domingo, 12 de novembro de 2023

Terra do Bravo

Fiz uma parte do trilho em Junho, quatro meses antes, com um amigo que queria  gravar os cantos das aves. Vinham connosco dois alunos da escola profissional e a bióloga que colaborava com o projeto.
Dirigimo-nos à rocha do Chambre, seguimos para o interior da enorme cratera vulcânica adormecida há centenas de anos. Passamos por locais selvagens, 
inacessíveis e remotos, desconhecidos da maioria dos  habitantes da  ilha,    onde habitualmente ninguém se atreve a ir, devido às neblinas constantes e às chuvadas súbitas e torrenciais que do nada irrompem das nuvens negras. O meu amigo guardava os sons no gravador. Calávamo-nos, escutávamos as aves, distinguindo-as pelos trinados e cadências sonoras típicas da espécie.  Ao fim de poucos quilómetros recolheu uma diversidade de sons que o satisfez. Regressamos ao carro que deixamos estacionado no caminho de terra. 

Fiquei com vontade de explorar o restante trilho, o que fizemos era demasiado bonito e exótico para deixar o resto por ver.

Regressei sozinho em Outubro, decidido a percorrê-lo na totalidade. Tinha uma ideia da orientação a seguir. Consultei previamente o mapa e a descrição do trajeto no guia turístico da ilha Terceira. Não referia situações imprevisíveis ou  perigos especiais, apenas as normas de conduta e os cuidados que se devem ter em qualquer caminhada. 

A cancela de madeira grossa, alta e larga,  vedava o trilho. Estranhei. Em Junho não estava ali. Talvez o proprietário do terreno não gostasse de caminheiros e a tenha colocado propositadamente para os dissuadir de seguir em frente, como acontece em muitos locais. Não me intimidei, eu não ia fazer estragos, apanhar plantas raras ou deixar lixo. Ia usufruir a natureza no seu estado selvagem, intocável e esplendoroso, antecipando a fruição de pisar chãos de esfagno, musgo e basalto, recolhido num local  único, longe do ruído. Apoiei-me nas ripas, saltei para o outro lado, segui pelo caminho que conhecia  até ao morro do Chambre.  A partir dali o trilho indefinido e irregular de arbustos baixos levar-me-ia a uma estrada rural por onde regressaria ao carro. Reparei  nos montões de esterco no meio das ervas. Achei normal, nos Açores veem-se  inúmeras manadas de vacas nos prados e colinas de todo o arquipélago. Não me incomodei, segui tranquilo por um caminho inédito, imaginando as paisagens maravilhosas que encontraria mais à frente, reproduzidas em postais.  Comecei a contornar a colina, entusiasmado. Talvez encontrasse o pequeno lago idílico rodeado de criptomérias frondosas,  as paredes enegrecidas de obsidiana despontando no meio do verde luxuriante da floresta de laurissilva, os tufos cerrados de faias  suspensos sobre os penhascos.     O que vi, subitamente,  poucos metros à minha frente, deixou-me petrificado, gelou-me o sangue. A manada de touros corpulentos, de seiscentos quilos,  olhava-me suspensa, parando de mastigar a erva, de cornos compridos e afiados apontados para mim.  Sem pensar em mais nada, virei imediatamente as costas.  Corri pelas encostas da colina,  distanciando-me o mais que podia, almejando chegar o quanto antes à cancela salvadora.  Percebi por que motivo ela ali estava. Lembrei-me que no Verão colocam  os touros nos  currais, os Tentaderos, de onde são levados em contentores, em animadas caravanas enfeitadas de hortênsias, para as touradas à corda,  populares na ilha, de Maio a Outubro.  Depois regressam ao seu habitat natural,  passam os restantes meses engordando e vivendo soltos nos prados.  Recriminei-me: Que estúpido, que descuidado, que grande imbecil eu sou!! Estava numa grande alhada, corria perigo de vida, podia ser atacado e levar umas valentes cornadas.  Pensei na família e nos amigos à minha procura,  nas vezes que ligariam para o meu telemóvel e que estaria sempre interrompido - não havia rede no interior da ilha - na má notícia que teriam. Eu estava em pânico, incapaz de raciocinar devidamente. O meu instinto era sair dali rapidamente, fugir enquanto tivesse forças.  A cabeça latejava, o coração batia acelerado,  bombeava o sangue descontrolado. Escorria água da testa, tinha a cara vermelha e os olhos inchados pelo medo e cansaço. 

Vi mais esterco fresco. Haviam mais touros entre mim e a cancela. O pânico redobrou, se é que é possível redobrar algo que já está no limite. Talvez estivessem atrás dos arbustos e não dessem por mim. Arfava, as minhas forças fraquejavam, as pernas cediam, mais facilmente podia tropeçar e partir uma perna, pensei agachar-me  numa reentrância qualquer, num buraco onde os touros não me vissem. Recuperar forças.  Ia observando o relevo à volta. A paisagem que eu considerava há alguns minutos  generosa e acolhedora, era agora ameaçadora e terrível. Eu estava cheio de medo! De cabeça perdida,  vulnerável, à mercê do destino, da natureza cruel e impiedosa com os humanos que não respeitam os seus limites: Por que não fiquei em casa a ver televisão? Pelos meus cálculos ainda demoraria trinta minutos a chegar à cancela.

Parei de correr, estava derreado, prestes  a desistir,  em vias de me  prostrar  perante o destino e a inevitabilidade. Ouvi chocalhar. A  vaca brava com o  vitelo indefeso no seu flanco, interpunha-se no trilho. Com as forças que me restavam desviei-me pelo cimo da colina, subi com a ajuda das mãos, gatinhei de quatro. O queixo e a cara roçavam a erva.  Não haviam árvores,  muros ou reentrâncias onde me pudesse esconder, apenas urzes e pastos de erva rasteira e viçosa que deleitavam as manadas. A fêmea tinha  os olhos fixos em mim, não se desviava um milímetro do vitelinho que mastigava abstraído. O instinto maternal em alerta, observando o intruso ameaçador,  tornando-a mais perigosa e imprevisível.  A situação era extremamente delicada.  Se decidisse trepar o morro eu não teria hipóteses, chegaria à minha beira em três tempos, investindo contra mim  os  cornos afiados, acabando com a ameaça que eu  representava para o  filhote. 

Existe  algum  momento na vida em que uma pessoa simplesmente para de lutar e entrega-se à sua sorte? Se existe, aquele devia ser o momento.   É quando surgem  com toda a sua força existencial e carga filosófica, mais reais do que nunca, as mais profundas questões  sobre o significado da Vida: O que faço aqui?  Quem sou eu? 

Agarrava-me às pedras e raízes, escorregava, deslizava pelos calhaus soltos e traiçoeiros,  os olhos ardiam do suor e da terra na cara. A vaca não me perseguiu.  Oxalá não aparecesse mais nenhuma no caminho. Não conseguiria correr mais,  escavaria  uma cova  na terra mole e vulcânica,  colocaria  pedras  a tapar-me. 

Retomei o trilho mais adiante. Estava próximo da cancela mágica e do alívio.  Finalmente, cheguei. Trepei-a a tremer, olhei para trás certificando-me de que não haviam  touros a perseguir-me.     Passei para o outro lado.   Caminhei até ao carro.  Abri a porta, entrei, sentei-me, reparei que deixei o telemóvel no porta-luvas. Respirei fundo. Um calafrio  percorreu-me o corpo ao aperceber-me do que me livrei. Estive alguns minutos estupefato a olhar o infinito pelo vidro. Eram quatro  da tarde. Nuvens escuras pairavam no céu, como é habitual nos açores. 





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