Entrei na capelinha de São João pela primeira
vez. Por ser fim de semana e haver festa encontrei-a aberta. Os andores - Santa Luzia, São
João, Santo Tirso, Nossas Senhoras de Fátima e da Aparição - estavam cá fora
enfeitados de flores. Belos antúrios vermelhos adornavam o de N. S. da
Aparição. O interior da capela é simples
e despojado, como seria de esperar numa pequena e humilde terra de pescadores. A
tela de madeira na parede chamou-me a atenção pelas cores vivas, por retratar o episódio que deu origem ao culto. A capelinha rodeada de árvores
junto ao mar, as personagens da época que se deslocaram ao sítio para ver o
“milagre”. Alguma ingenuidade e superstição que as fez acreditar numa intervenção divina e erigir à
posteriori o local de culto. O reitor
da freguesia é a única figura a cavalo, denotando a sua importância social
sobre as restantes classes. Os outros são burgueses da comarca da feira,
provavelmente amanuenses do estado que foram atestar “o milagre”, acólitos e o povo. O pescador leva aos ombros a rede, talvez cheias de caranguejos e de mariscos que apanhou nas rochas. As freiras do
convento (Qual?) seguem atrás. O coveiro cava a sepultura para enterrar o morto que apareceu na costa, juntamente com a escultura intacta de
Nossa Senhora, a “aparição” da devoção.
É deliciosa a imagem, as
associações que produz e convoca relativas ao passado, à forma como se vivia o
quotidiano e a religião. Uma simples tela foi suficiente para
desencadear pensamentos e emoções, comparar tempos idos, o que se julga que foram,
com o presente, o que parece que é.
A capelinha está condenada a desaparecer
em breve. Os blocos de pedra que a protegem das investidas do mar tem que ser
constantemente reforçados e ampliados. De
acordo com as projeções científicas, partes significativas desta costa ficarão submersas
em poucas dezenas de anos. Os moradores das habitações próximas já foram
convidados a sair do local pela autarquia de Espinho. Recusaram.
Cá fora as barraquinhas das
coletividades vendem petiscos, angariam mais algum dinheiro. O grupo de
tambores de Maceda, constituído maioritariamente por idosos, faz a percussão
enquanto desfila na avenida entre a capela e o cruzamento da estrada do aeródromo.
Também em Esmoriz havia muitas barraquinhas
a comemorar a “Semana da Barrinha” (em homenagem ao seu ex-libris – “a Barrinha
de Esmoriz”). Outro momento para as
coletividades locais angariarem dinheiro: a associação de pais da EB1, os
escuteiros, os Motards, o clube Ornitológico, o clube de futebol, a agência funerária
(!). Chega o verão e há muitas festividades. Como são festivos os Portugueses!
Fiz o caminho pelo passadiço
de Esmoriz e Paramos, atravessei a barrinha – uma língua de areia que
forma a lagoa de água salobra junto à costa. Nos invernos mais rigorosos o mar
rompe a duna que a isola e renova a água com nutrientes do oceano. Zona rica
em biodiversidade, com, principalmente, muitas aves, poucas enguias, uma espécie
de lampreia (em perigo crítico de extinção), morcegos e insetos. Quanto às espécies vegetais, as dunas foram,
acima de tudo, ocupadas pelas invasoras, chorão e acácia.
Está um dia lindo. A areia da
praia contrasta com o azul do céu e do mar, as ervas das pampas e os caniços cobrem
muitas partes da lagoa, como um tapete de agulhas enfiadas na água.
A ponte de madeira foi construída em 2017 no mesmo local onde existiu outra mais antiga, no século XIX. Pagava-se portagem: 10 reis os carros-de-bois e outras bestas, cinco reis quem ia apeado. Júlio Dinis (1839 – 1871) descreveu a ponte no conto “O canto da Sereia”. O escritor Portuense passava temporadas em Ovar. Conhecia a região.
"Quem viajasse há anos por esta parte da província da Beira deve conhecer, por tradição, senão por experiência, o ponto do litoral que recebeu este onde tantos episódios, uns cómicos e outros trágicos, se sucederam, antes que se construísse a ponte que hoje o viajante, ao percorrer a linha férrea, próximo à estação de Esmoriz, descobre desenhando os seus quatros arcos sobre o fundo esverdeado das águas do oceano." (O Canto da Sereia, p. 66, OMJD)
As fotografias a preto-e-branco
de há cem anos são outra revelação. Contam histórias. Margens com barcaças, uma
navega isolada com a vela desfraldada, barraquinhas de praia, pessoas na água.
Esmoriz |
Flamingos na ria de Aveiro |
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