Fonte das termas do Pisão |
Fomos guiados por Estrela, ela própria diz que se não fosse a
emigração e o contrabando não estaria ali. O avô foi contrabandista primeiro e
emigrante depois. Na guerra civil Espanhola contrabandeou tabaco, café, ouro, volfrâmio. O concelho de Melgaço tem 67 km de fronteira
com Espanha, separado pelos rios Minho, Laboreiro, Trancoso e pela raia seca –
a zona de montanha sem cursos de água a dividir os dois países, por onde se
traficava gado. Também as largas e fundas saias que as mulheres vestiam serviam para esconder objetos. As travessias eram sempre feitas de noite, prefencialmente na lua nova, ouvia-se o uivo distante dos lobos. Mas isso não era nada comparado com o som das carabinas disparadas pelos guardas fronteiriços, que por vezes atingiam os vultos fugidios. Apareceram cadáveres de vizinhos no rio Minho. O
contrabando tornou-se menos rentável depois da segunda grande guerra, ao contrário da emigração que aumentou. Continuava a haver
miséria, famílias numerosas sem sustento e mancebos que se recusavam
combater na guerra de África. O avô de Estrela entrou clandestinamente na
Galiza, recebeu um salvo conduto que o ajudou a chegar a
França às escondidas, fazendo partes do caminho a pé, outras de comboio e em carro particular, auxiliado por redes e passadores clandestinos. Levava uma
mala de cartão, a única, com tudo lá dentro, a transbordar de roupa, objetos,
comida, retratos de família para enganar a solidão, que as fivelas apertavam. Viveu numa Bidonville – num pré-fabricado
apertado que partilhou com outros compatriotas, dormindo cada um no seu beliche, sem casa de
banho e cozinha. Estrela tem muito orgulho do avó.
Fotografias a preto-e-branco no museu da Memória e da
Fronteira mostram homens rudes a comer da marmita e a jogar às cartas nos
tempos livres, invariavelmente com uma garrafa de vinho na mesa. Analfabetos humildes que contudo enviavam dinheiro para dar a melhor vida possível aos filhos em Portugal. Alguns estudaram nos melhores colégios de Braga e Porto.
O percurso do avô é uma boa imagem do Portugal
atrasado e pobre do século XX. A razia populacional e o atraso não
terminaram, atualmente existe outra pobreza e emigração, jovens qualificados e mal pagos que encontram melhores oportunidades noutros destinos. Passeando no centro da vila vê-se o
vazio de gente, a pasmaceira e o envelhecimento da
população.
No Solar do Alvarinho fizemos uma prova de vinhos gratuita.
Não sou apreciador da acidez do verde, mesmo sendo da casta nobre da região. Perguntei
se tinham Alvarinho maduro - “Não, apenas verde.” O grau alcoólico já o
aproxima de um maduro, há alvarinhos com 12 e 13 graus, mas permanece sempre
alguma acidez. O Solar, a funcionar temporariamente no quartel dos bombeiros, representa
28 produtores locais (inicialmente eram apenas sete), algumas marcas famosas que se encontram nas prateleiras dos supermercados. Também vende espumantes, mel, salpicão, queijo, infusoes, compota, sabonete, produzidos localmente.
Antes, de manhã cedo, a camioneta deixou-nos no centro de estágios para iniciar a caminhada circular de aproximadamente 10 km. Descemos pela
ribeira do Porto até ao rio Minho. O rumorejar da água, os rochedos cobertos de
musgo e a vegetação frondosa imergiram-me imediatamente num outro universo,
fazendo esquecer por momentos o ruído do mundo. Caminhamos ao longo da margem
do Minho com as rochas a descoberto e os rápidos formados pelas pesqueiras – muros
de pedra construídos sobre o leito, formando a letra V.
O objetivo destas construções milenares era reduzir a passagem dos cardumes de salmão
a um único local para mais facilmente serem capturados. Era uma
autêntica armadilha, nadando contra a corrente procuravam a água
mais rápida, límpida e oxigenada, precisamente aquela que passa na extremidade do “V”. Foi
uma surpresa: já houve salmões no Rio Minho.
“Afinal, tínhamos tudo”, é a frase lapidar do Dr. Randall
Mindy, interpretado por Leonardo DiCaprio, no fim do filme “Não Olhem Para Cima”, resumindo a relação
do Homem com a Natureza e tudo aquilo que estava prestes a desaparecer. O filme é uma metáfora das alterações climáticas. Porque escrevo isto agora? Por isto: estudamos história de Portugal e aprendemos que o rio Minho é uma fronteira que separou
o Condado Portucalense do reino de Leão e que, a dado momento, surgiu um novo reino independente na península Ibérica. Falta conhecer a história
ambiental do território, as condições biofísicas que existiram, as interdependências sociais, culturais, económicas e ambientais que se estabeleceram. É um passado desconhecido, ao contrário da história política. Culturas que se perderam absorvidas pelos monoteismos que entraram na península, nos processos industriais e paradigmas de "desenvolvimento", fenómeno planetário que marginalizou outros saberes e culturas, justificando invasões, ocupações e o extrativismo ganancioso. O resultado está à vista de todos: a narrativa que se foi
impondo é incapaz de proteger o mais básico - a vida na Terra. Os nossos antepassados foram bons guardiões do
planeta deixando-o aos seus descendentes em condições de desfrutá-lo, de usufruir da sua magnificência,
beleza, silêncio, de serem cúmplices com ele. As gerações futuras não poderão
dizer o mesmo da atual. Provavelmente não haverá vida no planeta daqui a não muito tempo - analisado a uma escala geológica, estamos a atravessar um processo de extinções em massa. Não sobreviveremos mantendo este rumo. A
guerra na Ucrânia mal começou e uma central nuclear já foi atacada. Num momento
em que devíamos estar todos em paz e irmanados na preservação da vida na Terra contra as alterações climáticas, estamos em guerra. O Thanatos, a morte, está a
sobrepor-se ao Eros, a pulsão da vida e do amor. Não haverá
vencedores.
As pesqueiras unem as margens. Teve que existir algum tipo de
cooperação entre os povos dos dois lados do rio para as construir, mais forte
do que a divisão administrativa imposta pelos governos centrais e muito
anterior ao surgimento de nações e estados modernos. Um exemplo de como os
nossos antepassados cooperavam para a sua sobrevivência e de como a preservação
da natureza e dos seus recursos era fundamental. O que foi feito dos orgulhosos
salmões que subiam o rio Minho para desovar? Em que momento da história
deixaram de aparecer nestas águas?
Caminhamos uma parte do trilho ao longo de uma levada que
regava as férteis veigas até chegarmos às termas do Pisão. Paramos para lanchar,
conversar, dizer umas chalaças, caminhar pelos jardins. Conviver mais um pouco
sem a fadiga de chegar a um sítio.
Fui à fonte no interior do pavilhão estilo arte nova. A
quietude da água no fontanário de vidro, o piso de mármore axadrezado, o silêncio, a amplitude, a simetria do edifício transmitiam um sentimento de paz e relaxamento. Algo sagrado. Como entrar num
templo em que a água é o verdadeiro Deus, o altar a fonte onde ele é adorado e a sede saciada.
Ribeira do Porto |
Rio Minho |
Igreja Matriz de Melgaço, séc. XIII |
Pesqueira |
Pesqueiras no rio Minho (o V no leito) |
Termas do Pisão |
Museu da Memória e da Fronteira de Melgaço. A memória de uma emigrante que teve sucesso em França |
Instalações temporárias do Solar do Alvarinho, no quartel dos bombeiros voluntários. |
Sem comentários:
Enviar um comentário