sábado, 5 de março de 2022

Melgaço

Fonte das termas do Pisão

Fomos guiados por Estrela, ela própria diz que se não fosse a emigração e o contrabando não estaria ali. O avô foi contrabandista primeiro e emigrante depois. Na guerra civil Espanhola contrabandeou tabaco, café, ouro, volfrâmio. O concelho de Melgaço tem 67 km de fronteira com Espanha, separado pelos rios Minho, Laboreiro, Trancoso e pela raia seca – a zona de montanha sem cursos de água a dividir os dois países, por onde se traficava  gado. Também as largas e fundas saias que as mulheres vestiam serviam para esconder objetos. As travessias eram sempre feitas de noite, prefencialmente na lua nova, ouvia-se o uivo distante dos lobos. Mas isso não era nada comparado com o som das carabinas disparadas pelos guardas fronteiriços, que por vezes atingiam os vultos fugidios. Apareceram  cadáveres de vizinhos no rio Minho.    O contrabando tornou-se menos rentável depois da  segunda grande guerra, ao contrário da emigração que aumentou. Continuava a haver miséria, famílias numerosas sem sustento e mancebos que se recusavam combater na guerra de África. O avô de Estrela entrou clandestinamente na Galiza, recebeu um salvo conduto que o ajudou a chegar a França às escondidas, fazendo partes do caminho a pé, outras de comboio e em carro particular, auxiliado por redes e passadores clandestinos. Levava uma mala de cartão, a única, com tudo lá dentro, a transbordar de roupa, objetos, comida, retratos de família para enganar a solidão, que as fivelas apertavam. Viveu numa Bidonville – num pré-fabricado apertado que partilhou com outros compatriotas, dormindo cada um no seu beliche,  sem casa de banho e cozinha. Estrela  tem muito orgulho do avó. 

Fotografias a preto-e-branco no museu da Memória e da Fronteira mostram homens rudes a comer da marmita e a jogar às cartas nos tempos livres, invariavelmente com uma garrafa de vinho na mesa. Analfabetos  humildes que contudo enviavam dinheiro para dar a melhor vida possível aos filhos em Portugal. Alguns estudaram nos melhores colégios de Braga e  Porto.  

O percurso do avô é uma boa imagem do Portugal atrasado e pobre do século XX. A  razia populacional e o atraso não terminaram,  atualmente existe  outra pobreza e emigração, jovens qualificados e mal pagos que encontram melhores oportunidades noutros destinos. Passeando no centro da vila vê-se o vazio de gente, a pasmaceira e o  envelhecimento da população.

No Solar do Alvarinho fizemos uma prova de vinhos gratuita. Não sou apreciador da acidez do verde, mesmo sendo da casta nobre da região. Perguntei se tinham Alvarinho maduro - “Não, apenas verde.” O grau alcoólico já o aproxima de um maduro, há alvarinhos com 12 e 13 graus, mas permanece sempre alguma acidez. O Solar, a funcionar temporariamente no quartel dos bombeiros, representa 28 produtores locais (inicialmente eram apenas sete), algumas marcas famosas que se encontram nas prateleiras dos supermercados. Também vende espumantes, mel, salpicão, queijo, infusoes, compota, sabonete,  produzidos localmente. 

Antes, de manhã cedo, a camioneta   deixou-nos no centro de estágios para iniciar a caminhada circular de aproximadamente 10 km. Descemos pela ribeira do Porto até ao rio Minho. O rumorejar da água, os rochedos cobertos de musgo e a vegetação frondosa imergiram-me imediatamente num outro universo, fazendo esquecer por momentos o ruído do mundo. Caminhamos ao longo da margem do Minho com as rochas a descoberto  e os rápidos formados pelas pesqueiras – muros de pedra construídos sobre o leito,  formando a letra V. O objetivo destas construções milenares era reduzir a passagem dos cardumes de salmão a um único local   para mais facilmente serem capturados. Era uma autêntica armadilha, nadando contra a  corrente   procuravam   a água mais rápida, límpida e oxigenada, precisamente  aquela que passa na extremidade do “V”. Foi uma surpresa: já houve salmões no Rio Minho.

“Afinal, tínhamos tudo”, é a frase lapidar do Dr. Randall Mindy, interpretado por Leonardo DiCaprio, no fim do  filme “Não Olhem Para Cima”, resumindo a relação do Homem com a  Natureza  e tudo aquilo que estava prestes a desaparecer. O filme é uma metáfora das alterações climáticas.  Porque escrevo isto agora? Por isto: estudamos  história de Portugal e aprendemos que o rio Minho é uma fronteira que separou o Condado Portucalense do reino de Leão e que, a dado momento, surgiu um novo reino independente na península Ibérica. Falta conhecer a história ambiental do território,  as condições biofísicas que  existiram, as interdependências sociais, culturais, económicas e ambientais que se estabeleceram.  É um passado desconhecido, ao contrário da história política. Culturas que se perderam absorvidas pelos  monoteismos que entraram na península, nos processos industriais e paradigmas de "desenvolvimento", fenómeno planetário que marginalizou outros saberes e culturas, justificando  invasões, ocupações e o extrativismo ganancioso. O resultado está à vista de todos: a narrativa que se foi impondo é incapaz de proteger o mais básico - a vida na Terra.  Os nossos antepassados foram bons guardiões do planeta deixando-o aos seus descendentes em  condições de desfrutá-lo, de usufruir da sua magnificência, beleza, silêncio, de serem cúmplices com ele. As gerações futuras não poderão dizer o mesmo da atual. Provavelmente não  haverá vida no planeta daqui a não muito tempo - analisado a uma escala geológica, estamos a atravessar um processo de extinções em massa. Não sobreviveremos mantendo este rumo. A guerra na Ucrânia mal começou e uma central nuclear já foi atacada. Num momento em que devíamos estar todos em paz e irmanados na preservação da vida na Terra contra as alterações climáticas, estamos em guerra. O Thanatos, a morteestá a sobrepor-se ao Eros, a pulsão da vida e do amor. Não haverá vencedores.

As pesqueiras unem as margens. Teve que existir algum tipo de cooperação entre os povos dos dois lados do rio para as construir, mais forte do que a divisão administrativa imposta pelos governos centrais e muito anterior ao surgimento de nações e estados modernos. Um exemplo de como os nossos antepassados cooperavam para a sua sobrevivência e de como a preservação da natureza e dos seus recursos era fundamental. O que foi feito dos orgulhosos salmões que subiam o rio Minho para desovar? Em que momento da história deixaram de aparecer nestas águas? 

Caminhamos uma parte do trilho ao longo de uma levada que regava as férteis veigas até chegarmos às termas do Pisão. Paramos para lanchar, conversar, dizer umas chalaças, caminhar pelos jardins. Conviver mais um pouco sem a fadiga de chegar a um sítio.

Fui à fonte no interior do  pavilhão  estilo arte nova.  A quietude da água no fontanário de vidro, o piso de mármore axadrezado, o silêncio, a amplitude, a simetria do edifício transmitiam um sentimento de paz e relaxamento. Algo sagrado. Como entrar num templo em que a água é o  verdadeiro Deus, o altar a fonte onde ele  é adorado e a sede saciada. 

Ribeira do Porto

Rio Minho

Igreja Matriz de Melgaço, séc. XIII

Pesqueira 

Pesqueiras no rio Minho (o V no leito)




Termas do Pisão



Museu da Memória e da Fronteira de Melgaço. A memória de uma emigrante que teve sucesso em França

Instalações temporárias do Solar do Alvarinho, no quartel dos bombeiros voluntários.





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