seu habitat natural, passam os restantes meses engordando e vivendo soltos nos prados. Recriminei-me: Que estúpido, que descuidado, que grande imbecil eu sou!! Estava numa grande alhada, corria perigo de vida, podia ser atacado e levar umas valentes cornadas. Pensei na família e nos amigos à minha procura, nas vezes que ligariam para o meu telemóvel e que estaria sempre interrompido - não havia rede no interior da ilha - na má notícia que teriam. Eu estava em pânico, incapaz de raciocinar devidamente. O meu instinto era sair dali rapidamente, fugir enquanto tivesse forças. A cabeça latejava, o coração batia acelerado, bombeava o sangue descontrolado. Escorria água da testa, tinha a cara vermelha e os olhos inchados pelo medo e cansaço.
Vi mais esterco fresco. Haviam mais touros entre mim e a cancela. O pânico redobrou, se é que é possível redobrar algo que já está no limite. Talvez estivessem atrás dos arbustos e não dessem por mim. Arfava, as minhas forças fraquejavam, as pernas cediam, mais facilmente podia tropeçar e partir uma perna, pensei agachar-me numa reentrância qualquer, num buraco onde os touros não me vissem. Recuperar forças. Ia observando o relevo à volta. A paisagem que eu considerava há alguns minutos generosa e acolhedora, era agora ameaçadora e terrível. Eu estava cheio de medo! De cabeça perdida, vulnerável, à mercê do destino, da natureza cruel e impiedosa com os humanos que não respeitam os seus limites: Por que não fiquei em casa a ver televisão? Pelos meus cálculos ainda demoraria trinta minutos a chegar à cancela.
Parei de correr, estava derreado, prestes a desistir, em vias de me prostrar perante o destino e a inevitabilidade. Ouvi chocalhar. A vaca brava com o vitelo indefeso no seu flanco, interpunha-se no trilho. Com as forças que me restavam desviei-me pelo cimo da colina, subi com a ajuda das mãos, gatinhei de quatro. O queixo e a cara roçavam a erva. Não haviam árvores, muros ou reentrâncias onde me pudesse esconder, apenas urzes e pastos de erva rasteira e viçosa que deleitavam as manadas. A fêmea tinha os olhos fixos em mim, não se desviava um milímetro do vitelinho que mastigava abstraído. O instinto maternal em alerta, observando o intruso ameaçador, tornando-a mais perigosa e imprevisível. A situação era extremamente delicada. Se decidisse trepar o morro eu não teria hipóteses, chegaria à minha beira em três tempos, investindo contra mim os cornos afiados, acabando com a ameaça que eu representava para o filhote.
Existe algum momento na vida em que uma pessoa simplesmente para de lutar e entrega-se à sua sorte? Se existe, aquele devia ser o momento. É quando surgem com toda a sua força existencial e carga filosófica, mais reais do que nunca, as mais profundas questões sobre o significado da Vida: O que faço aqui? Quem sou eu?
Agarrava-me às pedras e raízes, escorregava, deslizava pelos calhaus soltos e traiçoeiros, os olhos ardiam do suor e da terra na cara. A vaca não me perseguiu. Oxalá não aparecesse mais nenhuma no caminho. Não conseguiria correr mais, escavaria uma cova na terra mole e vulcânica, colocaria pedras a tapar-me.
Retomei o trilho mais adiante. Estava próximo da cancela mágica e do alívio. Finalmente, cheguei. Trepei-a a tremer, olhei para trás certificando-me de que não haviam touros a perseguir-me. Passei para o outro lado. Caminhei até ao carro. Abri a porta, entrei, sentei-me, reparei que deixei o telemóvel no porta-luvas. Respirei fundo. Um calafrio percorreu-me o corpo ao aperceber-me do que me livrei. Estive alguns minutos estupefato a olhar o infinito pelo vidro. Eram quatro da tarde. Nuvens escuras pairavam no céu, como é habitual nos açores.